Charles Darwin manteve A Origem das Espécies na gaveta por 20 anos. Temia chocar a mentalidade religiosa de seus contemporâneos: a teoria da evolução demonstrava, afinal, que o homem é apenas um animal entre outros e, como todos os outros, evoluiu a partir de formas simples, através da seleção natural. Nenhum lugar especial está destinado a este parente próximo dos macacos (tão próximo que, sabe-se hoje, seus genes são 99% idênticos aos do chimpanzé). Conclusão: o homem não é, ao contrário do que dizem os textos bíblicos, um ser criado segundo algum "plano divino", mas resultado — como o próprio universo — de um processo cego, sem finalismo, submetido apenas a causas e leis naturais.
Enfim publicada em 1859, a explosiva obra de Darwin marcava o início de uma revolução nas ciências e de uma profunda revisão nas concepções filosóficas e religiosas, gerando persistentes e apaixonadas controvérsias.
A reação foi imediata. "O ateísmo esmagador cai sobre nós", bradavam os dogmáticos; a Bíblia deve ser interpretada e aceita literalmente, proclamava um documento assinado, em Oxford, por 11 mil clérigos anglicanos. A criação seria, daí em diante, o ponto central da discórdia e da rejeição do darwinismo pelas religiões cristãs, embora algumas delas jamais tenham assumido uma posição oficial sobre a evolução. É o caso, por exemplo, das igrejas anglicana, protestante e católica (esta excluiu a Origem do Índex de proibições).
Mas o fato é que, aos poucos, as reações ao evolucionismo tornar-se-iam menos hostis, pelo menos na Europa. Há religiosos que não vêem conflito entre a idéia da criação divina da vida e a evolução das espécies. Em outras palavras, não interpretam a Bíblia tão ao pé da letra.
Se os religiosos europeus, contudo, já não formam cruzadas contra Darwin e a teoria da evolução, o mesmo não acontece nos Estados Unidos, principalmente no sul. Lá, religiões aferradas à criação e ao fundamentalismo ainda acatam — contra todas as evidências científicas — as idéias do bispo Ussher, que proclamou em 1665, com base nas escrituras, que a Terra foi criada exatamente às 9 horas da manhã do dia 23 de outubro de 4.004 a. C.
Literalismo bíblico
Pouco importam os métodos de datação radioativa e os registros fósseis de milhões de anos (embora com lacunas, avidamente exploradas pelos antievolucionistas). Para os adeptos do criacionismo, ninguém pode saber o que realmente aconteceu, pela simples razão de que "não havia gente para observar". Isto significa que não há conhecimento dessas épocas e que a ciência só pode remontar ao início dos registros escritos. Pois ciência, como escreve Henry Morris — um dos velhos ideólogos do movimento criacionista — em seu Scientific creacionism (San Diego, Creation-Life, 1974), "significa conhecimento, e a essência do método científico é a observação experimental" (textos de ambos os lados da controvérsia podem ser encontrados na coletânea organizada e comentada pelo filósofo canadense Michael Ruse em But is it science? The philosophical question in the creation/evolution controversy, Amherst, Prometheus Books, 1996).
Basicamente, o que une os cristãos fundamentalistas norte-americanos em torno do criacionismo é a interpretação literal da Bíblia. O mundo teria começado tal como escrito nos primeiros capítulos do Gênesis, isto é, teria sido criado no espaço de 6 dias, e o Dilúvio seria um fato histórico, assim como a Arca salvadora de Noé.
Essa crença na criação fixou raízes na cultura popular. Uma pesquisa Gallup realizada em 1991 demonstrou que 47 por cento dos norte-americanos acreditam que Deus criou o homem na sua forma atual, num momento "entre os últimos 10 mil anos"; que 40 por cento acham que o homem se desenvolveu a partir de formas de vida menos avançadas há milhões de anos, mas "Deus guiou todo o processo, inclusive a criação do homem"; e que apenas 9 por cento acreditam que o homem evoluiu a partir de formas mais simples, mas "Deus não tomou parte nesse processo".
Por que, então, a controvérsia? Antes de tudo, pesquisas mostram também que a maioria dos cientistas se enquadra no ponto de vista naturalista dessa minoria de 9 por cento da população. É difícil imaginar algo que separe tão profundamente o cidadão comum do homem de ciência. Além disso, a ciência tornou-se uma força dominante na cultura contemporânea, ganhando respeitabilidade e acesso privilegiado às salas de aula da escola pública, em detrimento das religiões — motivos suficientes para que os criacionistas neguem e combatam o trabalho dessa minoria tão poderosa.
Trata-se de uma cruzada que, no curso deste século, tem renovado suas táticas e reciclado seus argumentos. Com um benefício, pelo menos: reavivou o velho problema filosófico da demarcação entre ciência e pseudociência.
A ciência no banco dos réus
Metodistas, batistas e presbiterianos dominaram a campanha antievolucionista nos EUA nas primeiras décadas do século XX. Somente nos anos 20 , mais de 20 legislaturas debateram temas antievolucionistas e quatro Estados (Oklahoma, Tennessee, Mississippi e Arkansas) baniram das escolas públicas o ensino da teoria darwiniana (ver Ronald Numbers, "The creationists", em But is it science?, cit., e Michael Shermer, Why people believe weird things, Nova Iorque, W. H. Freeman, 1997, parte 3).
Vale a pena rememorar, portanto, os principais passos dessa velha cruzada (não extensiva, é bem verdade, a todos os criacionistas) que acabou desembocando nos tribunais, um dos quais seria compelido até mesmo a definir em sentença o conceito de ciência.
Em 1923, Oklahoma aprovou uma lei oferecendo livros gratuitamente para as escolas, desde que nem os livros nem os professores mencionassem a evolução. No Tennessee, em 1925, o Butler Act proibiu o ensino de qualquer teoria que negasse "a história da Divina Criação do homem" (de acordo com a Bíblia), o que foi interpretado como uma violação das liberdades civis (o célebre "Caso Scopes"). A lei, no entanto, só seria revogada em 1967.
Nos anos 60 e 70, entra em campo uma nova geração de criacionistas, que passou a demandar igual tempo para Darwin e para o Gênesis nas escolas. Argumento: a evolução é "apenas" uma teoria, não um fato. A Creation Research Society, fundada em 63, toma a linha de frente das organizações criacionistas e consegue aprovar em algumas legislações a exigência de que os livros escolares incluíssem a advertência de que "a origem e criação do homem e seu mundo não é um fato científico". A Bíblia era designada, uma vez mais, como texto de referência. A Associação Nacional do Professores de Biologia recorre e vence na Suprema Corte em 68.
Os criacionistas, então, mudam de estratégia. Já que a teoria da evolução não podia ser banida, passam a lutar por igual tempo para a "creation-science" e para a "evolution-science". É aqui que entram em cena o citado Morris e seu fiel escudeiro Duane Gish (um PhD em bioquímica, astro dos debates antievolucionistas), organizando o Creacion-Science Research Center, em 72, junto ao Christian Heritage College de San Diego, na Califórnia.
Nos dois anos seguintes, eles espalham os livretes Science and Creation (destinados a alunos de 1.a a 8.a séries) em 28 Estados. A "ciência da criação", sustentavam, deve ter proporcionalmente o mesmo espaço reservado à "ciência da evolução" nos currículos escolares. Ao mesmo tempo, o CSRC desenvolve campanhas em que atribui ao evolucionismo a "decadência moral dos valores espirituais", a "destruição da saúde mental" e o aumento dos divórcios, do aborto e, até, das "doenças venéreas"! (R. Numbers, coletânea citada).
Popper, Kuhn, Feyerabend...
Na defesa da "criação" como alternativa à "ideia de evolução", os criacionistas costumam citar filósofos como Karl Popper (para desgosto do próprio), Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, os dois últimos, curiosamente, caros também à "esquerda acadêmica" nova-iorquina, em geral relativista, multiculturalista e "desconstrucionista" (guardadas as diferenças, o que une criacionistas e "pós-modernistas" é uma visão ideológica das ciências).
A epistemologia popperiana, como se sabe, exige que as teorias científicas sejam falseáveis, isto é, a teoria só é cientifica se um fato ou observação puder refutá-la. O filósofo, aliás, chegou a afirmar que o darwinismo é um "programa de pesquisa metafísica", ao invés de teoria científica passível de prova (cfr. sua Autobiografia intelectual, SP, Cultrix, 2a. ed., 1986). Os criacionistas aplaudem, mas omitem o fato de que Popper reviu sua posição em carta à revista New Scientist (1980), reconhecendo que a evolução da vida na Terra é testável e, portanto, científica.
Kuhn, por sua vez, definiria (em A estrutura das revoluções científicas, SP, Perspectiva, 1976) o progresso científico como competição entre modelos ou paradigmas , termo que virou moda na área de Humanidades. Os criacionistas não perderam a oportunidade: modelo por modelo, não havia razão para que o "paradigma da criação" não competisse, em igualdade de condições, com o "modelo da evolução". A tática deu certo: Arkansas e Lousiana, além de comitês de educação de outros Estados, adotariam o argumento dos "dois modelos". Outro caso (McLean vs. Arkansas) que foi parar nos tribunais.
O relativismo radical de Feyerabend foi, igualmente, providencial para a "ciência da criação". O autor do célebre Contra o método igualaria a ciência aos mitos, ao vodu, à bruxaria e à astrologia. Sua teoria do "vale-tudo" ajudou a devastar muitas áreas das chamadas ciências sociais e, é claro, serviu como luva aos fundamentalistas religiosos: Feyerabend chegaria a defender-lhes o direito de terem sua versão da criação ensinada nas escolas públicas lado a lado com a teoria de Darwin (ver O fim da ciência, de John Horgan, SP, Cia. das Letras, 1998).
Ciência definida (e defendida) no tribunal
O caso do Arkansas foi julgado em 81, contando com testemunhas como o paleontólogo Stephen Jay Gould (vários livros traduzidos no Brasil), o biólogo e geneticista Francisco Ayala e o filósofo Michael Ruse, entre outros. O juiz federal William Overton proferiria uma sentença memorável (reproduzida em But is it science?, cit.) em que, definindo o que é ciência, concluiu que o conceito era inaplicável à autodenominada creation-science.
Descritivamente — escreve Overton —, "ciência é o que é aceito pela comunidade científica" e "o que os cientistas fazem". E completa: "mais precisamente, as características essenciais da ciência são: 1) é voltada para as leis naturais; 2) deve ser explicativa em relação às leis naturais; 3) é testável no mundo empírico; 4) suas conclusões são provisórias, isto é, não constituem necessariamente a palavra final; e 5) é falsificável".
São características que faltam à "ciência da criação", explica o juiz, porque esta faz referência a uma intervenção sobrenatural, a um Criador que teria gerado o universo a partir do nada (creatio ex nihilo), ou seja, conforme escrito nos primeiros 11 capítulos do Gênesis. A creation-science é, na verdade, religião, posto que seus argumentos não são explicativos em relação à natureza, não são testáveis nem falseáveis. Em poucas palavras, pertencem ao terreno da fé. Era inconstitucional, portanto, a lei do Arkansas, por violar a separação constitucional entre Estado e religião.
Duplo erro, o dos criacionistas: ao pretenderem estatuto científico para seus dogmas e ao definir a evolução como evolution-science. Como lembra Ruse, isto não faz sentido, pois não existe no mundo tal disciplina científica. O corpo de conhecimentos que eles assim denominam abrange ciências tão diversas como a astronomia, a cosmologia, a geologia, a biologia, a paleontologia, a química, a física e a botânica.
Isto não implica, obviamente, que a teoria da evolução não seja científica. O próprio Papa João Paulo II reconheceria, em mensagem à Academia Pontifícia de Ciências (22/10/96), que a teoria darwiniana "é bem mais que uma hipótese", sendo hoje aceita amplamente pelos pesquisadores em decorrência das "descobertas em vários campos do conhecimento". A convergência dos resultados de trabalhos conduzidos independentemente, observa ele, "é por si mesma um argumento significativo em favor dessa teoria". Embora, coerentemente com sua doutrina, o Papa ressalve que, se o corpo humano tem origem em substâncias preexistentes, "a alma foi imediatamente criada por Deus".
Os mecanismos da evolução
O que os cientistas entendem por evolução, resume Ruse, é a explicação de como a vida se desenvolveu depois de sua formação: não é objetivo da teoria evolucionária explicar como a vida começou. Além disso, é importante distinguir, em relação ao termo evolução, o acontecimento evolução do modo como aconteceu (o que os criacionistas confundem). Nenhum cientista nega que a evolução seja um fato; o que se discute é como aconteceu, ou seja, quais os mecanismos da evolução.
Criacionistas que admitem de algum modo a evolução — porque é impossível negá-la absolutamente —, limitam-na à evolução interna às espécies (não aceitando sua ocorrência entre espécies). Rejeitam, em conseqüência, que os seres vivos do planeta descendem de um único ancestral, como está inscrito no código genético, literalmente idêntico em todos os animais, plantas e bactérias. Apesar de diferirem em detalhes superficiais, todos eles "são variação do tema DNA e as 30 milhões de maneiras pelas quais ele se propaga" (ver, por ex., de Richard Dawkins, inimigo número 1 dos criacionistas, O rio que saía do Éden, Rio de Janeiro, Rocco, 1996, e A escalada do monte improvável, SP, Cia. das Letras, 1998).
O próprio Darwin fez conjecturas também sobre como aconteceu a evolução, sugerindo que o mecanismo mais importante foi a seleção natural. Sua argumentação, sucintamente: a) as populações tendem a crescer indefinidamente em proporção geométrica; b) num ambiente natural, porém, o número populacional estabiliza-se em certo nível; c) ocorre uma "luta pela existência", porque nem todos os organismos produzidos podem sobreviver e se reproduzir; d) há variação — lenta, gradual — em cada espécie; e) na competição pela sobrevivência, os indivíduos com variações que são mais adaptáveis ao ambiente deixam mais descendentes que os menos aptos. Sobrevivem, portanto, os que conseguem transmitir com êxito seus genes para a geração seguinte.
Quanto à seleção natural, porém, há discordância entre os cientistas. Alguns consideram mais importante o mecanismo da especiação [formação de uma ou mais espécies a partir de espécies existentes, por ex., por anagênese (transformação de uma espécie em outra)]; outros, como Niles Eldredge e Stephen Jay Gould, propõem a teoria do "equilíbrio pontuado", que, negando o gradualismo darwiniano, sustenta que a evolução envolve mudanças rápidas e estase, como se ocorresse aos solavancos; outros, ainda, consideram que o "puro acaso" pode ser um importante fator (ver Ruse e Shermer, citados, e Ernst Mayr, Toward a new philosophy of biology, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1988). Nas ciências, como se vê, a crítica e a discordância são fundamentais: conjecturas e refutações, como dizia Popper — o oposto do dogmatismo religioso/criacionista.
É claro que, 140 anos depois da publicação da Origem, alguns princípios básicos da obra foram refinados, graças ao impressionante desenvolvimento de ciências como a biologia e a genética moleculares, que vão além do neodarwinismo ou "Nova Síntese" (fusão da genética mendeliana com a teoria darwiniana, entre os anos 20 e final dos 50). As descobertas da genética molecular, nos últimos anos, conduziram a uma outra síntese: conhece-se agora a natureza química do gene, que propiciou uma visão dos processos evolucionários em nível molecular.
Isto comporta, segundo Ayala, notáveis vantagens em relação à anatomia comparativa e outras disciplinas clássicas. A informação "é mais facilmente quantificável: o número de aminoácidos ou nucleotídeos que são diferentes é prontamente estabelecido quando a seqüência de unidades numa proteína ou ácido nucléico é conhecida para vários organismos". É o que acontece, por exemplo, com a seqüência de aminoácidos do citocromo c, que já foi determinada em vários organismos, da bactéria aos insetos e aos seres humanos, fornecendo uma representação clara de como se processou a história evolutiva desses organismos (Ayala, "The mechanisms of evolution", em But is it science?, cit.).
Dawkins, o darwinista ortodoxo que os criacionistas tanto abominam, reitera o exemplo de Ayala. Não há dúvida, comenta ele, de que "os textos de ADN retirados de representantes de espécies diferentes têm sido comparados com grande sucesso, letra por letra, para reconstruir as árvores de família das espécies" — com a possibilidade, inclusive, de estabelecer datas para as ramificações (a controvertida teoria do "relógio molecular", que supõe que as mutações em qualquer parte do "texto" do código genético ocorrem a uma taxa constante por milhão de anos).
Em relação ao citocromo c, "o parágrafo" nos nossos genes que descreve essa proteína tem 339 letras. Esclarece Dawkins: "Doze trocas de letras separam o citocromo c humano do citocromo c dos cavalos, nossos primos muito distantes. Apenas uma troca de letra no citocromo c separa os humanos dos macacos (nossos primos bastante próximos), uma troca de letra separa os cavalos dos jumentos (seus primos muito próximos) e três trocas de letras separam os cavalos dos porcos (seus primos um tanto mais distantes). Quarenta e cinco trocas de letras separam os humanos do levedo e o mesmo número separa os porcos do levedo. Não é surpresa que estes números sejam os mesmos, pois, à medida que subimos o rio que conduz aos humanos, ele reúne-se ao rio que conduz aos porcos muito antes de o rio comum a humanos e porcos se juntar ao rio que conduz ao levedo" (O rio que saía do Éden, cit.).
O verme nematóide, por exemplo, está mais próximo do ser humano do que poderia imaginar alguém que considera aviltante até a proximidade genética com os macacos. A empresa norte-americana Genomium Sequencing Consortium concluiu, em dezembro último, depois de oito anos de pesquisa, o mapeamento completo dos genes desse verme, o primeiro animal a ser completamente desvendado. A conclusão é espantosa: de cada cinco genes do nematóide — ou Caemorhabditis elegans —, dois existem também no homem. Não é pouco, já que seu corpo tem apenas 959 células, enquanto o humano tem 50 trilhões. Habitante do solo, o nematóide tem pouco menos de 20 mil genes, ou seja, três vezes mais que as bactérias e cinco vezes menos que o ser humano (aproximadamente 100 mil).
Todos os mecanismos aqui mencionados excluem o finalismo. Trocando em miúdos, não há um sentido evolucionário. Evolução não quer dizer "progresso" das espécies, nem tampouco significa que o homem seja o ser mais complexo da Natureza, se por isso se entende a complexidade mental. O fato é que não há uma tendência geral de evolução para cérebros grandes.
Como lembra Gould (entrevista a La Recherche, setembro/97), existem mais espécies de bactérias que de animais multicelulares, e mais de 80% das espécies multicelulares são insetos. "Não se pode dizer que o crescimento da complexidade mental caracterize a evolução", mesmo porque, "das quase 4 mil espécies de mamíferos, apenas uma é consciente de si mesma". O traço mais fundamental da "árvore da vida", conclui o paleontólogo, "é a constância da vida bacteriana" — e bactérias e vírus, aliás, evoluem mais rapidamente que nós.
"Intelligent Design", o retorno
A mais recente versão da cruzada antievolucionista, batizada de "Intelligent Design" (idéia antiga, como veremos), tenta agora fixar raízes em universidades seculares. Dela participam intelectuais e líderes políticos conservadores — muitos deles ligados à direita cristã fundamentalista — como Irving Kristol, William Buckley, Jr., Robert Bork, Walter Bradley e Philip Johnson (ver, de Ronald Bailey, "Origin of the specious. Why do neoconservatives doubt Darwin", em Reason magazine, julho 97). Juntam-se ao coro biólogos, matemáticos e bioquímicos como David Berlinski, William Dembsky, Jonathan Wells, Michael Denton e Michael Behe — este, no momento, o mais incensado (por seu livro A caixa preta de Darwin, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997).
Alguns negam ser criacionistas, alegando que se interessam apenas pela existência de um "projeto inteligente" no universo, mas não por um designer (isto é, um Criador). Rejeitam a interpretação literal da Bíblia, a idéia de que a Terra é jovem e até aceitam alguma forma de evolução, desde que complementada pelo "projeto inteligente". São todos, em realidade, criacionistas envergonhados, já que ativos e assíduos participantes em conferências e encontros promovidos por organizações religiosas norte-americanas.
Analisemos com brevidade alguns argumentos dos líderes mais expressivos do movimento. Philip Johnson, professor de Direito Penal na Universidade da Califórnia/Berkeley, é menos conhecido por seus estudos jurídicos que por seus livros contra Darwin e a teoria da evolução, entre eles Darwin on trial (InterVarsity Press, 1991), que exerceu grande influência no recente deslocamento da cruzada rumo à academia.
Seu propósito pode ser resumido na fórmula "naturalismo = materialismo = ateísmo", já que a ciência "declara que a natureza é tudo, e que da matéria veio tudo o que existe". Daí os ataques a Dawkins (de novo), a Carl Sagan e outros "mercadores do ateísmo", cuja agravante é escreverem com clareza e, por isso, serem convincentes. Contra estes, é preciso "preparar a próxima geração de pensadores para que compreendam a diferença entre ciência real e filosofia materialista".
Percebe-se que o advogado e professor Johnson tem pouco apreço pelos dados da biologia evolucionária e molecular ("protegem o materialismo"), da paleontologia, da genética, da embriologia, etc. Na sua visão, a ciência foi "capturada" por uma ideologia a ser desbaratada, o materialismo/naturalismo. "Um por um, os grandes profetas do materialismo revelaram-se falsos profetas e foram deixados de lado. Marx e Freud perderam seu estatuto científico. Agora é a vez de Darwin" — proclama Johnson. O principal objetivo da cruzada para o próximo milênio, por ele traçado, é "separar a filosofia materialista das ciências empíricas" — o evolucionismo seria, no máximo, uma filosofia.
Quanto à militância do autor em favor do teísmo (crença típica da tradição judaico-cristã num Deus pessoal, onisciente e onipotente, criador de tudo o que existe), basta consultar How to sink a battleship: a call to separate materialist philosophy from empirical science, palestra pronunciada na Mere Creation Conference, realizada em Los Angeles, em 1996, sob os auspícios da Campus Crusade for Christ e dirigida por Rich McGee, um especialista em "Velho Testamento" e diretor da International Expansion for Christian Leadership Ministries (este e outros textos aqui referidos estão disponíveis on-line, no endereço
Orlando Tambosi
fonte: criticanarede