O discurso liberal insiste em identificar democracia com capitalismo, como se país democrático e país capitalista fossem sinônimos e os regimes totalitários e ditatoriais se implantassem em contradição com os princípios e interesses do capital. Na verdade, porém, a democracia no capitalismo reduz-se à efetiva participação da minoria e os golpes e regimes autoritários são necessidades periódicas do próprio sistema econômico.
A experiência democrática das cidades-estado gregas no século V a.C. só pode ser considerada como tal se limitarmos a totalidade social detentora da soberania (o demos) aos homens livres, adultos e nascidos na Grécia, ou seja, se do conceito de “cidadão” forem excluídos os jovens, estrangeiros, mulheres e, principalmente, os escravos.
Aristóteles foi muito claro ao descrever a diferença entre “cidadão” e “habitante” em sua obra A política: “Não é a residência que constitui o cidadão: os estrangeiros e os escravos não são ‘cidadãos’, mas sim ‘habitantes’. […] Ora, chamamos ‘cidadão’ quem quer que seja admitido nessa participação [no governo da cidade] e é por ela, principalmente, que o distinguimos de qualquer outro habitante”. Por essa concepção, é possível chamar de “democrático” um sistema que possibilita apenas a participação de uma camada social.
De igual maneira, a democracia no capitalismo só pode ser considerada como tal se do conceito de totalidade social detentora de soberania forem excluídos os trabalhadores e todos aqueles que não fazem parte do percentual mínimo de pessoas que detém o capital. Estes são meros habitantes do mundo, não cidadãos ativos na política.
Se reduzirmos a totalidade dos cidadãos apenas a empresários, banqueiros, especuladores, rentistas, latifundiários e outros proprietários de capital (de origem legal e ilegal), constatamos que todos são sujeitos da soberania e participam diretamente do exercício do poder, não apenas delegando poderes a seus representantes, mas deliberando sobre o que será aprovado por eles na esfera estatal.
Como não há unidade de pensamento entre eles e existem interesses conflitantes entre os diferentes setores do capital, há necessidade de espaços de debates, dissensos, criação de consensos e maiorias, estabelecimentos de acordos, etc. – uma espécie de ágora dos capitalistas, onde são definidas as propostas para a administração e normatização das sociedades. Esses espaços, atualmente, dada a extensão global adquirida pelas corporações que controlam a economia, são criados por cima dos Estados nacionais, o que torna a política estatal apenas o local de consolidação das decisões tomadas em outras esferas e em outros níveis territoriais.
Portanto, nossos sistemas, em certo sentido, podem ser chamados de democráticos, mas apenas quando se consideram os capitalistas (os “homens livres” da atualidade) os únicos detentores da cidadania, reservando para o restante apenas o papel de “habitantes”.
O jogo político real se joga na esfera econômica. Embora tenha suas peculiaridades, dinâmica própria, regras específicas, enredos independentes e conte com certa autonomia, a política é o reflexo dos interesses e conflitos que se travam no campo das disputas econômicas.
O verdadeiro bastidor da política é a economia e não os corredores do Congresso Nacional, os jantares entre políticos, as relações entre representantes dos três poderes e entre estes e outras figuras da sociedade, as articulações e alianças partidárias, etc. Tudo isso serve bem como objeto para comentaristas de política das grandes empresas de mídia, que acabam fazendo uma espécie de coluna de fofoca sobre as celebridades do poder. Tem sua importância na análise de conjuntura, mas não revela os meandros do real exercício do poder.
Para se compreender a política é necessário voltar a atenção para as disputas e acordos entre o capital produtivo e o especulativo, a correlação de forças e alianças entre indústria, agricultura e finanças, as mudanças na hegemonia entre os diferentes setores do capitalismo, a relação assimétrica entre o capital transnacional e o local, a formação de blocos econômicos e a criação de entidades e fóruns mundiais que reúnem e representam as megacorporações (cujo rendimento excede o PIB de vários países do mundo), etc.
Pelo fato desses bastidores serem deliberadamente ocultados do grande público pela narrativa montada pelas corporações de mídia (o “braço educativo” dos donos do capital), cria-se a impressão de que a política é um espaço autônomo e de que a pessoa que acompanha os noticiários e se informa sobre as movimentações da política pela imprensa é um cidadão ativo, sintonizado com os problemas do país, integrante da totalidade detentora da soberania.
A verdade, porém, é que a maioria da população não tem a menor noção de como é completamente excluída do campo onde o jogo político é realmente jogado, mesmo quando é usada para os propósitos dos donos do poder, sendo induzida pela mídia corporativa a defender causas que não são suas e a lutar contra inimigos que não são seus.
A ideologia da universalização da democracia no capitalismo e do Estado como instituição autônoma em relação às disputas sociais tem como função disfarçar as decisões da minoria que controla a economia com o invólucro da legalidade e legitimidade dos trâmites democráticos jurídicos e institucionais, dando-lhes caráter de universalidade. Mas, combinada com a oligopolização dos meios de comunicação, também serve para mobilizar a população (principalmente a classe média) na defesa dos interesses dessa minoria, motivando-a pela ideia de que está participando do processo democrático que envolve todos os cidadãos em uma sociedade unitária com pluralidade de pensamentos.
Contudo, as exigências dos ideais políticos modernos e as conquistas políticas decorrentes das lutas sociais criaram brechas pelas quais alguns interesses das classes trabalhadoras também podem ser contemplados na esfera estatal. A democracia capitalista, por causa da conformação do Estado como um terceiro com relativa autonomia em relação à sociedade, possui suas contradições que podem, devem e são aproveitadas pelo restante da população e suas organizações.
Quando as aberturas da democracia burguesa começam a dar vazão a uma quantidade muito grande de medidas favoráveis aos trabalhadores, ou quando os representantes eleitos não são tão facilmente manipulados pelos verdadeiros detentores da soberania, ou quando, enfim, as brechas ameaçam romper os limites da democracia capitalista em direção a uma democracia universal, os donos do capital não titubeiam em suspender seu discurso democrático e lançar mão de soluções autoritárias e ditatoriais, como o fascismo, o nazismo e as ditaduras civis e militares, a fim de garantirem o seu controle sobre a sociedade.
A dificuldade eventual sentida pelos capitalistas em manipular os representantes eleitos não resulta necessariamente de um ato de resistência aos imperativos do capital por parte dos ocupantes dos poderes estatais. Ou seja, não é preciso um governo socialista, de esquerda e nem ao menos progressista para gerar tal dificuldade. Ela pode se dar por esse motivo, mas também por dois outros.
Um é a obediência dúbia dos que ocupam o poder, que se submetem às ordens do capital, mas ao mesmo tempo fazem concessões às reivindicações de trabalhadores. Esse tipo de postura gera uma constante desconfiança por parte dos que controlam a economia. Principalmente em tempos de crise, é preciso contar com representantes que se posicionem firmemente na defesa dos lucros das corporações e no pagamento religioso dos juros da dívida pública para os agentes financeiros, sem escrúpulos que possam torná-los mais sensíveis na imposição de sacrifícios à população ou mais relutantes em entregar a nação à rapina do sistema.
Outro motivo que dificulta o controle dos agentes políticos pelos agentes econômicos é a péssima índole e qualidade dos representantes eleitos. As exigências “normais” da corrupção (mencionada no primeiro artigo) podem tornar-se muito volumosas e se transformar em chantagens e obstáculos para o controle do poder. É o momento em que a autonomia relativa dos representantes eleitos permite a instauração de uma verdadeira farra de propinas, exigências de pagamentos, favorecimentos, etc. e a tomada de poder por criminosos e pessoas de tão mau caráter que se tornam prejudiciais até para os que sobrevivem do sistema político corrupto criado para manter o Estado sob o controle do capital. Ademais, sua qualidade é tão ruim que eles se tornam impopulares e incapazes de aprovar, no tempo necessário, as medidas exigidas pelo sistema econômico.
Mas, nesse último caso, não nos enganemos, a supressão da democracia burguesa e sua substituição por regimes autoritários e ditatoriais não se dá porque a corrupção tomou conta da política, mas apenas porque seu preço excedeu os limites e a qualidade dos serviços abaixou. Não é questão de moralidade, mas de relação custo-benefício.
A supressão da democracia no capitalismo ou o desrespeito às suas próprias regras, já bastante limitadas, são antídotos temporários para impedir a universalização da democracia e/ou superar as contradições entre as necessidades de uma política democrática (ainda que apenas de direito) e as exigências do sistema econômico. Nesse sentido, os golpes (armados ou suaves, militares ou civis), as ditaduras e regimes totalitários não constituem desvios de rota dos sistemas democráticos burgueses, mas pit stops necessários para corrigir os problemas que seu próprio funcionamento ocasiona. São, portanto, partes do processo, não defeitos.
A luta política mais importante para quem deseja construir uma democracia real, de direito e de fato, não deve ser a disputa eleitoral e a tentativa de mudar o Estado por meio de uma gestão diferenciada. Uma revolução na política deve ter como estratégia a superação da democracia burguesa por meio da criação de mecanismos reais de exercício da soberania popular e por sua ocupação efetiva pelos setores de base da sociedade. Sem isso, não se pode falar em luta pela democracia, não importam quem sejam os eleitos para os poderes do Estado.
Maurício Abdalla é professor de filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo
Filoparanavaí 2019