ACESSE O ARQUIVO DO BLOG
FILOPARANAVAÍ

domingo, 8 de outubro de 2017

ARTIGO

OS CONTEÚDOS TRANSVERSAIS: PROBLEMATIZAÇÃO A PARTIR DA CISÃO ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA
Autoria: Me. Lucio Lopes (L.L.L.)




RESUMO

Minha experiência como docente na educação básica me possibilita afirmar que os conteúdos “transversais”, que aqui no Estado do Paraná chamamos de problemas ou desafios contemporâneos, ainda que estejam nas propostas pedagógicas como obrigatórios para todas as disciplinas, encontra um certo desprezo que se perpetua na prática pedagógica por meio de uma cisão entre aquilo que chamamos de Cultura Acadêmica e aquilo que entendemos por Cultura Popular. Ora, não é esta cisão uma grande contradição? Eu diria que sim desde a compreensão de que a educação institucional tem por objetivo final justamente possibilitar aos educandos uma capacidade crítica capaz de mobilizar saberes que perpassam obrigatoriamente estas culturas a fim de observar e ler, de levantar problemas, reelaborar problemas, desenvolver respostas inovadoras para os mesmos e desenvolver a capacidade para intervir na realidade a fim de recriá-la. É desta percepção subjetiva que nasce a proposta deste artigo que pretende refletir de maneira dedutiva as “deficiências” das atividades pedagógicas que não conseguem ainda sanar esta explicita cisão entre os conteúdos programáticos das disciplinas e aqueles oriundos de problemas do cotidiano. A questão contemporânea da violência contra mulher servirá como elemento norteador para refletirmos o problema e lançar luzes para inovar nossas práticas visando superação dessa demanda pedagógica. Este artigo quer ser uma proposta instigadora de reflexão acerca do problema desta cisão e, para tanto, o caráter de cientificidade do mesmo repousará sobre algumas fontes documentais e literárias. Portanto, uma revisão bibliográfica.


PALAVRAS-CHAVE: Educação. Cultura. Transversal. Reflexão. Crítica.




1 INTRODUÇÃO

A sociedade atual apresenta-se como um palco onde se sucedem uma peça teatral após a outra. Esta metáfora, aponta para as mudanças culturais que ocorrem numa velocidade na qual a educação formal ou institucional não consegue acompanhar.
Globalização econômica e cultural, sociedade da informação, mudanças nas relações de trabalho, exigências de novas competências do trabalhador com as inovações tecnológicas, acesso em tempo real à informação nas mãos das pessoas, crise ambiental, crise política, crise bélica mundial, aprofundamento das desigualdades sociais, diversidades e o empoderamento de novos sujeitos contra as perspectivas tradicionais, são alguns dos aspectos destas mudanças.
Os profissionais da educação, porém, em grande parte, apresentam muitas dificuldades em compreender o seu papel mediador com seus alunados para refletirem estes aspectos que incidem diretamente sobre suas vidas.
Destas dificuldades, eu elencaria aqui dois objetos interessantes para nossa reflexão: os desafios frente às novas tecnologias e os problemas oriundos dos conflitos culturais. Fico com o segundo. Neste artigo ofereço uma breve reflexão sobre as dificuldades que há nas escolas quanto ao trabalho com conteúdos culturais de variadas matizes como, econômica, social, tradição, crenças religiosas, diversidade, e outros.



2 A RESISTÊNCIA AOS “TEMAS TRANSVERSAIS” NA ESCOLA

            Por tratarem de questões culturais, sociais e de diversidade, os Temas Transversais têm natureza diferente das áreas convencionais. Sua complexidade faz com que nenhuma das áreas da Ciência, isoladamente, seja suficiente para abordá-los. Ao contrário, a problemática dos Temas Transversais atravessa os diferentes campos do conhecimento. Por exemplo, a questão ambiental não é compreensível apenas a partir das contribuições da Geografia. Necessita de conhecimentos históricos, das Ciências Naturais, da Sociologia, da Demografia, da Economia, entre outros.
            Por outro lado, nas várias áreas do currículo escolar existem, implícita ou explicitamente, ensinamentos a respeito dos temas transversais, isto é, todas educam em relação a questões sociais por meio de suas concepções e dos valores que veiculam. No mesmo exemplo, ainda que a programação desenvolvida não se refira diretamente à questão ambiental e a escola não tenha nenhum trabalho nesse sentido, Geografia, História e Ciências Naturais sempre veiculam alguma concepção de ambiente e, nesse sentido, efetivam uma certa educação ambiental (BRASIL, 1997. p.29).
Diante desta problematização dos tema transversais recordamos uma crítica do professor espanhol Jurjo Torres Santomé (1995), feita à escola tradicional, que ainda se faz muito presente nos dias atuais. Tradicional no sentido que nossas escolas ainda estão muito presas a dar grande ênfase aos conteúdos apresentados em pacotes disciplinares, não conseguem que os alunos vejam esses conteúdos como parte do seu próprio mundo, em uma visão totalizante em conexões. 
A escola deveria potencializar os alunos a partir da capacidade de conectar, mobilizar, os conteúdos acadêmicos com os culturais, para que fossem capazes de intervirem socialmente em função de transformar o que precisa ser mudado nas suas realidades cotidianas (SANTOMÉ, 1995). Esta não apropriação reside no problema do modelo formativo de nossos atuais docentes:
[...] o professorado atual é fruto de modelos de socialização profissional que lhe exigiam unicamente prestar atenção à formulação de objetivos e metodologias, não considerando objeto de sua incumbência a seleção explícita dos conteúdos culturais. [...] Em muitas ocasiões os conteúdos são contemplados pelo alunado como fórmulas vazias, sem sequer a compreensão de seu sentido. Ao mesmo tempo, criou-se uma tradição na qual os conteúdos apresentados nos livros didáticos aparecem como os únicos possíveis. Como consequência, quando um professor se pergunta que outros conteúdos poderiam ser incorporados ao trabalho de sala de aula, encontra dificuldade para pensar em conteúdos diferentes dos tradicionais. (SANTOMÉ, 1995, p. 156-157)

Fica claro na crítica de Santomé (1995) uma realidade fordista da educação que não contempla o todo senão que apenas permite, no máximo, que se extraia dos alunos, após o processo ensino e aprendizagem, um saber que atenda apenas aos interesses da ordem social dominante. Portanto, um saber não problematizador, não crítico, não criador, não desestabilizador. Completamente o avesso do “homem rebelde e indócil” defendido por Freire (1981) como protagonista das transformações necessárias.
            Esta necessidade de conexão entre conteúdos disciplinares específicos com conteúdos culturais, reclamada por Santomé (1995) também está muito clara nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (BRASIL, 2013) como uma exigência para os docentes. Há neste documento um trecho em que é abordada a dimensão pedagógica da transversalidade. Parece que o texto confere à interdisciplinaridade um papel teórico, como visão de mundo, “uma compreensão interdisciplinar do conhecimento”, enquanto que a transversalidade seria a efetivação prática desse conceito:
A transversalidade orienta para a necessidade de se instituir, na prática educativa, uma analogia entre aprender conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real (aprender na realidade e da realidade). Dentro de uma compreensão interdisciplinar do conhecimento, a transversalidade tem significado, sendo uma proposta didática que possibilita o tratamento dos conhecimentos escolares de forma integrada. Assim, nessa abordagem, a gestão do conhecimento parte do pressuposto de que os sujeitos são agentes da arte de problematizar e interrogar, e buscam procedimentos interdisciplinares capazes de acender a chama do diálogo entre diferentes sujeitos, ciências, saberes e temas. (BRASIL, 2013, p.27)

Na resolução CNE/CEB nº 7/2010 voltada para a educação básica fundamental temos uma compreensão mais ampla dessa relação entre educação e cultura como uma exigência intrínseca ao processo de ensino e aprendizagem. Dois trechos do documento nos são muito esclarecedores:
[...] Os conteúdos que compõem a base nacional comum e a parte diversificada têm origem nas disciplinas científicas, no desenvolvimento das linguagens, no mundo do trabalho, na cultura e na tecnologia, na produção artística, nas atividades desportivas e corporais, na área da saúde e ainda incorporam saberes como os que advêm das formas diversas de exercício da cidadania, dos movimentos sociais, da cultura escolar, da experiência docente, do cotidiano e dos alunos. [...] Como protagonistas das ações pedagógicas, caberá aos docentes equilibrar a ênfase no reconhecimento e valorização da experiência do aluno e da cultura local que contribui para construir identidades afirmativas, e a necessidade de lhes fornecer instrumentos mais complexos de análise da realidade que possibilitem o acesso a níveis universais de explicação dos fenômenos, propiciando-lhes os meios para transitar entre a sua e outras realidades e culturas e participar de diferentes esferas da vida social, econômica e política.  (BRASIL, 2010, p. 4 e 7).

Fica explícito nos textos acima que a escola se constitui em um espaço de poder. Alerta para o fato de que o conhecimento se dá por meio de processos que devem considerar as intersubjetividades envolvidas, a escola é o espaço por excelência para o diálogo intercultural. Como vimos até aqui o diálogo intercultural no espaço escolar deve valorizar a diversidade e priorizar a existência do outro como elemento de existência de si próprio.
Não se pode valorizar uma forma de vida, uma cultura ou um pensamento único. Neste caso, o respeito à dignidade humana, que exige o respeito cultural e o conhecimento mútuo, exige que resistamos à tentação de impor aos outros nossa cultura como modelo de convivência humana”.
O antropólogo e professor emérito da Universidade de Brasília, Laraia (2001), lembra que na atualidade, há um entendimento geral nos meios acadêmicos de que a cultura é um produto humano resultado de milênios, ou séculos, ou anos, de acúmulo de experiências compartilhadas por uma diversidade de grupos humanos interagindo entre si. Logo, se a cultura é compartilhada, é por meio de processos de aprendizagem. Portanto, se a cultura é produto humano, então é histórico-social o processo de sua constituição.
Para Laraia, a cultura é criação coletiva voltada para a comunidade e que ajuda na instrumentalização dos indivíduos para viverem em sociedade:

O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produto de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura. [...] indivíduos de culturas diferentes podem ser facilmente identificados por uma série de características, tais como o modo de agir, vestir, caminhar, comer, sem mencionar a evidência das diferenças linguísticas, o fato da mais inédita observação empírica (LARAIA, 2001, p.68, grifo nosso).

            Nesta mesma perspectiva de Laraia, o pesquisador francês em etnologia e em antropologia Laplantine, compreende que é difícil conceber uma definição que seja absolutamente satisfatória para cultura. Laplantine (2003), também, por sua vez, tenta oferecer uma definição a partir da distinção entre o “social” e a “cultura”:
O social é a totalidade das relações (relações de produção, de exploração, de dominação...) que os grupos mantêm entre si dentro de um mesmo conjunto (etnia, região, nação...) e para com outros conjuntos, também hierarquizados. A cultura por sua vez não é nada mais que o próprio social, mas considerado dessa vez sob o ângulo dos caracteres distintivos que apresentam os comportamentos individuais dos membros desse grupo, bem como suas produções originais (artesanais, artísticas, religiosas...). [...] trata-se do social tal como pode ser apreendido através dos comportamentos particulares dos membros de uma determinada cultura, de pensar, de encontrar, trabalhar, se distrair, reagir frente aos acontecimentos (por exemplo, o nascimento, a doença, a morte).[...] a cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus membros (LAPLANTINE, 2003, p. 95-96, grifo nosso).

Depreende-se destes referenciais que a cultura molda os costumes e em uma hierarquização que trabalha com os conceitos padrões de normalidade e anormalidade, estabelece o bem a ser promovido e o mal a ser evitado. A cultura é herdada e transmitida de pais para filhos a fim de organizar os comportamentos esperados dos homens em sociedade. A cultura tem o poder tanto de humanizar quanto de desumanizar. Ela é dinâmica e, por isso mesmo, passível de ser mudada, de ser transformada para melhor. Aqui entra o papel da educação: valorizar os aspectos positivos da cultura e eliminar tudo aquilo que na cultura se converte em ameaça às pessoas.
Mas para que estes objetivos sejam contemplados é necessário que a escola cumpra com sua função emancipatória de nossos alunos. Este conceito é claro pode nos remeter a vários autores, mas nem um como o pensador Paulo Freire foi fundamental para uma compreensão do mesmo dentro da realidade educacional brasileira.
Em sua obra fundamental, Pedagogia do Oprimido, de 1970, encontram-se os eixos centrais sob os quais são realizadas suas reflexões: a humanização é a vocação humana básica, apesar de que essa vocação é constantemente ameaçada por inúmeras formas sociais e culturais de opressão, que desumanizam as pessoas. Em relação a isso Freire (2003, p.30) alerta: “[...] Mas, enquanto a humanização e a desumanização são alternativas reais, só a primeira é a vocação do homem”.
O sentido da educação de acordo com Freire (2003) deve ser construído sob a base dos anseios por liberdade, por justiça, em busca de recuperar a humanidade roubada. Isso quer dizer que as pessoas são capazes de mudar sua realidade. Podemos tornar-nos criadores de nossa cultura, e não meras criaturas determinadas por ela. Podemos deter uma consciência crítica de nossa realidade a ponto de agir para mudá-la.
Uma outra ideia freireana (FREIRE, 2003) nos é muito salutar: a educação nunca é neutra, tem sempre consequências políticas. Essas consequências podem ser um moldar o sujeito de forma que se adapte no conformismo com a sociedade existente.
Resumindo a teoria educacional de Paulo Freire (2003) a educação deve ser um exercício de liberdade. Portanto, a educação não pode ser praticada por meio de um “método bancário”[1], mas sim de um método que considere a “resolução de problemas”. A conscientização, para Freire (2003), é um processo de decodificação da realidade, desnudando-a de tal forma que se chegue a conhecer os mitos que iludem e perpetuam a estrutura dominante de modo que as pessoas se disponham a mudar essa realidade no sentido da humanização.
A opressão, de acordo com Freire (2003, p. 65) “é um controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida.” Para escapar ao seu jugo, devemos emergir dela e voltar-nos contra ela. Isto só pode ser conseguido por meio da práxis: reflexão e ação sobre o mundo para transformá-lo.
Portanto, o papel do educador é estar com, em vez de estar acima das pessoas, capacitando-as a dar nome ao seu mundo e, através do diálogo, chegar a agir criativamente sobre a realidade histórica.
A metodologia freireana é a “resolução de problemas” num plano de totalidade. Quando somos capazes de uma educação da práxis em que teoria e prática encontram-se em uma relação dialética dependente, nos tornamos assim capazes de perceber que o problema X do qual nos ocupamos encontra-se em conexão com outros, e numa visão totalizante podemos então fazer a primeira superação que é a da alienação.       
É impossível pensar a educação sem refletir sobre o próprio homem. De acordo com Freire (1981) o homem enche de cultura os espaços geográficos e históricos. A cultura consiste em recriar e não repetir. A educação precisa ganhar um caráter de subversividade, pois não pode constituir-se em um mero meio de adaptação do homem à sociedade. A educação precisa ter a marca da criatividade, e a cultura idem.
Ora, neste ponto de nosso artigo querer refletir se a “violência contra a mulher” é ou não é conteúdo de domínio da disciplina de história, seria, usando uma expressão popular, “chover fora da horta”. Ficou claro que todo conteúdo cultural é e deve ser trabalhado em sala de aula em conexão com os conteúdos acadêmicos das diversas especificidades disciplinares.
Trabalhar os temas transversais em conexão aos acadêmicos por meio de práticas metodológicas interdisciplinares. Em trecho do documento do Ministério da Educação (MEC) (1997) podemos compreender melhor estas relações:
A interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os diferentes campos de conhecimento produzida por uma abordagem que não leva em conta a inter-relação e a influência entre eles — questiona a visão compartimentada (disciplinar) da realidade sobre a qual a escola, tal como é conhecida, historicamente se constituiu. Refere-se, portanto, a uma relação entre disciplinas. A transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática educativa, uma relação entre aprender na realidade e da realidade de conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real (aprender na realidade e da realidade) (BRASIL, 1997, p.31).
           
Não é difícil compreendermos que há dicotomias, lacunas, falhas didático-pedagógicas, epistemológicas, nas práticas docentes. Diante desta realidade urge que nossos docentes estejam preparados para os desafios contemporâneos que são postos para a educação na atualidade. Formação continuada, sem dúvidas, é a palavra-chave. É preciso que nossos docentes recebam formação adequada para que sejam capazes de abordar temas complexos como os exigidos pelos transversais.
É nesta perspectiva que Freire (1981) solicitava para o profissional da educação a exigência de que fosse capaz de um aperfeiçoamento epistemológico para além das especificidades de sua área de atuação. Reclamava a necessidade de uma incessante busca de ampliação de conhecimentos que pudessem abarcar o homem como um todo, para superar a visão ingênua da realidade, para não reproduzi-la simplesmente.
 [...] Na medida em que o compromisso não pode ser um ato passivo, mas práxis – ação e reflexão sobre a realidade – inserção nela, ele implica indubitavelmente um conhecimento da realidade. Se o compromisso só é válido quando está carregado de humanismo, este, por sua vez, só é consequente quando está fundado cientificamente. [...] está a exigência de seu constante aperfeiçoamento, de superação do especialismo, que não é o mesmo que especialidade. O profissional deve ir ampliando seus conhecimentos em torno do homem, de sua forma de estar no mundo, substituindo por uma visão crítica a visão ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos. (FREIRE, 1981, p. 21).

Os conteúdos culturais em conexão aos conhecimentos científico, filosófico e artístico, são essenciais para a elaboração da criticidade por parte do aluno. É a possibilidade de conceder sentido para o seu processo de aprendizagem. É a consciência de seu cotidiano marcado por contradições e desafios políticos. E é importante ressaltar que o estudo destes conteúdos devem estar claros quanto a uma abordagem que contemple a diversidade em seus múltiplos sentidos rechaçando qualquer sistema hierárquico de dominação cultural que se apresente, conforme podemos ler em orientações do MEC-Ministério da Educação:
[...] a inserção da diversidade nos currículos implica compreender as causas políticas, econômicas e sociais de fenômenos como etnocentrismo, racismo, sexismo, homofobia e xenofobia. Falar de diversidade e diferença implica posicionar-se contra processos de colonização e dominação. É perceber como, nesses contextos, algumas diferenças foram naturalizadas e inferiorizadas sendo, portanto, tratadas de forma desigual e discriminatória. (BRASIL, 2007)

A escola, portanto, tem a missão de abarcar a totalidade do conhecimento para dar conta do cotidiano, ou seja, a totalidade deve ser a marca desta educação emancipatória como podemos ler em documento da SEED/Paraná:
[...] A produção científica, as manifestações artísticas e o legado filosófico da humanidade, como dimensões para as diversas disciplinas do currículo, possibilitam um trabalho pedagógico que aponte na direção da totalidade do conhecimento e sua relação com o cotidiano. (PARANÁ, 2008, p.21.)

Isto que é vislumbrado em nossas diretrizes da disciplina de História (SEED/PR, 2008), mas em comum também nas diretrizes das demais disciplinas, é compreendido como uma exigência para os docentes no desenvolvimento de suas práticas pedagógicas. Quando tratam dos problemas contemporâneos e de diversidade a serem abordados em sala de aula, as Diretrizes da disciplina de História– texto comum às demais diretrizes, esclarecem que os problemas em questão devem receber “[...] um tratamento metodológico adequado, de forma contextualizada [...] sob o rigor de seus referenciais teórico-conceituais”. (PARANÁ, 2008, p.26).
O texto deixa claro que não devemos trabalhar os conteúdos de diversidade e contemporâneos em desconexão aos conteúdos específicos de nossas disciplinas curriculares. Ao contrário, devemos fazer a devida conexão no sentido mesmo que os conteúdos específicos de cada disciplina ganhem vida ao possibilitarem aos nossos alunados ampliarem a sua visão e compreensão do mundo complexo que os rodeiam e no qual estão inseridos, para nele poderem intervir.
A ideia central dessa reflexão é que o professor não pode isentar-se da sua missão de trabalhar conhecimento científico e conteúdo cultural em sala de aula. Não pode negar-se a trabalhar temas contemporâneos ou de diversidade que devem ser abordados no sentido de mitigar as violências reproduzidas na sociedade contra vários segmentos da população. Isto é dizer, em outras palavras: apenas o conhecimento poderá ser capaz de lançar uma luz de humanização sobre o homem em vias de desumanização. A educação tem um papel fundamental nessa tarefa.



3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quero finalizar este artigo mostrando o exemplo da urgência de um tema transversal ou problema contempor6ano que deveria ser tratado em sala de aula com a seriedade devida: a “violência contra mulher”.
Todos os dias, em média, treze mulheres são assassinadas no Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para cada conjunto de 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), registrados no “Ätlas da Violência”. (CERQUEIRA et al., 2016).
            Os dados gerais do Atlas da Violência – 2016, demonstram que o Brasil é um país extremamente violento, com altas taxas de homicídios, que atingem mais homens, negros e pobres. Em uma sociedade com forte grau de valores machistas arraigados à cultura, o feminicídio ainda está longe de um enfrentamento eficaz: "[...] o debate em torno da violência contra a mulher por vezes fica invisibilizado diante dos ainda maiores números da violência letal entre homens, ou mesmo pela resistência em reconhecer este tema como um problema de política pública." (CERQUEIRA et al., 2016. p.29).
Na verdade, o feminicídio é apenas a forma mais letal da violência contra mulher. A violência de gênero ocorre em um ciclo vicioso que vai desde a violência moral, chegando à violência física por meio de estupros, agressões e, por fim, morte.
            No Atlas da violência de 2016, há uma conclusão pertinente a esta nossa reflexão: “[...] os dados [....] só reforçam a importância de políticas públicas focalizadas no combate à violência contra mulher. Trata-se de um fenômeno distinto da violência letal que atinge os jovens do sexo masculino [...]”. (CERQUEIRA et al., 2016. p.29).
            Apesar do “Atlas” reconhecer que as causas são culturais, quando analisamos as propostas de enfrentamento à violência contra mulher no “Atlas da Violência - 2016” (CERQUEIRA et al., 2016), percebemos que são mancas na medida que acabam identificando o fenômeno apenas como sendo de responsabilidade de instituições jurídicas, policiais ou de saúde. Podemos compreender as ações destas instituições muito mais como punitivas à violência já efetivada do que propriamente como ações preventivas com as quais não seriam necessárias as punitivas, ou com as quais poderíamos mitigar em grande parte o poder deste tipo de violência na sociedade.
            O próprio “Atlas da Violência” recorda que apesar das promulgações em 2006, da Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), e no ano de 2015 da Lei 13.104, de 9 de Março, que torna o feminicídio crime hediondo e representa um marco político e histórico na luta pelos direitos das mulheres; não tivemos uma contenção considerável da violência contra a mulher. (CERQUEIRA et al., 2016. p.26).
            Obviamente esta nossa reflexão nos remete para ações preventivas que passem pela escola. Urge que o tema da violência contra mulher faça parte dos conteúdos dos processos de ensino e aprendizagem em todas as disciplinas da educação básica e superior.
            Violência contra mulher não é um tema de fácil domínio, é complexo. Este tipo de violência é desencadeado dentro de um conjunto de valores culturais que foram construídos ao longo da história e que uma vez hierarquizados cederam um lugar de inferioridade às mulheres na pirâmide social.
            Falar de violência contra mulher requer um conhecimento vasto de fenômenos culturais como machismo, racismo, etnocentrismo, lesbofobia, transfobia, de outras formas de desigualdades. Preconceitos, discriminações, conflitos oriundos da disputa por poder tanto nos âmbitos do privado quanto do público, são apenas ingredientes de um processo histórico-cultural que relegou um lugar de inferioridade às mulheres, conforme já constatava Simone de Beauvoir: "A mulher [...] permanecerá até os dias de hoje submetida à vontade do homem". (1970, p101).
            Para compreender essa violência, Beauvoir (1970) é muito feliz quando explica uma igualdade abstrata existente nas relações entre homem e mulher, que se choca com a desigualdade concreta entre os mesmos, quando diz que: “[...] ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade.” (BEAUVOIR, p.20, 1970). Em seguida, ela conclui que o homem só considera a igualdade de gênero no que lhe convém, “[...] Mas, logo que entra em conflito com a mulher a situação se inverte: ele tematiza a desigualdade concreta e dela tira autoridade para negar a igualdade abstrata. [...].” (BEAUVOIR, p.20, 1970).
            Beauvoir (1970) considera que o ser feminino é o ser imerso no infinito drama de ser algo que ainda não se é: “[...] O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial.” (BEAUVOIR, p.20, 1970).
            Ainda aproveitando as contribuições que a autora citada acima nos oferece, é importante destacar uma passagem de sua obra “O segundo sexo: Fatos e Mitos”, onde ela faz citações de Laforgue para destacar a importância de reconhecermos a mulher em sua individualidade de forma que ela não se perca em nossas ideias de igualdade de gênero: "'Ó moças, quando sereis nossos irmãos, nossos irmãos íntimos sem segunda intenção de exploração? Quando nos daremos o verdadeiro aperto de mãos? [...]. Então ela será plenamente um ser humano "[...] quando se quebrar a escravidão infinita da mulher, quando ela viver por ela e para ela [...]. (BEAUVOIR, p.307, 1970).
Já chamei a atenção para o fato de que a violência contra a mulher é um grave problema social que tem raízes profundas nos valores culturais de nossa sociedade. Os autores Martins, Angotti; Mafioletti (2009), compreendem a violência contra a mulher como um problema de saúde pública. Portanto, um fenômeno social.
Se é uma violência que deve mobilizar os meios policiais, jurídicos e de saúde pública, a questão central que nos interessa aqui neste artigo é saber em que medida o tema é relevante para abordagem nos processos ensino e aprendizagem desenvolvidos em nossas instituições educacionais. Pretende-se aqui justamente explorarmos quais poderiam ser as contribuições do ensino nas escolas para um enfrentamento da violência de gênero.
Martins; Angotti; Mafiolletti (2009), pontuam que:
“(...) violência contra a mulher requer uma abordagem múltipla que englobe aspectos históricos, sociais, jurídicos e médicos. A violência contra a mulher assume diferentes formas, exigindo assim uma análise cuidadosa que atente para as peculiaridades de cada uma: física, psicológica, patrimonial, sexual e moral. As vítimas são mulheres de todos os ciclos de vida, classes sociais, raças e etnias no Brasil e no mundo (...). (2009, p.99).

Corroborando com este entendimento das autoras, Freitas move esta abordagem da violência contra a mulher para o centro das atividades pedagógicas desenvolvidas em nossas escolas:
A escola, enquanto espaço social de convivência e de construção de significados éticos necessários e constitutivos de toda ação de cidadania, cabe ainda a tarefa de trabalhar a dimensão ética da formação dos alunos. Discussões sobre a dignidade do ser humano, a igualdade de direitos, a recusa categórica e o combate a todas as formas de discriminação, a importância da solidariedade e da observância às leis, são temas que ganham relevância no universo escolar o qual, até há bem pouco tempo, se preocupava muito mais com os conteúdos específicos de cada matéria escolar.  Portanto o papel da escola não é simplesmente o ensino do conhecimento cognitivo, mas também o lugar onde se ensina a ética, a cidadania e os conceitos de convivência social. É também um lugar onde o respeito e a boa educação devem ser constantes, tanto por partes dos educandos, como também, por parte de profissionais da educação. (FREITAS, 2014)

A violência contra a mulher ou violência de gênero, enquanto conteúdo escolar, se enquadra naquilo que encontramos em nossos documentos educacionais como sendo conteúdos transversais. O entendimento geral é o de que estes conteúdos que envolvem aspectos específicos sociais e culturais não podem ser esgotados pelo trabalho de uma única disciplina escolar, vez que exigem uma mobilização interdisciplinar.
Ressalvo o aspecto de que o tratamento a conteúdos culturais exige dos educadores conhecimento acerca dos mesmos, exige uma criticidade capaz de desconstruir “raízes” das violências que se apresentam como atentado aos direitos humanos, à dignidade da pessoa humana.
Desconstruir a violência contra mulher, por exemplo exige conhecer o lugar da mulher em nossa cultura e nas origens da mesma. A francesa Michele Perrot, foi a historiadora que colocou as mulheres em seu devido lugar na ciência recriadora da História. A mulher culturalmente sempre esteve à margem da vida em sociedade, não poderia ser diferente o seu lugar quando do registro da história pelos “historiadores”: Perrot lembra que: "Da História, muitas vezes a mulher é excluída." O “ofício do historiador" é um ofício de homens que escreve a história no masculino". (PERROT, 2006, p.185).
Perrot, e seu reconhecido trabalho de lançar luzes sobre as mulheres na história, é um excelente referencial de pesquisa para compreendermos os processos de lutas irrompidas pela organização de mulheres politizadas em todos os tempos da história, mas especialmente, a partir do século XIX.
Passado mais de um século desde que tivemos a instituição do dia 08 de março como sendo uma data no calendário reservada para uma reflexão sobre as relações de gênero e, especialmente, um momento oportuno para rever avanços e retrocessos na garantia dos direitos femininos, ainda temos uma sociedade organizada a partir de uma cultura hierarquizada que continua tratando a mulher como indivíduo em grau de inferioridade e subordinada ao gênero masculino.
Uma das bandeiras levantadas pelas mulheres no final do Século XIX e início do XX, a igualdade salarial, ainda se apresenta hoje como um problema na realidade brasileira quando mulheres recebem salários inferiores aos dos homens entre 30 e 40%. Este absurdo contemporâneo é apenas o “iceberg” de uma série de violências praticadas contra as mulheres.
Toda violência contra mulher, seja ela econômica, trabalhista, social, patrimonial, moral, psicológica, física, entre outras, podemos colocar na conta da cultura. Logo, a História enquanto disciplina tem muito a contribuir com a possibilidade de compreender a essência desta cultura machista simbolicamente de morte para as mulheres e repensar a desconstrução da mesma.
A condição da mulher Ocidental hoje está orientada de acordo com Perrot (2006), pela relação dos homens e mulheres com o “poder” ao longo da história. É o poder centralmente apresentado como masculino. Porém, das margens, da “periferia” do poder levanta-se a mulher para que por meio de um “poder” mais arejado, tenhamos a possibilidade de uma igualdade utópica de seu exercício. (PERROT, 2006, p.185).
Em suma, fica aqui, em aberto, o desafio que deve provocar em professores e professoras o esforço pedagógico, intelectual e humanizador, capaz de dar sentido aos estudos das nossas diversas disciplinas ao trazer os problemas contemporâneos ou transversais que considerem a cultura como objeto de estudo e reflexão.


REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 36.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. Trad. Sergio Milliet. Paris: Librairie Gallimard / Difusão Européia do Livro, 1970

CERQUEIRA, Daniel; FERREIRA, Helder; et al. Nota Técnica: Atlas da Violência 2016. N. 17. IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)-  Brasília, março de 2016.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, ética / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1997. 146p.

______. Ministério da Educação e Cultura. Indagações sobre currículo: Diversidade e Currículo. Brasília, 2007. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/indag4.pdf. Acesso em: 08 abr. 2017.

______.  Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº 7, de 14/12/2010. Fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 anos. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb007_10.pdf . Acesso em: 28 Mar. 2017.

______.Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. p. 27-29.

<, "sans-serif";">FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 36.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

FREITAS, Sirley Leite. Violação dos direitos humanos no espaço escolar. Ouro Preto do Oeste/RO, UNEOURO, 2014. Disponível em: <http://faculdade.uneouro.edu.br/index.php/biblioteca/artigos/196-artigo-violacao-dos-direitos-humanos-no-espaco-escolar>. Acesso em: 21 Mar. 2017.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Trad. De Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2003.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de janeiro: Jorge Zahar editor, 2001.

MARTINS, A. L.; ANGOTTI, B. e MAFIOLETTI, T. M. Violência contra a mulher: um problema de saúde pública. p. 99-108. In.: PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação. Caderno Temático de Sexualidade. Curitiba: Imprensa Oficial, 2009, 216 p.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da rede pública de educação básica do Estado do Paraná: História. Curitiba: SEED, 2008.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: Operários, mulheres, prisioneiros. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

SANTOMÉ, J.T. As culturas negadas e silenciadas no currículo.in: SILVA. T.T. (Org.). Alienígenas em sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995.



[1] Freire entendia o “método bancário” como a prática pedagógica baseada no depósito de informações em receptáculos passivos. Há uma cisão na relação intersubjetiva entre educador e educandos. O primeiro atua como profissional do “depósito” de conhecimentos abstratos que o sistema entende serem necessários dos estudantes possuírem para adequarem-se à realidade social.

***************


SUGESTÃO DE LEITURA E DE LIVRO (pdf) PARA BAIXAR GRÁTIS: Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade. No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política. 
CLIQUE AQUI para baixar os dois livros completos, ou: AQUI: 1°volume;  AQUI: 2° volume. 

Publicação original:https://cpalexandria.wordpress.com/

Nenhum comentário: