O ceticismo moderno surgiu no séc. XVI com o renascimento do
conhecimento e do interesse pelo antigo ceticismo pirrônico grego, que
surge nos escritos de Sexto Empírico, e do ceticismo Acadêmico,
apresentado em De Academica, de Cícero. O termo “cético” não foi
usado na Idade Média e foi inicialmente apenas transliterado do grego.
As obras de Sexto Empírico foram publicadas em latim em 1562 e 1569, e
em grego em 1621. As edições do texto de Cícero apareceram no séc. XVI. A
nova publicação destas obras aconteceu numa época em que uma questão
fundamental a respeito do conhecimento religioso fora levantada pela
Reforma e Contra-Reforma — como distinguir o verdadeiro conhecimento
religioso de perspectivas falsas ou duvidosas? Erasmo negou que isto se
poderia fazer, e aconselhou seguir os céticos, suspendendo o juízo e
aceitando as opiniões da Igreja Católica sobre as questões em disputa. O
tradutor de Sexto, Gentian Hervet, um padre católico, disse que as
opiniões dos pirrônicos constituíam a resposta perfeita e completa ao
calvinismo. Se nada pode ser conhecido, então o calvinismo não pode ser
conhecido. Os contra-reformistas usaram os argumentos céticos para
construir uma “máquina de guerra” contra os seus oponentes protestantes,
e os protestantes procuraram mostrar que os católicos destruiriam as
suas próprias opiniões devido aos mesmos desafios céticos.
A mais importante apresentação do ceticismo na época foi a de Montaigne, que surgiu em Apologia de Raimond Sebond.
Montaigne estudara os argumentos de Sexto e Cícero e fora influenciado
por eles. Reuniu-os no seu longo e divagante ensaio e modernizou-os,
adaptando-os às preocupações do séc. XVI. Também os apresentou numa
linguagem vernácula (o francês), que forneceu o vocabulário para as
modernas discussões sobre o problema do conhecimento.
Os desafios lançados por Montaigne aos indícios favoráveis a
qualquer alegação de conhecimento, à adequação de todo o pretenso
critério de conhecimento e à possibilidade de um padrão ético universal
levantou dificuldades a todas as perspectivas que então estavam sendo
apresentadas. A obra de Montaigne tornou-se um sucesso de vendas em
França e na tradução inglesa. Juntamente com dúvidas crescentes sobre a
tradição intelectual predominante, o trabalho de Montaigne estabeleceu
um ceticismo geral, não apenas contra a escolástica ou o naturalismo
renascentista, mas também contra a possibilidade de existir qualquer
sistema de ideias que não pudesse ser posto em dúvida. O discípulo de
Montaigne, o padre Pierre Charron, apresentou o ceticismo de uma forma
didática que foi muito amplamente lida.
Os filósofos do início do séc. XVII tentaram formular respostas ao
novo ceticismo, de modo a fundamentar teorias filosóficas modernas que
pudessem justificar a nova ciência. Bacon, Mersenne, Gassendi, Descartes
e Pascal, entre outros, tentaram lidar com a ameaça cética que dominava
completamente o mundo intelectual.
Mersenne e Gassendi formularam, de maneiras diferentes, um ceticismo
mitigado ou construtivo, fazendo grandes concessões ao desafio cético,
embora ainda afirmassem que alguma espécie de conhecimento limitado era
possível e útil. Mersenne, num diálogo com um cético, que retoma
argumentos de Sexto, disse que embora não possamos responder os desafios
fundamentais dos céticos, isso não importa porque na realidade temos
maneiras de lidar com as questões. Podemos prever, a partir de uma
situação empírica, o que se seguirá, embora não conheçamos as verdadeiras
causas dos eventos. Podemos ter dúvidas se algum conhecimento
metafísico é possível, ao mesmo tempo que desenvolvemos uma ciência que
relaciona aparências com aparências.
Gassendi levou isto adiante no que denominou via media entre o
ceticismo e o dogmatismo. Desenvolveu uma teoria atômica epicurista
hipotética relacionando as aparências entre si. Esta forneceria uma
sombra da verdade, ao invés da própria Verdade.
Descartes não queria contentar-se com esta certeza limitada.
Procurava verdades que nenhum cético pudesse desafiar. Para
descobri-las, começou por adotar um método de dúvida cética, rejeitando
todas as crenças que poderiam, sob qualquer condição imaginável, ser
falsas ou duvidosas. Rejeitou prontamente as crenças baseadas nos
sentidos porque estes às vezes nos enganam. Rejeitou as crenças sobre a
realidade física porque o que consideramos ser tal realidade pode fazer
apenas parte de um sonho. Rejeitou as crenças baseadas no raciocínio
porque podemos ser sistematicamente enganados por uma força demoníaca.
Neste ponto, Descartes parece ter criado um ceticismo maior que o de
Montaigne. Mas Descartes passou a perguntar se podemos duvidar ou
rejeitar a crença na nossa própria existência. Aqui descobrimos que toda
tentativa de o fazer é imediatamente anulada pela nossa consciência de
que, nós mesmos, estamos duvidando. Assim, a primeira verdade que
Descartes alegou que não poderia ser colocada em dúvida foi “penso, logo
existo” (o cogito). A partir desta verdade alguém poderia
extrair o critério de que tudo o que concebemos clara e distintamente é
verdadeiro. Usando este critério, estabelecemos que Deus existe, que é
todo-poderoso, o criador de tudo o que existe, e que, porque é perfeito,
não nos pode enganar. Portanto, tudo o que Deus nos faz acreditar clara
e distintamente tem de ser verdadeiro. Assim, a nova filosofia de
Descartes visa refutar o novo ceticismo.
O sistema de Descartes tornou-se o alvo principal dos céticos
modernos. Foi criticado por Gassendi, Hobbes e Mersenne por se basear em
dogmas injustificados e injustificáveis. Por que não poderia um Deus
todo-poderoso enganar-nos? Como sabemos que não existe uma verdade para
Deus ou para os anjos que é diferente da que somos forçados a aceitar
como verdadeira? Por que tem de ser verdadeiro na realidade, e não
apenas nas nossas mentes, o que concebemos clara e distintamente? Como
sabemos que toda a nossa imagem subjetiva do mundo, por mais certeza que
tenhamos, não é apenas uma ilusão nossa? Descartes respondeu que levar
estas perguntas a sério era fechar a porta à razão. Mas este argumento
da catástrofe não respondia realmente aos desafios céticos.
Na geração seguinte apareceram análises muitíssimo céticas das
partes questionáveis da filosofia de Descartes. Pierre-Daniel Huet
procurou mostrar que todas as ideias de Descartes, incluindo o cogito,
estavam abertas à dúvida. Simon Foucher dirigiu um ataque similar
contra Malebranche, assim que a filosofia deste foi publicada. Foucher
também combateu a tentativa de Leibniz de fundar um sistema dogmático. O
ceticismo do séc. XVII culminou nos escritos de Pierre Bayle,
especialmente no Dicionário Histórico e Crítico (1697-1702).
Bayle combinou todos os tipos de dúvidas para arruinar tanto a filosofia
antiga como a moderna. Levantou devastadores desafios céticos ao
cartesianismo, ao novo racionalismo de Leibniz, e a toda e qualquer
tentativa do gênero. Os argumentos do Dicionário de Bayle,
especialmente nos artigos sobre o cético grego Pirro de Élis e sobre
Zenão de Eléia, levantaram problemas centrais à geração seguinte de
filósofos.
Locke propôs uma maneira de evitar o ceticismo ao admitir que poderíamos não ter qualquer real
conhecimento além da intuição e da demonstração, mas que ninguém era
tão louco que duvidasse que o fogo é quente, que as rochas são sólidas,
etc. A experiência anularia o ceticismo. O crítico de Locke, o bispo
Stillingfleet, tentou mostrar que o seu empirismo acabaria no ceticismo.
Berkeley, que recebera na sua educação os argumentos de Bayle, viu que
estes se poderiam voltar contra a filosofia de Locke. Bayle já tinha
mostrado que a distinção entre qualidades primárias e secundárias era
indefensável. Se as secundárias são subjetivas e existem apenas na
mente, as primárias também são. Berkeley insistiu sobre este ponto para
levar a perspectiva de Locke ao ceticismo total. Alegou ter encontrado
uma resposta ao ceticismo ao insistir que a aparência é a realidade,
tudo o que é percepcionado é real.
Hume, um leitor dedicado de Bayle, desenvolveu um ceticismo mais
abrangente. Nada podemos conhecer além das impressões e idéias. O nosso
conhecimento causal, tudo o que nos leva para lá da nossa experiência
imediata, não se baseia em qualquer princípio racional ou justificável,
mas apenas numa tendência psicológica natural e inalterável para ter a
expectativa de que as experiências futuras se assemelhem às que tivemos
no passado. Qualquer tentativa para defender as nossas crenças
inevitáveis em causas, no mundo exterior, ou num eu real constitutivo em
nós, conduz ao absurdo e à contradição. Assim, somos conduzidos por
qualquer investigação das nossas crenças a um ceticismo total, mas a
natureza não nos deixa aí; não podemos deixar de acreditar. Assim,
conclui Hume, é devido a uma fé animal que nos mantemos vivos e é ela
que acalma as nossas irresistíveis dúvidas céticas.
O ceticismo de Hume foi recebido por dois tipos de respostas, que
têm desempenhado importantes papéis nas teorias do conhecimento
contemporâneas: a teoria realista do senso comum, de Thomas Reid, e a
teoria crítica de Immanuel Kant. Reid, um contemporâneo de Hume,
insistiu que embora não possamos responder aos problemas céticos
formulados, ninguém realmente tem dúvidas sobre a existência de causas,
do mundo externo ou interno. O nosso senso comum leva-nos a visões
positivas sobre estes aspectos, e quando o senso comum entra em
conflito com a filosofia, temos de rejeitar as conclusões filosóficas.
Hume manifestou concordância com Reid, mas não considerou esta posição
uma resposta ao ceticismo. Na opinião de Hume, esta crença forçada é um
fato psicológico da vida, mas não um argumento anticético.
Kant afirmou que Hume o despertou de seu sono dogmático e o fez ver
quão incertas são as nossas alegações de conhecimento. Mas insistiu que
Hume tinha feito a pergunta errada. Temos conhecimento inquestionável
que nos diz algo sobre toda a experiência possível, como, por exemplo,
que toda a experiência será temporal e espacial. Como é tal conhecimento
possível, se não podemos ir além do nosso mundo da experiência? Kant
insistiu que a experiência é a combinação do modo como a projetamos e do
seu conteúdo. Há formas de todas as percepções possíveis, e estas são
categorias por meio das quais fazemos juízos sobre todas as experiências
possíveis. Se estas correspondem a um mundo além da experiência, não
podemos saber, mas podemos analisar o que podemos estar seguros quanto à
experiência possível. Portanto, podemos ter algum tipo de conhecimento,
mas nenhum conhecimento das coisas-em-si.
Kant propôs a sua filosofia crítica como uma maneira de resolver os
problemas céticos internos à filosofia moderna. Foi imediatamente
acusado de ser apenas um cético muitíssimo sofisticado, uma vez que
também acaba por negar a nossa capacidade de ter conhecimento necessário
do mundo. A filosofia alemã da primeira metade do século seguinte
consistiu em tentativas para evitar ou superar o ceticismo implícito na
análise de Kant das condições do conhecimento.
Texto: Ceticismo moderno
De Richard Popkin
Tradução de Jaimir Conte
Retirado de Jonathan Dancy e Ernest Sosa (org.) A Companion to Epistemology (Oxford: Blackwell, 1997, pp. 719-721).
Fonte: criticanarede.com/
Filoparanavai 2015
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