As manifestações do dia 15 são uma marcha golpista, antidemocrática, hipócrita, financiada empresarialmente e comandada por aqueles que perderam a eleição.
Era uma vez uma manifestação que se dizia em
defesa do Brasil, da democracia e contra a corrupção. Aconteceria em
várias capitais do país e reuniria todos os cidadãos de bem, honestos e
interessados em lutar contra os desmandos e malfeitos que tomavam conta
do país.
Era um movimento
apartidário, de pessoas indignadas que abominavam a política como ela é e
que resolveram tomar uma atitude em defesa da moral e dos bons costumes
na política e na sociedade.
Palavras
de ordem pediam a renúncia ou afastamento (o que hoje se chama pelo
nome técnico de impeachment) de quem ocupava a Presidência da República.
Uma minoria mais afoita pedia abertamente um golpe militar para varrer a
sujeira que contaminava as instituições.
A
imprensa golpista deu a essa iniciativa e a seu espírito aguerrido a
mais ampla divulgação - antes, durante e depois. Celebridades se
manifestaram, como que tomadas por imperioso e urgente esforço de
emprestar um pouco de seu brilho àquele espetáculo.
Empresários
benevolentes patrocinaram os gastos como quem paga um banquete caro,
mas que vale a pena pelo que pode proporcionar num futuro próximo.
O
evento foi um sucesso de público e crítica. Levou milhões às ruas. Se
não levou, a imprensa golpista falou que levou e reproduziu imagens de
aglomerações de centenas e mesmo milhares de pessoas que fariam os
milhões parecerem verdade. Até mesmo expressões do tipo 'o país inteiro
está com a gente' e 'ninguém aguenta mais'
tornariam-se mentiras muito sinceras.
Um
detalhe importante é que as pessoas se manifestavam por meio de
cartazes que diziam 'queremos governo honesto', 'verde e amarelo, sem
foice e sem martelo' e também pediam políticos no xadrez - não todos, só
os que incomodavam. Afinal, é para isso que servem as prisões, para
colocar lá as pessoas que não toleramos, não é mesmo?
A
primeira daquelas marchas aconteceu há cerca de meio século - tempo
suficiente para que muitos jamais tenham ouvido falar dela e outros a
releguem ao esquecimento. Tempo suficiente para que a fórmula gasta
possa ser reprisada sem que alguém pense já ter visto esse filme.
A
primeira dessas manifestações ocorreu em São Paulo, a 19 de março do
ano de 1964. A marcha apartidária era organizada por políticos
reacionários de partidos de direita.
O
combate à corrupção tinha o apoio entusiasmado do governador de São
Paulo, Adhemar de Barros, talvez o primeiro político brasileiro
associado ao epíteto "rouba, mas faz".
Foi apelidada de Marcha da Família com Deus, pela Liberdade, um slogan impositivo e bastante eficiente; afinal, quem não está com Deus, pela família e pela liberdade bom sujeito não é.
Nas
manifestações de 1964, quando as pessoas 'de bem' chegavam, ao invés de
Deus, família e liberdade, se deparavam com cartazes um pouco
diferentes, do tipo 'tá chegando a hora de Jango ir embora', 'Brizola no
xadrez' e 'intervenção militar, já!'. Faz parte da democracia cada um
dizer o que quer, não é mesmo?
O
espírito cívico e democrático do evento foi saudado como o primeiro
passo para um golpe que, em 1º de abril daquele ano, instaurou uma
ditadura. O trabalho de limpar o país da corrupção foi tão bem feito que
nos deixou de legado, como maiores referências da política nacional de
então, figuras como Paulo Maluf, José Sarney e Antônio Carlos Magalhães.
Em
prol da liberdade se fez o Estado de sítio, a censura e a tortura em
larga escala. Os que invocaram o nome de Deus transformaram os verbos
roubar, matar e odiar em política de Estado.
A
velha história de sempre se repete, ou quase. Da mesma forma como um
filósofo barbudo e genial do século XIX nos alertava: da primeira vez,
como tragédia; da segunda, como farsa.
Sabedores
que somos da tragédia que se abateu sobre o país quando o golpismo e a
intolerância se fingiram de espírito cívico e democrático, não devemos
ter com a manifestação do dia 15 qualquer condescendência. Meias
palavras servem apenas para raciocínios pela metade.
Que
eles todos, sem exceção, sejam tratados da forma como bem merecem e
homenageados pelo papel histórico que pretendem cumprir, como todos
aqueles que marcharam contra Jango em 1964.
As
manifestações do dia 15 são uma marcha golpista, antidemocrática,
hipócrita, financiada empresarialmente, comandada pelos partidos que
perderam as eleições e coalhada de gente irritada que quer apenas
desabafar, mas não faz a menor ideia dos interesses que estão por trás
do convite que receberam para protestar.
Falar
de impeachment não é golpismo, certo? Certíssimo. Mas falar de
impeachment de uma presidente da República eleita sobre a qual não pesa,
em qualquer inquérito, a mínima evidência de qualquer envolvimento com
crimes de corrupção é golpismo sim, senhor. Golpismo da pior espécie.
As
manifestações de 2015 pelo impeachment são tão democráticas e
inofensivas para as instituições quanto foram aquelas que serviram de
mote para o golpe de 1964.
Quinze de
março é dia do desfile da hipocrisia. Feito por gente que quer o
impeachment de Dilma, mas gastou seu tempo no Congresso, nesta última
semana, defendendo Eduardo Cunha (presidente da Câmara) e Renan
Calheiros (presidente do Senado) contra a ação do Procurador-Geral da
República no escândalo da Lava Jato.
O
senador Aécio Neves diz que o ato, do qual fala como um verdadeiro
porta-voz, é contra o estelionato eleitoral, assunto no qual é um
especialista, basta ver os resultados de seu choque de gestão em Minas
Gerais. Se for isso mesmo, no domingo se pedirá, em São Paulo, a cabeça
do governador Geraldo Alckmin; em Curitiba, a de Beto Richa; no Rio
Grande do Sul, a de José Ivo Sartori.
As
manifestações de domingo são tão apartidárias quanto o ilustre
candidato a vice-presidente na chapa de Aécio Neves, o senador Aloysio
Nunes Ferreira (PSDB-SP), que já confirmou presença. São tão éticas e
probas quanto era o ex-senador Demósthenes Torrres (DEM-GO), que ainda
não confirmou presença, anda até meio sumido, mas certamente torce pelo
sucesso de mais essa empreitada.
Dessa
vez, a marcha do dia 19 de março cairá no dia 15, mas saberemos, assim
como há 50 anos, o tamanho do golpismo no Brasil. E teremos a chance de
ver sua face mais obtusa e saliente. Pena que não a fizeram já no ano
passado. Poderiam ter comemorado bodas de sangue.
A tragédia
golpista se repete agora como farsa golpista. Marte, o deus da guerra,
virá platinado por um rio de panelas de alumínio, tão vazias de espírito
cívico e democrático quanto as cabeças dos que as empunharão. Quanto
mais ocas, mais estridentes.
Dia
15 passará para a posteridade como o dia em que a oposição, cansada de
perder eleições, teve uma vitória de Pirro, mas saiu derrotada ao
assumir de vez seu espírito antidemocrático, golpista, hipócrita
e irresponsável diante das instituições do país.
Aqueles
que querem fazer parte da história do golpismo no Brasil poderão
estrelar seu álbum de fotos. Que façam bom proveito de seu domingo.
Texto de Antonio Lassance
Publicado originalmente
no site: http://cartamaior.com.br/
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