OS CONTEÚDOS TRANSVERSAIS:
PROBLEMATIZAÇÃO A PARTIR DA CISÃO ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA
Autoria: Me. Lucio Lopes (L.L.L.)
Autoria: Me. Lucio Lopes (L.L.L.)
RESUMO
Minha
experiência como docente na educação básica me possibilita afirmar que os
conteúdos “transversais”, que aqui no Estado do Paraná chamamos de problemas ou
desafios contemporâneos, ainda que estejam nas propostas pedagógicas como
obrigatórios para todas as disciplinas, encontra um certo desprezo que se
perpetua na prática pedagógica por meio de uma cisão entre aquilo que chamamos
de Cultura Acadêmica e aquilo que entendemos por Cultura Popular. Ora, não é
esta cisão uma grande contradição? Eu diria que sim desde a compreensão de que
a educação institucional tem por objetivo final justamente possibilitar aos
educandos uma capacidade crítica capaz de mobilizar saberes que perpassam
obrigatoriamente estas culturas a fim de observar e ler, de levantar problemas,
reelaborar problemas, desenvolver respostas inovadoras para os mesmos e
desenvolver a capacidade para intervir na realidade a fim de recriá-la. É desta
percepção subjetiva que nasce a proposta deste artigo que pretende refletir de
maneira dedutiva as “deficiências” das atividades pedagógicas que não conseguem
ainda sanar esta explicita cisão entre os conteúdos programáticos das
disciplinas e aqueles oriundos de problemas do cotidiano. A questão
contemporânea da violência contra mulher servirá como elemento norteador para refletirmos
o problema e lançar luzes para inovar nossas práticas visando superação dessa
demanda pedagógica. Este artigo quer ser uma proposta instigadora de reflexão
acerca do problema desta cisão e, para tanto, o caráter de cientificidade do
mesmo repousará sobre algumas fontes documentais e literárias. Portanto, uma
revisão bibliográfica.
PALAVRAS-CHAVE: Educação. Cultura. Transversal.
Reflexão. Crítica.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade atual apresenta-se como um palco onde
se sucedem uma peça teatral após a outra. Esta metáfora, aponta para as
mudanças culturais que ocorrem numa velocidade na qual a educação formal ou
institucional não consegue acompanhar.
Globalização econômica e cultural, sociedade da
informação, mudanças nas relações de trabalho, exigências de novas competências
do trabalhador com as inovações tecnológicas, acesso em tempo real à informação
nas mãos das pessoas, crise ambiental, crise política, crise bélica mundial,
aprofundamento das desigualdades sociais, diversidades e o empoderamento de
novos sujeitos contra as perspectivas tradicionais, são alguns dos aspectos
destas mudanças.
Os profissionais da educação, porém, em grande
parte, apresentam muitas dificuldades em compreender o seu papel mediador com
seus alunados para refletirem estes aspectos que incidem diretamente sobre suas
vidas.
Destas dificuldades, eu elencaria aqui dois objetos
interessantes para nossa reflexão: os desafios frente às novas tecnologias e os
problemas oriundos dos conflitos culturais. Fico com o segundo. Neste artigo ofereço
uma breve reflexão sobre as dificuldades que há nas escolas quanto ao trabalho
com conteúdos culturais de variadas matizes como, econômica, social, tradição,
crenças religiosas, diversidade, e outros.
2 A RESISTÊNCIA AOS “TEMAS TRANSVERSAIS”
NA ESCOLA
Por tratarem de questões culturais,
sociais e de diversidade, os Temas Transversais têm natureza diferente das
áreas convencionais. Sua complexidade faz com que nenhuma das áreas da Ciência,
isoladamente, seja suficiente para abordá-los. Ao contrário, a problemática dos
Temas Transversais atravessa os diferentes campos do conhecimento. Por exemplo,
a questão ambiental não é compreensível apenas a partir das contribuições da
Geografia. Necessita de conhecimentos históricos, das Ciências Naturais, da
Sociologia, da Demografia, da Economia, entre outros.
Por outro lado, nas várias áreas do
currículo escolar existem, implícita ou explicitamente, ensinamentos a respeito
dos temas transversais, isto é, todas educam em relação a questões sociais por
meio de suas concepções e dos valores que veiculam. No mesmo exemplo, ainda que
a programação desenvolvida não se refira diretamente à questão ambiental e a
escola não tenha nenhum trabalho nesse sentido, Geografia, História e Ciências
Naturais sempre veiculam alguma concepção de ambiente e, nesse sentido,
efetivam uma certa educação ambiental (BRASIL, 1997. p.29).
Diante desta
problematização dos tema transversais recordamos uma crítica do professor
espanhol Jurjo Torres Santomé (1995), feita à escola tradicional, que ainda se
faz muito presente nos dias atuais. Tradicional no sentido que nossas escolas
ainda estão muito presas a dar grande ênfase aos conteúdos apresentados em
pacotes disciplinares, não conseguem que os alunos vejam esses conteúdos como
parte do seu próprio mundo, em uma visão totalizante em conexões.
A escola
deveria potencializar os alunos a partir da capacidade de conectar, mobilizar,
os conteúdos acadêmicos com os culturais, para que fossem capazes de intervirem
socialmente em função de transformar o que precisa ser mudado nas suas
realidades cotidianas (SANTOMÉ, 1995). Esta não apropriação reside no problema
do modelo formativo de nossos atuais docentes:
[...] o professorado atual é fruto de modelos de
socialização profissional que lhe exigiam unicamente prestar atenção à
formulação de objetivos e metodologias, não considerando objeto de sua
incumbência a seleção explícita dos conteúdos culturais. [...] Em muitas
ocasiões os conteúdos são contemplados pelo alunado como fórmulas vazias, sem
sequer a compreensão de seu sentido. Ao mesmo tempo, criou-se uma tradição na
qual os conteúdos apresentados nos livros didáticos aparecem como os únicos
possíveis. Como consequência, quando um professor se pergunta que outros
conteúdos poderiam ser incorporados ao trabalho de sala de aula, encontra
dificuldade para pensar em conteúdos diferentes dos tradicionais. (SANTOMÉ,
1995, p. 156-157)
Fica claro
na crítica de Santomé (1995) uma realidade fordista da educação que não
contempla o todo senão que apenas permite, no máximo, que se extraia dos
alunos, após o processo ensino e aprendizagem, um saber que atenda apenas aos
interesses da ordem social dominante. Portanto, um saber não problematizador,
não crítico, não criador, não desestabilizador. Completamente o avesso do
“homem rebelde e indócil” defendido por Freire (1981) como protagonista das
transformações necessárias.
Esta
necessidade de conexão entre conteúdos disciplinares específicos com conteúdos
culturais, reclamada por Santomé (1995) também está muito clara nas Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais da Educação Básica (BRASIL, 2013) como uma exigência para os
docentes. Há neste documento um trecho em que é abordada a dimensão pedagógica
da transversalidade. Parece que o texto confere à interdisciplinaridade um
papel teórico, como visão de mundo, “uma compreensão interdisciplinar do
conhecimento”, enquanto que a transversalidade seria a efetivação prática desse
conceito:
A
transversalidade orienta para a necessidade de se instituir, na prática
educativa, uma analogia entre aprender conhecimentos teoricamente
sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real
(aprender na realidade e da realidade). Dentro de uma compreensão
interdisciplinar do conhecimento, a transversalidade tem significado, sendo uma
proposta didática que possibilita o tratamento dos conhecimentos escolares de
forma integrada. Assim, nessa abordagem, a gestão do conhecimento parte do
pressuposto de que os sujeitos são agentes da arte de problematizar e
interrogar, e buscam procedimentos interdisciplinares capazes de acender a
chama do diálogo entre diferentes sujeitos, ciências, saberes e temas. (BRASIL,
2013, p.27)
Na
resolução CNE/CEB nº 7/2010 voltada para a educação básica fundamental temos
uma compreensão mais ampla dessa relação entre educação e cultura como uma
exigência intrínseca ao processo de ensino e aprendizagem. Dois trechos do
documento nos são muito esclarecedores:
[...]
Os conteúdos que compõem a base nacional comum e a parte diversificada têm
origem nas disciplinas científicas, no desenvolvimento das linguagens, no mundo
do trabalho, na cultura e na tecnologia, na produção artística, nas atividades
desportivas e corporais, na área da saúde e ainda incorporam saberes como os
que advêm das formas diversas de exercício da cidadania, dos movimentos
sociais, da cultura escolar, da experiência docente, do cotidiano e dos alunos.
[...] Como protagonistas das ações pedagógicas, caberá aos docentes equilibrar
a ênfase no reconhecimento e valorização da experiência do aluno e da cultura
local que contribui para construir identidades afirmativas, e a necessidade de
lhes fornecer instrumentos mais complexos de análise da realidade que
possibilitem o acesso a níveis universais de explicação dos fenômenos,
propiciando-lhes os meios para transitar entre a sua e outras realidades e
culturas e participar de diferentes esferas da vida social, econômica e política. (BRASIL, 2010, p. 4 e 7).
Fica
explícito nos textos acima que a escola se constitui em um espaço de poder.
Alerta para o fato de que o conhecimento se dá por meio de processos que devem
considerar as intersubjetividades envolvidas, a escola é o espaço por
excelência para o diálogo intercultural. Como vimos até aqui o diálogo
intercultural no espaço escolar deve valorizar a diversidade e priorizar a
existência do outro como elemento de existência de si próprio.
Não se pode
valorizar uma forma de vida, uma cultura ou um pensamento único. Neste caso, o
respeito à dignidade humana, que exige o respeito cultural e o conhecimento
mútuo, exige que resistamos à tentação de impor aos outros nossa cultura como
modelo de convivência humana”.
O
antropólogo e professor emérito da Universidade de Brasília, Laraia (2001),
lembra que na atualidade, há um entendimento geral nos meios acadêmicos de que
a cultura é um produto humano resultado de milênios, ou séculos, ou anos, de
acúmulo de experiências compartilhadas por uma diversidade de grupos humanos
interagindo entre si. Logo, se a cultura é compartilhada, é por meio de
processos de aprendizagem. Portanto, se a cultura é produto humano, então é
histórico-social o processo de sua constituição.
Para
Laraia, a cultura é criação coletiva voltada para a comunidade e que ajuda na
instrumentalização dos indivíduos para viverem em sociedade:
O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os
diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim
produto de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma
determinada cultura. [...] indivíduos de culturas diferentes podem ser
facilmente identificados por uma série de características, tais como o modo de
agir, vestir, caminhar, comer, sem mencionar a evidência das diferenças
linguísticas, o fato da mais inédita observação empírica (LARAIA, 2001, p.68,
grifo nosso).
Nesta
mesma perspectiva de Laraia, o pesquisador francês em etnologia e em
antropologia Laplantine, compreende que é difícil conceber uma definição que
seja absolutamente satisfatória para cultura. Laplantine (2003), também, por
sua vez, tenta oferecer uma definição a partir da distinção entre o “social” e
a “cultura”:
O
social é a totalidade das relações (relações de produção, de exploração, de dominação...)
que os grupos mantêm entre si dentro de um mesmo conjunto (etnia, região,
nação...) e para com outros conjuntos, também hierarquizados. A cultura por sua
vez não é nada mais que o próprio social, mas considerado dessa vez sob o
ângulo dos caracteres distintivos que apresentam os comportamentos individuais
dos membros desse grupo, bem como suas produções originais (artesanais,
artísticas, religiosas...). [...] trata-se do social tal como pode ser
apreendido através dos comportamentos particulares dos membros de uma
determinada cultura, de pensar, de encontrar, trabalhar, se distrair, reagir
frente aos acontecimentos (por exemplo, o nascimento, a doença, a morte).[...]
a cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer característicos
de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de
aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus membros (LAPLANTINE, 2003,
p. 95-96, grifo nosso).
Depreende-se
destes referenciais que a cultura molda os costumes e em uma hierarquização que
trabalha com os conceitos padrões de normalidade e anormalidade, estabelece o
bem a ser promovido e o mal a ser evitado. A cultura é herdada e transmitida de
pais para filhos a fim de organizar os comportamentos esperados dos homens em
sociedade. A cultura tem o poder tanto de humanizar quanto de desumanizar. Ela
é dinâmica e, por isso mesmo, passível de ser mudada, de ser transformada para
melhor. Aqui entra o papel da educação: valorizar os aspectos positivos da cultura
e eliminar tudo aquilo que na cultura se converte em ameaça às pessoas.
Mas para que
estes objetivos sejam contemplados é necessário que a escola cumpra com sua
função emancipatória de nossos alunos. Este conceito é claro pode nos remeter a
vários autores, mas nem um como o pensador Paulo Freire foi fundamental para
uma compreensão do mesmo dentro da realidade educacional brasileira.
Em sua obra
fundamental, Pedagogia do Oprimido, de 1970, encontram-se os eixos centrais sob
os quais são realizadas suas reflexões: a humanização é a vocação humana
básica, apesar de que essa vocação é constantemente ameaçada por inúmeras
formas sociais e culturais de opressão, que desumanizam as pessoas. Em relação
a isso Freire (2003, p.30) alerta: “[...] Mas, enquanto a humanização e a
desumanização são alternativas reais, só a primeira é a vocação do homem”.
O sentido da
educação de acordo com Freire (2003) deve ser construído sob a base dos anseios
por liberdade, por justiça, em busca de recuperar a humanidade roubada. Isso
quer dizer que as pessoas são capazes de mudar sua realidade. Podemos
tornar-nos criadores de nossa cultura, e não meras criaturas determinadas por
ela. Podemos deter uma consciência crítica de nossa realidade a ponto de agir
para mudá-la.
Uma outra
ideia freireana (FREIRE, 2003) nos é muito salutar: a educação nunca é neutra,
tem sempre consequências políticas. Essas consequências podem ser um moldar o
sujeito de forma que se adapte no conformismo com a sociedade existente.
Resumindo a
teoria educacional de Paulo Freire (2003) a educação deve ser um exercício de
liberdade. Portanto, a educação não pode ser praticada por meio de um “método
bancário”[1], mas sim de
um método que considere a “resolução de problemas”. A conscientização, para
Freire (2003), é um processo de decodificação da realidade, desnudando-a de tal
forma que se chegue a conhecer os mitos que iludem e perpetuam a estrutura
dominante de modo que as pessoas se disponham a mudar essa realidade no sentido
da humanização.
A opressão,
de acordo com Freire (2003, p. 65) “é um controle esmagador, é necrófila.
Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida.” Para escapar ao seu jugo,
devemos emergir dela e voltar-nos contra ela. Isto só pode ser conseguido por
meio da práxis: reflexão e ação sobre
o mundo para transformá-lo.
Portanto, o
papel do educador é estar com, em vez
de estar acima das pessoas,
capacitando-as a dar nome ao seu mundo e, através do diálogo, chegar a agir
criativamente sobre a realidade histórica.
A
metodologia freireana é a “resolução de problemas” num plano de totalidade.
Quando somos capazes de uma educação da práxis em que teoria e prática
encontram-se em uma relação dialética dependente, nos tornamos assim capazes de
perceber que o problema X do qual nos ocupamos encontra-se em conexão com
outros, e numa visão totalizante podemos então fazer a primeira superação que é
a da alienação.
É impossível
pensar a educação sem refletir sobre o próprio homem. De acordo com Freire
(1981) o homem enche de cultura os espaços geográficos e históricos. A cultura
consiste em recriar e não repetir. A educação precisa ganhar um caráter de
subversividade, pois
não pode constituir-se em um mero meio de adaptação do homem à sociedade. A
educação precisa ter a marca da criatividade, e a cultura idem.
Ora, neste ponto de nosso artigo
querer refletir se a “violência contra a mulher” é ou não é conteúdo de domínio
da disciplina de história, seria, usando uma expressão popular, “chover fora da
horta”. Ficou claro que todo conteúdo cultural é e deve ser trabalhado em sala
de aula em conexão com os conteúdos acadêmicos das diversas especificidades
disciplinares.
Trabalhar os temas transversais em
conexão aos acadêmicos por meio de práticas metodológicas interdisciplinares.
Em trecho do documento do Ministério da Educação (MEC) (1997) podemos
compreender melhor estas relações:
A
interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os diferentes campos de
conhecimento produzida por uma abordagem que não leva em conta a inter-relação
e a influência entre eles — questiona a visão compartimentada (disciplinar) da
realidade sobre a qual a escola, tal como é conhecida, historicamente se
constituiu. Refere-se, portanto, a uma relação entre disciplinas. A
transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática
educativa, uma relação entre aprender na realidade e da realidade de
conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as
questões da vida real (aprender na realidade e da realidade) (BRASIL, 1997,
p.31).
Não é difícil compreendermos que há
dicotomias, lacunas, falhas didático-pedagógicas, epistemológicas, nas práticas
docentes. Diante desta realidade urge que nossos docentes estejam preparados
para os desafios contemporâneos que são postos para a educação na atualidade.
Formação continuada, sem dúvidas, é a palavra-chave. É preciso que nossos
docentes recebam formação adequada para que sejam capazes de abordar temas
complexos como os exigidos pelos transversais.
É nesta perspectiva que Freire (1981)
solicitava para o profissional da educação a exigência de que fosse capaz de um
aperfeiçoamento epistemológico para além das especificidades de sua área de
atuação. Reclamava a necessidade de uma incessante busca de ampliação de
conhecimentos que pudessem abarcar o homem como um todo, para superar a visão
ingênua da realidade, para não reproduzi-la simplesmente.
[...] Na medida em que o compromisso não pode
ser um ato passivo, mas práxis – ação e reflexão sobre a realidade – inserção
nela, ele implica indubitavelmente um conhecimento da realidade. Se o
compromisso só é válido quando está carregado de humanismo, este, por sua vez,
só é consequente quando está fundado cientificamente. [...] está a exigência de
seu constante aperfeiçoamento, de superação do especialismo, que não é o mesmo
que especialidade. O profissional deve ir ampliando seus conhecimentos em torno
do homem, de sua forma de estar no mundo, substituindo por uma visão crítica a
visão ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos. (FREIRE,
1981, p. 21).
Os conteúdos
culturais em conexão aos conhecimentos científico, filosófico e artístico,
são essenciais para a elaboração da criticidade por parte do aluno. É a
possibilidade de conceder sentido para o seu processo de aprendizagem. É a
consciência de seu cotidiano marcado por contradições e desafios políticos. E é
importante ressaltar que o estudo destes conteúdos devem estar claros quanto a
uma abordagem que contemple a diversidade em seus múltiplos sentidos rechaçando
qualquer sistema hierárquico de dominação cultural que se apresente, conforme
podemos ler em orientações do MEC-Ministério da Educação:
[...]
a inserção da diversidade nos currículos implica compreender as causas
políticas, econômicas e sociais de fenômenos como etnocentrismo, racismo,
sexismo, homofobia e xenofobia. Falar de diversidade e diferença implica
posicionar-se contra processos de colonização e dominação. É perceber como,
nesses contextos, algumas diferenças foram naturalizadas e inferiorizadas
sendo, portanto, tratadas de forma desigual e discriminatória. (BRASIL, 2007)
A escola,
portanto, tem a missão de abarcar a totalidade do conhecimento para dar conta
do cotidiano, ou seja, a totalidade deve ser a marca desta educação
emancipatória como podemos ler em documento da SEED/Paraná:
[...]
A produção científica, as manifestações artísticas e o legado filosófico da humanidade,
como dimensões para as diversas disciplinas do currículo, possibilitam um
trabalho pedagógico que aponte na direção da totalidade do conhecimento e sua
relação com o cotidiano. (PARANÁ, 2008, p.21.)
Isto que é vislumbrado em nossas
diretrizes da disciplina de História (SEED/PR, 2008), mas em comum também nas
diretrizes das demais disciplinas, é compreendido como uma exigência para os
docentes no desenvolvimento de suas práticas pedagógicas. Quando tratam dos
problemas contemporâneos e de diversidade a serem abordados em sala de aula, as
Diretrizes da disciplina de História– texto comum às demais diretrizes,
esclarecem que os problemas em questão devem receber “[...] um tratamento
metodológico adequado, de forma contextualizada [...] sob o rigor de seus
referenciais teórico-conceituais”. (PARANÁ, 2008, p.26).
O texto deixa claro que não devemos
trabalhar os conteúdos de diversidade e contemporâneos em desconexão aos
conteúdos específicos de nossas disciplinas curriculares. Ao contrário, devemos
fazer a devida conexão no sentido mesmo que os conteúdos específicos de cada
disciplina ganhem vida ao possibilitarem aos nossos alunados ampliarem a sua
visão e compreensão do mundo complexo que os rodeiam e no qual estão inseridos,
para nele poderem intervir.
A ideia central dessa reflexão é que o
professor não pode isentar-se da sua missão de trabalhar conhecimento
científico e conteúdo cultural em sala de aula. Não pode negar-se a trabalhar
temas contemporâneos ou de diversidade que devem ser abordados no sentido de
mitigar as violências reproduzidas na sociedade contra vários segmentos da
população. Isto é dizer, em outras palavras: apenas o conhecimento poderá ser
capaz de lançar uma luz de humanização sobre o homem em vias de desumanização.
A educação tem um papel fundamental nessa tarefa.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quero finalizar este artigo mostrando
o exemplo da urgência de um tema transversal ou problema contempor6ano que
deveria ser tratado em sala de aula com a seriedade devida: a “violência contra
mulher”.
Todos os dias, em média, treze
mulheres são assassinadas no Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para cada
conjunto de 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da
Organização Mundial da Saúde (OMS), registrados no “Ätlas da Violência”.
(CERQUEIRA et al., 2016).
Os
dados gerais do Atlas da Violência – 2016, demonstram que o Brasil é um país
extremamente violento, com altas taxas de homicídios, que atingem mais homens,
negros e pobres. Em uma sociedade com forte grau de valores machistas
arraigados à cultura, o feminicídio ainda está longe de um enfrentamento
eficaz: "[...] o debate em torno da violência contra a mulher por vezes
fica invisibilizado diante dos ainda maiores números da violência letal entre
homens, ou mesmo pela resistência em reconhecer este tema como um problema de política
pública." (CERQUEIRA et al., 2016. p.29).
Na verdade, o feminicídio é apenas a
forma mais letal da violência contra mulher. A violência de gênero ocorre em um
ciclo vicioso que vai desde a violência moral, chegando à violência física por
meio de estupros, agressões e, por fim, morte.
No
Atlas da violência de 2016, há uma conclusão pertinente a esta nossa reflexão:
“[...] os dados [....] só reforçam a importância de políticas públicas
focalizadas no combate à violência contra mulher. Trata-se de um fenômeno
distinto da violência letal que atinge os jovens do sexo masculino [...]”.
(CERQUEIRA et al., 2016. p.29).
Apesar do “Atlas” reconhecer que as
causas são culturais, quando analisamos as propostas de enfrentamento à
violência contra mulher no “Atlas da Violência - 2016” (CERQUEIRA et al.,
2016), percebemos que são mancas na medida que acabam identificando o fenômeno
apenas como sendo de responsabilidade de instituições jurídicas, policiais ou
de saúde. Podemos compreender as ações destas instituições muito mais como
punitivas à violência já efetivada do que propriamente como ações preventivas
com as quais não seriam necessárias as punitivas, ou com as quais poderíamos
mitigar em grande parte o poder deste tipo de violência na sociedade.
O próprio “Atlas da Violência”
recorda que apesar das promulgações em 2006, da Lei 11.340, conhecida como Lei
Maria da Penha (LMP), e no ano de 2015 da Lei 13.104, de 9 de Março, que torna
o feminicídio crime hediondo e representa um marco político e histórico na luta
pelos direitos das mulheres; não tivemos uma contenção considerável da
violência contra a mulher. (CERQUEIRA et al., 2016. p.26).
Obviamente esta nossa reflexão nos
remete para ações preventivas que passem pela escola. Urge que o tema da
violência contra mulher faça parte dos conteúdos dos processos de ensino e
aprendizagem em todas as disciplinas da educação básica e superior.
Violência contra mulher não é um
tema de fácil domínio, é complexo. Este tipo de violência é desencadeado dentro
de um conjunto de valores culturais que foram construídos ao longo da história
e que uma vez hierarquizados cederam um lugar de inferioridade às mulheres na
pirâmide social.
Falar de violência contra
mulher requer um conhecimento vasto de fenômenos culturais como machismo, racismo,
etnocentrismo, lesbofobia, transfobia, de outras formas de desigualdades.
Preconceitos, discriminações, conflitos oriundos da disputa por poder tanto nos
âmbitos do privado quanto do público, são apenas ingredientes de um processo
histórico-cultural que relegou um lugar de inferioridade às mulheres, conforme
já constatava Simone de Beauvoir: "A mulher [...] permanecerá até os dias
de hoje submetida à vontade do homem". (1970, p101).
Para compreender essa violência,
Beauvoir (1970) é muito feliz quando explica uma igualdade abstrata existente
nas relações entre homem e mulher, que se choca com a desigualdade concreta
entre os mesmos, quando diz que: “[...] ninguém é mais arrogante em relação às
mulheres, mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua
virilidade.” (BEAUVOIR, p.20, 1970). Em seguida, ela conclui que o homem só
considera a igualdade de gênero no que lhe convém, “[...] Mas, logo que entra
em conflito com a mulher a situação se inverte: ele tematiza a desigualdade
concreta e dela tira autoridade para negar a igualdade abstrata. [...].”
(BEAUVOIR, p.20, 1970).
Beauvoir (1970) considera que o ser
feminino é o ser imerso no infinito drama de ser algo que ainda não se é:
“[...] O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de
todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação
que a constitui como inessencial.” (BEAUVOIR, p.20, 1970).
Ainda aproveitando as contribuições
que a autora citada acima nos oferece, é importante destacar uma passagem de
sua obra “O segundo sexo: Fatos e Mitos”, onde ela faz citações de Laforgue
para destacar a importância de reconhecermos a mulher em sua individualidade de
forma que ela não se perca em nossas ideias de igualdade de gênero: "'Ó
moças, quando sereis nossos irmãos, nossos irmãos íntimos sem segunda intenção
de exploração? Quando nos daremos o verdadeiro aperto de mãos? [...]. Então ela
será plenamente um ser humano "[...] quando se quebrar a escravidão
infinita da mulher, quando ela viver por ela e para ela [...]. (BEAUVOIR,
p.307, 1970).
Já chamei a atenção para o fato de que
a violência contra a mulher é um grave problema social que tem raízes profundas
nos valores culturais de nossa sociedade. Os autores Martins, Angotti;
Mafioletti (2009), compreendem a violência contra a mulher como um problema de
saúde pública. Portanto, um fenômeno social.
Se é uma violência que deve mobilizar
os meios policiais, jurídicos e de saúde pública, a questão central que nos
interessa aqui neste artigo é saber em que medida o tema é relevante para
abordagem nos processos ensino e aprendizagem desenvolvidos em nossas
instituições educacionais. Pretende-se aqui justamente explorarmos quais
poderiam ser as contribuições do ensino nas escolas para um enfrentamento da
violência de gênero.
Martins; Angotti; Mafiolletti (2009),
pontuam que:
“(...)
violência contra a mulher requer uma abordagem múltipla que englobe aspectos
históricos, sociais, jurídicos e médicos. A violência contra a mulher assume
diferentes formas, exigindo assim uma análise cuidadosa que atente para as
peculiaridades de cada uma: física, psicológica, patrimonial, sexual e moral.
As vítimas são mulheres de todos os ciclos de vida, classes sociais, raças e
etnias no Brasil e no mundo (...). (2009, p.99).
Corroborando com este entendimento das
autoras, Freitas move esta abordagem da violência contra a mulher para o centro
das atividades pedagógicas desenvolvidas em nossas escolas:
A
escola, enquanto espaço social de convivência e de construção de significados
éticos necessários e constitutivos de toda ação de cidadania, cabe ainda a
tarefa de trabalhar a dimensão ética da formação dos alunos. Discussões sobre a
dignidade do ser humano, a igualdade de direitos, a recusa categórica e o
combate a todas as formas de discriminação, a importância da solidariedade e da
observância às leis, são temas que ganham relevância no universo escolar o
qual, até há bem pouco tempo, se preocupava muito mais com os conteúdos
específicos de cada matéria escolar. Portanto o papel da escola não é
simplesmente o ensino do conhecimento cognitivo, mas também o lugar onde se
ensina a ética, a cidadania e os conceitos de convivência social. É também um
lugar onde o respeito e a boa educação devem ser constantes, tanto por partes dos
educandos, como também, por parte de profissionais da educação. (FREITAS, 2014)
A violência contra a mulher ou
violência de gênero, enquanto conteúdo escolar, se enquadra naquilo que
encontramos em nossos documentos educacionais como sendo conteúdos
transversais. O entendimento geral é o de que estes conteúdos que envolvem
aspectos específicos sociais e culturais não podem ser esgotados pelo trabalho
de uma única disciplina escolar, vez que exigem uma mobilização
interdisciplinar.
Ressalvo o aspecto de que o tratamento
a conteúdos culturais exige dos educadores conhecimento acerca dos mesmos,
exige uma criticidade capaz de desconstruir “raízes” das violências que se
apresentam como atentado aos direitos humanos, à dignidade da pessoa humana.
Desconstruir a violência contra
mulher, por exemplo exige conhecer o lugar da mulher em nossa cultura e nas
origens da mesma. A francesa Michele Perrot, foi a historiadora que colocou as
mulheres em seu devido lugar na ciência recriadora da História. A mulher
culturalmente sempre esteve à margem da vida em sociedade, não poderia ser
diferente o seu lugar quando do registro da história pelos “historiadores”:
Perrot lembra que: "Da História, muitas vezes a mulher é excluída." O
“ofício do historiador" é um ofício de homens que escreve a história no
masculino". (PERROT, 2006, p.185).
Perrot, e seu reconhecido trabalho de
lançar luzes sobre as mulheres na história, é um excelente referencial de
pesquisa para compreendermos os processos de lutas irrompidas pela organização
de mulheres politizadas em todos os tempos da história, mas especialmente, a
partir do século XIX.
Passado mais de um século desde que
tivemos a instituição do dia 08 de março como sendo uma data no calendário
reservada para uma reflexão sobre as relações de gênero e, especialmente, um
momento oportuno para rever avanços e retrocessos na garantia dos direitos
femininos, ainda temos uma sociedade organizada a partir de uma cultura
hierarquizada que continua tratando a mulher como indivíduo em grau de
inferioridade e subordinada ao gênero masculino.
Uma das bandeiras levantadas pelas
mulheres no final do Século XIX e início do XX, a igualdade salarial, ainda se
apresenta hoje como um problema na realidade brasileira quando mulheres recebem
salários inferiores aos dos homens entre 30 e 40%. Este absurdo contemporâneo é
apenas o “iceberg” de uma série de violências praticadas contra as mulheres.
Toda violência contra mulher, seja ela
econômica, trabalhista, social, patrimonial, moral, psicológica, física, entre
outras, podemos colocar na conta da cultura. Logo, a História enquanto
disciplina tem muito a contribuir com a possibilidade de compreender a essência
desta cultura machista simbolicamente de morte para as mulheres e repensar a
desconstrução da mesma.
A condição da mulher Ocidental hoje
está orientada de acordo com Perrot (2006), pela relação dos homens e mulheres
com o “poder” ao longo da história. É o poder centralmente apresentado como
masculino. Porém, das margens, da “periferia” do poder levanta-se a mulher para
que por meio de um “poder” mais arejado, tenhamos a possibilidade de uma
igualdade utópica de seu exercício. (PERROT, 2006, p.185).
Em suma, fica aqui, em aberto, o
desafio que deve provocar em professores e professoras o esforço pedagógico,
intelectual e humanizador, capaz de dar sentido aos estudos das nossas diversas
disciplinas ao trazer os problemas contemporâneos ou transversais que
considerem a cultura como objeto de estudo e reflexão.
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[1] Freire entendia o
“método bancário” como a prática pedagógica baseada no depósito de informações
em receptáculos passivos. Há uma cisão na relação intersubjetiva entre educador
e educandos. O primeiro atua como profissional do “depósito” de conhecimentos
abstratos que o sistema entende serem necessários dos estudantes possuírem para
adequarem-se à realidade social.
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Publicação original:https://cpalexandria.wordpress.com/
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