1. Tipos de Conhecimento
No quotidiano falamos de conhecimento, de crenças que estão
fortemente apoiadas por dados, e dizemos que elas têm justificação ou
que estão bem fundamentadas. A epistemologia é a parte da filosofia que
tenta entender estes conceitos. Os epistemólogos tentam avaliar a ideia,
própria do senso comum, de que possuímos realmente conhecimento. Alguns
filósofos tentaram apoiar com argumentos esta ideia do senso comum.
Outros fizeram o contrário. Os filósofos que defendem que não temos
conhecimento, ou que as nossas crenças não têm justificação racional,
estão a defender uma versão de ceticismo filosófico.
Antes de discutirmos se temos ou não conhecimento, temos de tornar
claro o que é o conhecimento. Podemos falar de conhecimento em três
sentidos diferentes, mas apenas um nos vai interessar. Considerem-se as
seguintes afirmações acerca de um sujeito, ao qual chamarei S:
- S sabe andar de bicicleta.
- S conhece o Presidente dos EUA.
- S sabe que a Serra da Estrela fica em Portugal.
Chamo conhecimento proposicional ao tipo de conhecimento
apresentado em 3. Note-se que o objeto do verbo em 3 é uma proposição —
uma coisa que é verdadeira ou falsa. Existe uma proposição — a Serra da
Estrela fica em Portugal — e S sabe que essa proposição é verdadeira.
As frases 1 e 2 não têm esta estrutura. O objeto do verbo em 2 não é
uma proposição, mas uma pessoa. O mesmo aconteceria se disséssemos que S conhece Lisboa. Uma frase como 2 diz que S está ou esteve na presença de uma pessoa, de um lugar ou de uma coisa. Por isso dizemos que 2 corresponde a um caso de conhecimento por contato.
Existe alguma ligação entre estes dois tipos de conhecimento? Possivelmente, para que S conheça o Presidente dos Estados Unidos, terá de ter conhecimento proposicional acerca dele. Mas qual? Para que S
conheça o Presidente terá de saber em que Estado ele nasceu? Isso não
parece essencial. E o mesmo parece acontecer relativamente a todos os
outros fatos acerca dele: não parece haver qualquer proposição
específica que seja necessário saber para se possa dizer que se conhece o
Presidente. Conhecer uma pessoa implica, isso sim, ter um tipo qualquer
de contato direto com ela.
Chamemos ao tipo de conhecimento exemplificado em 1 conhecimento de aptidões.
Que significa dizer que se sabe fazer alguma coisa? Penso que isto tem
pouco a ver com o conhecimento proposicional. Uma pessoa pode saber
andar de bicicleta aos cinco anos, e para isso não precisa de saber
qualquer proposição acerca desse fato. O contrário também pode
acontecer: uma pessoa pode ter muito conhecimento proposicional acerca
de um assunto — de pintura, por exemplo — , e não ter qualquer conhecimento de aptidões a esse respeito.
Vamos aqui abordar apenas o conhecimento proposicional. Queremos saber o que é necessário para que um indivíduo S saiba que p, sendo p
uma proposição qualquer — como a de que a Serra da Estrela fica em
Portugal. Daqui em diante, quando falarmos de conhecimento, estaremos
sempre a referir-nos ao conhecimento proposicional.
2. Condições Necessárias e Suficientes
Consideremos a definição de solteiro:
Para qualquer S, S é solteiro se e somente se:
- S é um adulto,
- S é homem,
- S não é casado.
Não digo que esta definição capta com precisão o que “solteiro”
significa em português comum. Usamos apenas esta definição como um
exemplo de uma proposta de definição. Uma definição é uma
generalização. Diz respeito a qualquer indivíduo que queiramos
considerar. Nesta definição fazemos duas afirmações: a primeira é a de
que SE um indivíduo tem as características 1, 2 e 3, então é solteiro.
Por outras palavras, 1, 2 e 3 são, em conjunto, suficientes para
que se seja solteiro. A segunda afirmação é a de que SE um indivíduo é
solteiro, então tem as três características. Por outras palavras, 1, 2 e
3 são, cada uma delas, condições necessárias para se ser solteiro.
Uma boa definição especifica as condições suficientes e necessárias
para o conceito que queremos definir. Isto significa que existem dois
tipos de erros que podem ocorrer numa definição: as definições podem ser
demasiado abrangentes ou demasiado restritivas.
3. Dois Requisitos para o Conhecimento: Crença e Verdade
Devemos fazer notar duas ideias que fazem parte do conceito de conhecimento. Primeiro, se S sabe que p (que uma proposição é verdadeira), então tem de acreditar que p. Segundo, se S sabe que p, então p
tem de ser verdadeira. O conhecimento requer tanto a crença quanto a
verdade. Comecemos pela segunda ideia. As pessoas às vezes dizem que
sabem coisas que mais tarde se revelam falsas. Mas isto não é saber
coisas que são falsas, é pensar que se sabem coisas que, de facto, são falsas.
O conhecimento tem um lado subjetivo e um lado objetivo. Um fato é
objetivo se a sua verdade não depende de como é a mente das pessoas. É
um fato objetivo que a Serra da Estrela está 2 000 metros acima do
nível do mar. Um fato é subjetivo se não é objetivo. O exemplo mais
óbvio de um fato subjetivo é uma descrição do que acontece na mente de
alguém.
Se uma pessoa acredita ou não que a Serra da Estrela está a 2 000
metros acima do nível do mar é uma questão subjetiva, mas se a montanha
tem realmente essa propriedade é uma questão objetiva. O conhecimento
requer tanto um elemento subjetivo como um elemento objetivo. Para que
S conheça p, p tem de ser verdadeira e o sujeito, S, tem de acreditar que p é verdadeira.
4. Terceiro Requisito: Justificação
Apontei duas condições necessárias para o conhecimento: o
conhecimento requer crença e requer verdade. Mas será que isto é
suficiente? Será que estas duas condições não são apenas separadamente
necessárias, mas também conjuntamente suficientes? É a crença verdadeira
suficiente para o conhecimento?
Pensemos num indivíduo, Clyde, que acredita na história do Dia do
Porco do Campo. Clyde pensa que se o Porco do Campo vir a sua própria
sombra, a Primavera virá mais tarde. Suponha-se que Clyde põe este
princípio idiota em prática este ano. Ele tem informações que o fazem
pensar que a Primavera virá mais tarde. Suponha-se que Clyde acaba por
ter razão acerca deste facto. Se não existir nenhuma conexão lógica
entre o fato de o porco do campo ter visto a sua própria sombra e o
fato de a Primavera vir mais tarde, então Clayde terá uma crença
verdadeira (a Primavera virá tarde), mas não terá conhecimento.
Que será então necessário, para além da crença verdadeira, para que
alguém possua conhecimento? A sugestão mais natural é a de que o
conhecimento requer dados de apoio, ou uma justificação racional.
Note-se que ter uma justificação não é apenas pensar que se tem uma razão para acreditar em algo.
Que significa dizer que um indivíduo tem uma crença “justificada” na proposição p?
Uma justificação pode ter a forma de um argumento dedutivo, de um
argumento indutivo ou de um argumento abdutivo. Talvez existam outras
opções além destas três. Mas, o que quer que seja que entendemos por
“justificação”, parece plausível dizer que as crenças que são defendidas
irracionalmente não são casos de conhecimento (mesmo que elas sejam
verdadeiras).
5. A Teoria CVJ
Suponhamos que o conhecimento requer estas três condições. Será que
isto é suficiente? Será que estas condições não são apenas separadamente
necessárias, mas também conjuntamente suficientes? Chamarei CVJ à
teoria que afirma que assim é. Esta teoria diz que ter conhecimento é a
mesma coisa que ter crenças verdadeiras justificadas:
(CVJ) Para que qualquer indivíduo S e para qualquer proposição p, S conhece p se e somente se
- S acredita em p
- p é verdadeira
- a crença de S em p está justificada
A Teoria CVJ afirma uma generalização. Diz o que é o conhecimento para qualquer pessoa e para qualquer proposição p. Por exemplo, suponhamos que S és tu e que p
= “A Lua é feita de queijo verde”. A teoria CVJ diz o seguinte: se
sabes que a Lua é feita de queijo verde, então os enunciados 1, 2 e 3
devem ser verdadeiros. E se não sabes que a Lua é feita de queijo verde,
então pelo menos um dos enunciados de 1 a 3 deve ser falso. Tal como na
definição de solteiro discutida antes, a expressão “se, e somente se”
diz-nos que são dadas condições necessárias e suficientes para o
conceito definido.
6. Três Contra-Exemplos à Teoria CVJ
Em 1963, o filósofo Edmund Gettier publicou dois contra-exemplos para a teoria CVJ. O que é um contra-exemplo?
É um exemplo que contradiz o que diz uma teoria geral. Um
contra-exemplo contra uma generalização mostra que a generalização é
falsa. A teoria CVJ diz que todos os casos de crença verdadeira
justificada são casos de conhecimento. Gettier pensa que estes dois
exemplos mostram que um indivíduo pode ter uma crença verdadeira
justificada mas não ter conhecimento. Se Gettier tiver razão, então as
três condições indicadas pela teoria CVJ não são suficientes.
Eis um dos exemplos de Gettier. Smith trabalha num escritório. Ele
sabe que alguém será promovido em breve. O patrão, que é uma pessoa em
quem se pode confiar, diz a Smith que Jones será promovido. Smith acabou
de contar as moedas no bolso de Jones, encontrando aí 10 moedas. Smith
tem então boas informações para acreditar na seguinte proposição:
a) Jones será promovido e Jones tem 10 moedas no bolso.
Smith deduz, então, deste enunciado o seguinte:
b) O homem que será promovido tem 10 moedas no bolso.
Suponha-se agora que Jones não receberá a promoção, embora Smith não o
saiba. Em vez disso, será o próprio Smith a ser promovido. E suponha-se
que Smith também tem dez moedas dentro do bolso. Smith acredita em b, e
b é verdadeira. Gettier afirma também que Smith acredita
justificadamente em b, dado que a deduziu de a. Apesar de a ser falsa,
Smith tem excelentes razões para pensar que é verdadeira. Gettier
conclui que Smith tem uma crença verdadeira justificada em b, mas que
Smith não sabe que b é verdadeira.
O outro exemplo de Gettier exibe o mesmo padrão. Um sujeito deduz
validamente uma proposição verdadeira a partir de uma proposição que
está muito bem apoiada por informações, embora esta seja falsa, apesar
de o sujeito não o saber.
Quero agora descrever um tipo de
contra-exemplo à teoria CVJ na qual o sujeito raciocina não
dedutivamente.
O filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970) refere
um relógio muito fiável que está numa praça. Esta manhã olhas para ele
para saber que horas são. Como resultado ficas a saber que são 9h55.
Tens justificações para acreditar nisso, baseado na suposição correta
de que o relógio tem sido muito fiável no passado. Mas supõe que o
relógio parou há exatamente 24 horas, apesar de tu não o saberes. Tens a
crença verdadeira justificada de que são 9h55, mas não sabes que esta hora não é correta.
7. Que Têm os Contra-Exemplos em Comum?
Em todos estes casos, o sujeito tem dados para acreditar na proposição em causa que são altamente credíveis, mas não infalíveis. O patrão está geralmente certo sobre quem vai ser promovido, o relógio está geralmente certo quanto às horas. Mas é claro que geralmente não é sempre. As fontes da informação que os sujeitos exploraram nestes exemplos são altamente credíveis, mas não são perfeitamente credíveis. Todas as fontes de informação eram suscetíveis de erro, pelo menos até certo ponto.
Será que estes exemplos refutam realmente a teoria CVJ? Depende de
como entendemos a ideia de justificação. Se dados altamente credíveis
são suficientes para justificar uma crença, então estes contra-exemplos
refutam realmente a teoria CVJ. Mas se a justificação requer dados
perfeitamente infalíveis, então estes exemplos não refutam a teoria.
A minha opinião é de que os dados que justificam uma crença não
precisam de ser infalíveis. Penso que podemos ter crenças racionais bem
apoiadas mesmo quando não nos empenhamos em estar absolutamente certos
de que o que acreditamos é verdadeiro. Assim, concluo que a crença
verdadeira justificada não é suficiente para o conhecimento.
Elliott Sober
Tradução de Paula Mateus
Retirado do livro Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober (Prentice Hall, 2008)
Fonte: http://criticanarede.com/
Filoparanavai 2015
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