RESENHA DE UM CLÁSSICO
Este texto é o que chamo de conteúdo formidável e oportuno. Uma resenha muito bem elaborada, ocupando-se do essencial sobre a dicussão em questão: O que é a Filosofia? O texto que segue é o primeiro de uma série de outros clássicos com os quais meus alunos (as) entrarão em contato no decorrer de nossos estudos de filosofia. Beber nas fontes da Filosofia robustece nosso FILOSOFAR. Aliás, o texto trata justamente desta relação de cumplicidade entre FILÓSOFO-FILOSOFIA-FILOSOFAR. O texto que segue, além de contemplar a atividade Leitura de Textos Filosóficos pode ser aplicado e também fundamentar um painel filosófico. Em breve este post será atualizado já com o esquema do professor feito a partir do texto e outros subsídios para enriquecer ainda mais nossa leitura. Confira o texto, leia-o com cuidado e faça investigação filosófica, relacione-o com outros textos já conhecidos por você. Bom trabalho.
Este texto é o que chamo de conteúdo formidável e oportuno. Uma resenha muito bem elaborada, ocupando-se do essencial sobre a dicussão em questão: O que é a Filosofia? O texto que segue é o primeiro de uma série de outros clássicos com os quais meus alunos (as) entrarão em contato no decorrer de nossos estudos de filosofia. Beber nas fontes da Filosofia robustece nosso FILOSOFAR. Aliás, o texto trata justamente desta relação de cumplicidade entre FILÓSOFO-FILOSOFIA-FILOSOFAR. O texto que segue, além de contemplar a atividade Leitura de Textos Filosóficos pode ser aplicado e também fundamentar um painel filosófico. Em breve este post será atualizado já com o esquema do professor feito a partir do texto e outros subsídios para enriquecer ainda mais nossa leitura. Confira o texto, leia-o com cuidado e faça investigação filosófica, relacione-o com outros textos já conhecidos por você. Bom trabalho.
Por Lucio Lopes - atualizado em filoparanavai 2012
Antes de tudo, ou seja, de entrar em contato com o texto devemos conhecer primeiramente nosso filósofo.
biografia resumida: Martin Heidegger(Filósofo alemão); 26-9-1889, Messkirch; 26-5-1976, Messkirch.O ponto de partida do pensamento de Heidegger, principal representante alemão da filosofia existencial, é o problema do sentido do ser. Heidegger aborda a questão tomando como exemplo o ser humano, que se caracteriza precisamente por se interrogar a esse respeito. O homem está especialmente mediado por seu passado: o ser do homem é um "ser que caminha para a morte" e sua relação com o mundo concretiza-se a partir dos conceitos de preocupação, angústia, conhecimento e complexo de culpa. O homem deve tentar "saltar", fugindo de sua condição cotidiana para atingir seu verdadeiro "eu". As bases de sua filosofia existencial foram expostas em 1927, na obra inacabada O Ser e o Tempo (1927), publicada em Marburgo, que o tornou célebre fora dos meios universitários. Oriundo de uma família humilde, Heidegger pôde completar sua formação primária graças a uma bolsa eclesiástica, que lhe permitiu também iniciar estudos de teologia e de filosofia. Profundamente influenciado pelo estudioso de fenomenologia Edmund Husserl, de quem foi assistente após a Primeira Guerra Mundial (até 1923), começou então seus estudos no seio da corrente existencialista. Embora sempre tenha vivido em Friburgo, exceto nos cinco anos em que foi professor em Marburgo (recusou uma proposta para Berlim), cedo se tornou um dos filósofos mais conhecidos e influentes, influência essa que se estendeu mesmo à moderna teologia de Karl Rahner ou Rudolf K. Bultman. Sua disponibilidade para colaborar com o regime nazista, após a tomada de poder por Hitler, em 1933, aceitando o lugar de reitor em substituição a outro vetado pelos nazistas, abalou seu prestígio. Também contribuiu para isso o fato de equiparar o "serviço do saber" na escola superior ao serviço militar e funcional. Em 1946, as autoridades francesas de ocupação retiraram-lhe a docência, que lhe foi restituída em 1951. Outras importantes obras suas são Introdução à Metafísica, 1953, Que Significa Pensar?, 1964, e Fenomenologia e Teologia, 1970. A obra completa de Heidegger foi editada na Alemanha em 70 volumes.
Com esta questão tocamos um tema muito vasto. Por ser vasto, permanece indeterminado. Por ser indeterminado, podemos tratá-lo sob os mais diferentes pontos de vista e sempre atingiremos algo certo. Entretanto, pelo fato de, na abordagem deste tema tão amplo, se interpenetrarem todas as opiniões, corremos o risco de nosso diálogo perder a devida concentração.
Por isso devemos tentar determinar mais exatamente a questão. Desta maneira, levaremos o diálogo para uma direção segura. Procedendo assim, o diálogo é conduzido a um caminho. Digo: a um caminho. Assim concedemos que este não é o único caminho. Deve ficar mesmo em aberto se o caminho para o qual desejaria chamar a atenção, no que segue, é na verdade um caminho que nos permite levantar a questão e respondê-la”.
Assim enceta Heidegger suas elucubrações sobre o tema: que é isso, a Filosofia? Essas são suas palavras iniciais, literalmente aqui replicadas porque se mostram fundamentais para se captar a pretensão do autor, ou seja, indicar um caminho de abordagem ao tema do que vem a ser a Filosofia.
O autor prossegue questionando a própria suposição se seremos capazes de encontrar um caminho para responder à questão, porque no momento em que perguntamos: Que é isto — a filosofia?, falamos, obviamente, sobre a filosofia e, perguntando desta maneira, localizamo-nos num ponto acima da filosofia, e isto quer dizer, fora dela. Porém, a meta de nossa questão é penetrar na filosofia, submeter nosso comportamento às suas leis, quer dizer, ‘filosofar’. O caminho de nossa discussão deve ter por isso não apenas uma direção bem clara, mas esta direção deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos movemos no âmbito da filosofia, e não fora e em torno dela.
Na tentativa de delimitar seu objeto de estudo, prossegue Heidegger defendendo que a Filosofia não é apenas algo que pertence ao âmbito da racionalidade, mas que é a própria guarda da razão. Observa, todavia, que afirmar que a Filosofia é a guarda da razão não nos leva muito longe, porque nos cabe agora responder: que é isso, a razão? Onde e por quem foi decidido o que é a razão?
Se aquilo que se apresenta como ratio foi primeiramente e apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua história, então não é de bom alvitre tratar a priori a filosofia como negócio da ratio. Todavia, tão logo pomos em suspeição a caracterização da filosofia como um comportamento racional, torna-se, da mesma maneira, também duvidoso se a filosofia pertence à esfera do irracional.
É relevante observar um ponto: se, por um lado, é problemático tomarmos a filosofia como algo racional a priori, determiná-la como algo irracional é, novamente, tomar o racional como padrão e pressupor como óbvio o que seja a razão.
Se, por outro lado, apontamos para a possibilidade de que aquilo a que a filosofia se refere concerne a nós homens em nosso ser e nos toca, então pode ser que esta maneira de ser afetado não tenha absolutamente nada a ver com aquilo que comumente se designa como afetos e sentimentos, em resumo, o irracional.
O autor conclui que do que foi dito até então, deduzimos inicialmente apenas isto: é necessário maior cuidado se ousamos inaugurar um encontro com o título: Que é isto — A Filosofia?
Ele escolhe partir da origem grega do termo, não por motivo vão, mas porque, segundo ele, essa origem nos traz peculiaridades absolutamente relevantes e reveladoras:
A palavra philosophía diz-nos que a filosofia é algo que, pela primeira vez, e antes de tudo, vinca a existência do mundo grego. Não só isto — a philosophía determina também a linha mestra de nossa história ocidental-européia. A batida expressão “filosofia ocidental-européia” é, na verdade, uma tautologia. Por quê? Porque a "filosofia" é grega em sua essência — e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua essência de tal natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver.
A frase: a filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história, originariamente “filosóficos”. Isto é atestado pelo surto e domínio das ciências. Pelo fato de elas brotarem da marcha mais íntima da história ocidental-européia, o que vale dizer do processo da filosofia, são elas capazes de marcar hoje, com seu cunho específico, a história da humanidade pelo orbe terrestre.
A tradição designada pelo nome grego philosophía, tradição nomeada pela palavra historial philosophía, mostra-nos a direção de um caminho. Ela não nos entrega à prisão do passado e irrevogável. Transmitir, delivrer é um libertar para a liberdade do diálogo com o que foi e continua sendo. Se estivermos verdadeiramente atentos à palavra e meditarmos o que ouvimos, o nome “filosofia” nos convoca para penetrarmos na história da origem grega da filosofia. A palavra philosophía está, de certa maneira, na certidão de nascimento de nossa própria história; podemos mesmo dizer: ela está na certidão de nascimento da atual época da história universal que se chama era atômica. Por isso somente podemos levantar a questão: Que é isto — a filosofia?, se começamos um diálogo com o pensamento do mundo grego. Porém, não apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega.
Perguntamos: que é isto...? Em grego isto é: ti estin. A questão relativa ao que algo seja permanece, todavia, multívoca. Podemos perguntar, por exemplo: que é aquilo lá longe? Obtemos então a resposta: uma árvore. A resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que não conhecemos exatamente.
Podemos, entretanto, questionar mais: que é aquilo que designamos “árvore"? Com a questão agora posta avançamos para a proximidade do ti estin grego. É aquela forma de questionar desenvolvida por Sócrates, Platão e Aristóteles. Estes perguntam, por exemplo: Que é isto — o belo? Que é isto — o conhecimento? Que é isto — a natureza? Que é isto — o movimento?
Agora, porém, devemos prestar atenção para o fato de que nas questões acima não se procura apenas uma delimitação mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas é preciso cuidar para que ao mesmo tempo se dê uma explicação sobre o que significa o “que”, em que sentido se deve compreender o ti. Aquilo que o ‘que’ significa se designa o quid est, tò quid: a quidditas, a qüididade. Entretanto, a quidditas se determina diversamente nas diversas épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Platão é uma interpretação característica daquilo que quer dizer o ti. Ele significa precisamente a idéia. O fato de nós, quando perguntamos pelo ti, pelo quid, nos referimos à “idéia” não é absolutamente evidente. Aristóteles dá uma outra explicação do ti que Platão. Outra ainda dá Kant e também Hegel explica o tí de modo diferente. Sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado através do fio condutor que representa o ti, o quid, o “que”. Em todo caso: quando, referindo-nos à filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questão originariamente grega.
Notemos bem: tanto o tema de nossa interrogação: “a filosofia”, como o modo como perguntamos: “que é isto...?” — ambos permanecem gregos em sua proveniência. Nós mesmos fazemos parte desta origem, mesmo então quando nem chegamos a dizer a palavra “filosofia”. Somos propriamente chamados de volta para esta origem, reclamados para ela e por ela, tão logo pronunciemos a pergunta: Que é isto — a filosofia? não apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo.
Se penetrarmos no sentido pleno e originário da questão: Que é isto — a filosofia? então nosso questionar encontrou, em sua proveniência historial, uma direção para nosso futuro historial. Encontramos um caminho. A questão mesma é um caminho. Ele conduz da existência própria ao mundo grego até nós, quando não para além de nós mesmos. Estamos — se perseverarmos na questão — a caminho, num caminho claramente orientado. Já desde há muito tempo costuma-se caracterizar a pergunta pelo que algo é, como a questão da essência. A questão da essência torna-se mais viva quando aquilo por cuja essência se interroga, se obscurece e confunde, quando ao mesmo tempo a relação do homem para com o que é questionado se mostra vacilante e abalada.
A questão de nosso encontro refere-se à essência da filosofia. Ela procura o que é o ente enquanto é. A filosofia está a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser.
E por isso que a filosofia é epistéme theoretiké. Mas que é isto que ela perscruta?
Aristóteles di-lo, fazendo referência às pròtai arkhai kai aitíai. Costuma-se traduzir: “as primeiras razões e causas” — a saber, do ente. As primeiras razões e causas constituem assim o ser do ente. Após dois milênios e meio me parece que teria chegado o tempo de considerar o que afinal tem o ser do ente a ver com coisas tais como “razão” e “causa”. Em que sentido é pensado o ser para que coisas tais como “razão” e “causa” sejam apropriadas para caracterizarem e assumirem o sendo-ser do ente?
A citada afirmação de Aristóteles diz-nos para onde está a caminho aquilo que se chama, desde Platão, “filosofia”. A afirmação nos informa sobre isto que é — a filosofia. A filosofia é uma espécie de competência capaz de perscrutar o ente, a saber, sob o ponto de vista do que ele é, enquanto é ente.
Mas a afirmação de Aristóteles sobre o que é a filosofia não pode ser absolutamente a única resposta à nossa questão. No melhor dos casos, é ela uma resposta entre muitas outras. Com o auxilio da caracterização aristotélica de filosofia pode-se evidentemente representar e explicar tanto o pensamento antes de Aristóteles e Platão quanto a filosofia posterior a Aristóteles. Entretanto, facilmente se pode apontar para o fato de que a filosofia mesma, e a maneira como ela concebe sua essência, passou por várias transformações nos dois milênios que seguiram o Estagirita. Quem ousaria negá-lo? Mas não podemos passar por alto o fato de a filosofia de Aristóteles e Nietzsche permanecer a mesma, precisamente na base destas transformações e através delas. Pois as transformações são a garantia para o parentesco no mesmo.
De nenhum modo afirmamos com isto que a definição aristotélica de filosofia tenha valor absoluto. Pois ela é já em meio à história do pensamento grego uma determinada explicação daquele pensamento e do que lhe foi dado como tarefa. A definição aristotélica de filosofia certamente é livre continuação da aurora do pensamento e seu encerramento. Digo livre continuação porque de maneira alguma pode ser demonstrado que as filosofias tomadas isoladamente e as épocas da filosofia brotam uma das outras no sentido da necessidade de um processo dialético.
Do que foi dito, que resulta para nossa tentativa de, num encontro, tratarmos a questão: Que é isto — a filosofia? Primeiramente um ponto: não podemos ater-nos apenas à definição de Aristóteles. Disto deduzimos o outro ponto: devemos ocupar-nos das primeiras e posteriores definições de filosofia.
A resposta somente pode ser uma resposta filosofante, uma resposta que enquanto resposta filosofa por ela mesma.
Quando é que a resposta à questão: Que é isto — a filosofia? é uma resposta filosofante? Quando filosofamos nós? Manifestamente apenas então - quando entramos em diálogo com os filósofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, é tarefa específica dos filósofos, é o falar, o légein no sentido do dialégesthai, o falar como diálogo. Se e quando o diálogo é necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto.
Supondo, portanto, que os filósofos são interpelados pelo ser do ente para que digam o que o ente é, enquanto é, então também nosso diálogo com os filósofos deve ser interpelado pelo ser do ente.
O ente enquanto tal dis-põe de tal maneira o falar que o dizer se harmoniza (accorder) com o ser do ente.
Para Platão e Aristóteles, o espanto é a dis-posição (1) na qual e para a qual o ser do ente se abre, o espanto é a dis-posição em meio à qual estava garantida para os filósofos gregos a correspondência ao ser do ente.
De bem outra espécie é aquela dis-posição que levou o pensamento a colocar a questão tradicional do que seja o ente enquanto é, de um modo novo, e a começar assim uma nova época da filosofia. Descartes, em suas meditações, não pergunta apenas e em primeiro lugar ti tò ón — que é o ente, enquanto é?
Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é o ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a essência da certitudo.
Para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a dúvida se torna aquela dis-posição em que vibra o acordo com o ens certum, o ente que é com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixação do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para o ego do homem. Assim, o ego se transforma no sub-iectum por excelência, e, desta maneira, a essência do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinação de um clare et distincte percipere. A dis-posição afetiva da dúvida é o positivo acordo com a certeza. Daí em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A dis-posição afetiva da confiança na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acessível permanece o páthos e com isso a arkhé da filosofia moderna.
Mas em que consiste o télos, a consumação da filosofia moderna, caso disto nos seja permitido falar? É este termo determinado por uma outra dis-posição? Onde devemos nós procurar a consumação da filosofia moderna? Em Hegel ou apenas na filosofia dos últimos anos de Schelling? E que acontece com Marx e Nietzsche? Já se movimentam eles fora da órbita da filosofia moderna? Se não, como determinar seu lugar?
Parece até que levantamos apenas questões históricas. Mas na verdade meditamos o destino essencial da filosofia. Procuramos pôr-nos à escuta da voz do ser. Qual a dis-posição em que ela mergulha o pensamento atual? Uma resposta unívoca a esta pergunta é praticamente impossível. Provavelmente impera uma dis-posição afetiva fundamental. Ela, porém, permanece oculta para nós. Isto seria um sinal para o fato de que nosso pensamento atual ainda não encontrou seu claro caminho. O que encontramos são apenas dis-posições do pensamento de diversas tonalidades. Dúvida e desespero de um lado e cega prossessão por princípios, não submetidos a exame, de outro, se confrontam.
Medo e angústia misturam-se com esperança e confiança. Muitas vezes e quase por toda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representação e cálculo puramente lógicos é absolutamente livre de qualquer dis-posição. Mas também a frieza do cálculo, também a sobriedade prosaica da planificação são sinais de um tipo de dis-posição. Não apenas isto; mesmo a razão que se mantém livre de toda influência das paixões é, enquanto razão, pré-dis-posta para a confiança na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras. (2)
A correspondência propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que corresponde ao apelo do ser do ente, é a filosofia. Que é isto — a filosofia? somente aprendemos a conhecer e a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é. Ela é ao modo da correspondência que se harmoniza e põe de acordo com a voz do ser do ente. Este co-responder é um falar. Está a serviço da linguagem. O que isto significa é de difícil compreensão para nós hoje, pois nossa representação comum da linguagem passou por um estranho processo de transformações.
Como conseqüência disso a linguagem aparece como um instrumento de expressão. (3) De acordo com isso, tem-se por mais acertado dizer que a linguagem está a serviço do pensamento em vez de: o pensamento como correspondência está a serviço da linguagem. Mas, antes de tudo, a representação atual da linguagem está tão longe quanto possível da experiência grega da linguagem. Aos gregos se manifesta a essência da linguagem como lógos.
Mas o que significa lógos e légein? Apenas hoje começamos lentamente, através de múltiplas interpretações do lógos, a descerrar para nossos olhos o véu sobre sua originária essência grega. Entretanto, nós não somos capazes nem de um dia regressar a esta essência da linguagem, nem de simplesmente assumi-la como herança. Pelo contrário, devemos entrar em diálogo com a experiência grega da linguagem como lógos. Por quê? Porque nós, sem uma suficiente reflexão sobre a linguagem, jamais sabemos verdadeiramente o que é a filosofia como a co-respondência acima assinalada, o que ela é como uma privilegiada maneira de dizer.
Agora, porém, haveria boas razões para exigir que nosso encontro se limitasse à questão que trata da filosofia. Esta restrição seria só então possível e até necessária, se do diálogo resultasse que a filosofia não é aquilo que aqui lhe atribuímos: uma correspondência, que manifesta na linguagem o apelo do ser do ente.
Com outras palavras: nosso encontro não se propõe a tarefa de desenvolver um programa fixo. Mas ele quisera ser um esforço de preparar todos os participantes para um recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos o ser do ente. Nomeando isto, pensamos no que já Aristóteles diz: Tò òn légetai pollakhõs.
“O sendo-ser torna-se, de múltiplos modos, fenômeno”.
NOTAS
1. Dis-posição (Stimmung) é um originário modo de ser do ser-aí, vinculado ao sentimento de situação (Befindlichkeit) que acompanha a derelicção (Geworfenheift). Pela dis-posição (que nada tem a ver com tonalidades psicológicas) o ser-no-mundo é radicalmente aberto. Esta abertura antecede o conhecer e o querer e é condição de possibilidade de qualquer orientar-se para próprio da intencionalidade (veja -se Ser e Tempo, § 29). Jogando com a riqueza semântica das derivações de Stimmung: bestimmt, gestimmt, abstirnmen, Ges!imnitheit, Bestimmtheit, Heidegger procura tornar claro como esta disposição é uma abertura que determina a correspondência ao ser, na medida em que é instaurada pela voz (Stimme) do ser. O filósofo toca aqui nas raízes do comportamento filosófico, da atitude originalmente do filosofar. (N. do T.).
2. Já em Ser e Tempo (§ 29) se alude à dis-posição que acompanha a teoria e se afirma que “o conhecimento ávido por determinações lógicas se enraíza ontológica e existencialmente no sentido de situação, característico do ser-no-mundo (p. 138). Apontando para o fato de que a própria razão está pre-dis-posta para confiar na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras, Heidegger fere um tabu que os sucessos da técnica ainda mais sacralizam. Mas, desde que Habermas, em seu livro Conhecimento e Interesse (Ed. Shurkamp, Frankfurt a. M. 1968), mostrou que atrás de todo conhecimento existe o interesse que o dirige, que a teoria quanto mais pura se quer mais se ideologiza, pode-se descobrir, nas afirmações de Heidegger, uma antecipação das razões ontológico-existenciais da mistura do conhecimento e interesse. Não há conhecimento imune ao processo de ideologização; dele não escapa nem mesmo o conhecimento científico, por mais exato, rigoroso e neutro que se proclame. (N. do T.).
3. A crítica da instrumentalização da linguagem visa a proteger o sentido, a dimensão conotadora e simbólica, contra a redução da linguagem ao nível da denotação, do simplesmente operativo. Não se trata apenas de salvar a mensagem lingüística da ameaça da pura semioticidade. O filósofo descobre na linguagem o poder do lógos, do dizer como processo apofântico; entrevê na linguagem a casa do ser, onde o homem mora nas raízes do humano. Em Heidegger, uma ontologia já impossível é substituída pela critica da linguagem, numa antecipação da moderna analítica da linguagem. (N. do T.).
Publicado em filopararanavai 2012
Utilizada a Versão eletrônica do livro “Que é isto – A Filosofia? (Qu’est-ce que la Philosophie?)”. Tradução e notas: Ernildo Stein
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/
Por isso devemos tentar determinar mais exatamente a questão. Desta maneira, levaremos o diálogo para uma direção segura. Procedendo assim, o diálogo é conduzido a um caminho. Digo: a um caminho. Assim concedemos que este não é o único caminho. Deve ficar mesmo em aberto se o caminho para o qual desejaria chamar a atenção, no que segue, é na verdade um caminho que nos permite levantar a questão e respondê-la”.
Assim enceta Heidegger suas elucubrações sobre o tema: que é isso, a Filosofia? Essas são suas palavras iniciais, literalmente aqui replicadas porque se mostram fundamentais para se captar a pretensão do autor, ou seja, indicar um caminho de abordagem ao tema do que vem a ser a Filosofia.
O autor prossegue questionando a própria suposição se seremos capazes de encontrar um caminho para responder à questão, porque no momento em que perguntamos: Que é isto — a filosofia?, falamos, obviamente, sobre a filosofia e, perguntando desta maneira, localizamo-nos num ponto acima da filosofia, e isto quer dizer, fora dela. Porém, a meta de nossa questão é penetrar na filosofia, submeter nosso comportamento às suas leis, quer dizer, ‘filosofar’. O caminho de nossa discussão deve ter por isso não apenas uma direção bem clara, mas esta direção deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos movemos no âmbito da filosofia, e não fora e em torno dela.
Na tentativa de delimitar seu objeto de estudo, prossegue Heidegger defendendo que a Filosofia não é apenas algo que pertence ao âmbito da racionalidade, mas que é a própria guarda da razão. Observa, todavia, que afirmar que a Filosofia é a guarda da razão não nos leva muito longe, porque nos cabe agora responder: que é isso, a razão? Onde e por quem foi decidido o que é a razão?
Se aquilo que se apresenta como ratio foi primeiramente e apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua história, então não é de bom alvitre tratar a priori a filosofia como negócio da ratio. Todavia, tão logo pomos em suspeição a caracterização da filosofia como um comportamento racional, torna-se, da mesma maneira, também duvidoso se a filosofia pertence à esfera do irracional.
É relevante observar um ponto: se, por um lado, é problemático tomarmos a filosofia como algo racional a priori, determiná-la como algo irracional é, novamente, tomar o racional como padrão e pressupor como óbvio o que seja a razão.
Se, por outro lado, apontamos para a possibilidade de que aquilo a que a filosofia se refere concerne a nós homens em nosso ser e nos toca, então pode ser que esta maneira de ser afetado não tenha absolutamente nada a ver com aquilo que comumente se designa como afetos e sentimentos, em resumo, o irracional.
O autor conclui que do que foi dito até então, deduzimos inicialmente apenas isto: é necessário maior cuidado se ousamos inaugurar um encontro com o título: Que é isto — A Filosofia?
Ele escolhe partir da origem grega do termo, não por motivo vão, mas porque, segundo ele, essa origem nos traz peculiaridades absolutamente relevantes e reveladoras:
A palavra philosophía diz-nos que a filosofia é algo que, pela primeira vez, e antes de tudo, vinca a existência do mundo grego. Não só isto — a philosophía determina também a linha mestra de nossa história ocidental-européia. A batida expressão “filosofia ocidental-européia” é, na verdade, uma tautologia. Por quê? Porque a "filosofia" é grega em sua essência — e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua essência de tal natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver.
A frase: a filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história, originariamente “filosóficos”. Isto é atestado pelo surto e domínio das ciências. Pelo fato de elas brotarem da marcha mais íntima da história ocidental-européia, o que vale dizer do processo da filosofia, são elas capazes de marcar hoje, com seu cunho específico, a história da humanidade pelo orbe terrestre.
A tradição designada pelo nome grego philosophía, tradição nomeada pela palavra historial philosophía, mostra-nos a direção de um caminho. Ela não nos entrega à prisão do passado e irrevogável. Transmitir, delivrer é um libertar para a liberdade do diálogo com o que foi e continua sendo. Se estivermos verdadeiramente atentos à palavra e meditarmos o que ouvimos, o nome “filosofia” nos convoca para penetrarmos na história da origem grega da filosofia. A palavra philosophía está, de certa maneira, na certidão de nascimento de nossa própria história; podemos mesmo dizer: ela está na certidão de nascimento da atual época da história universal que se chama era atômica. Por isso somente podemos levantar a questão: Que é isto — a filosofia?, se começamos um diálogo com o pensamento do mundo grego. Porém, não apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega.
Perguntamos: que é isto...? Em grego isto é: ti estin. A questão relativa ao que algo seja permanece, todavia, multívoca. Podemos perguntar, por exemplo: que é aquilo lá longe? Obtemos então a resposta: uma árvore. A resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que não conhecemos exatamente.
Podemos, entretanto, questionar mais: que é aquilo que designamos “árvore"? Com a questão agora posta avançamos para a proximidade do ti estin grego. É aquela forma de questionar desenvolvida por Sócrates, Platão e Aristóteles. Estes perguntam, por exemplo: Que é isto — o belo? Que é isto — o conhecimento? Que é isto — a natureza? Que é isto — o movimento?
Agora, porém, devemos prestar atenção para o fato de que nas questões acima não se procura apenas uma delimitação mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas é preciso cuidar para que ao mesmo tempo se dê uma explicação sobre o que significa o “que”, em que sentido se deve compreender o ti. Aquilo que o ‘que’ significa se designa o quid est, tò quid: a quidditas, a qüididade. Entretanto, a quidditas se determina diversamente nas diversas épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Platão é uma interpretação característica daquilo que quer dizer o ti. Ele significa precisamente a idéia. O fato de nós, quando perguntamos pelo ti, pelo quid, nos referimos à “idéia” não é absolutamente evidente. Aristóteles dá uma outra explicação do ti que Platão. Outra ainda dá Kant e também Hegel explica o tí de modo diferente. Sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado através do fio condutor que representa o ti, o quid, o “que”. Em todo caso: quando, referindo-nos à filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questão originariamente grega.
Notemos bem: tanto o tema de nossa interrogação: “a filosofia”, como o modo como perguntamos: “que é isto...?” — ambos permanecem gregos em sua proveniência. Nós mesmos fazemos parte desta origem, mesmo então quando nem chegamos a dizer a palavra “filosofia”. Somos propriamente chamados de volta para esta origem, reclamados para ela e por ela, tão logo pronunciemos a pergunta: Que é isto — a filosofia? não apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo.
Se penetrarmos no sentido pleno e originário da questão: Que é isto — a filosofia? então nosso questionar encontrou, em sua proveniência historial, uma direção para nosso futuro historial. Encontramos um caminho. A questão mesma é um caminho. Ele conduz da existência própria ao mundo grego até nós, quando não para além de nós mesmos. Estamos — se perseverarmos na questão — a caminho, num caminho claramente orientado. Já desde há muito tempo costuma-se caracterizar a pergunta pelo que algo é, como a questão da essência. A questão da essência torna-se mais viva quando aquilo por cuja essência se interroga, se obscurece e confunde, quando ao mesmo tempo a relação do homem para com o que é questionado se mostra vacilante e abalada.
A questão de nosso encontro refere-se à essência da filosofia. Ela procura o que é o ente enquanto é. A filosofia está a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser.
E por isso que a filosofia é epistéme theoretiké. Mas que é isto que ela perscruta?
Aristóteles di-lo, fazendo referência às pròtai arkhai kai aitíai. Costuma-se traduzir: “as primeiras razões e causas” — a saber, do ente. As primeiras razões e causas constituem assim o ser do ente. Após dois milênios e meio me parece que teria chegado o tempo de considerar o que afinal tem o ser do ente a ver com coisas tais como “razão” e “causa”. Em que sentido é pensado o ser para que coisas tais como “razão” e “causa” sejam apropriadas para caracterizarem e assumirem o sendo-ser do ente?
A citada afirmação de Aristóteles diz-nos para onde está a caminho aquilo que se chama, desde Platão, “filosofia”. A afirmação nos informa sobre isto que é — a filosofia. A filosofia é uma espécie de competência capaz de perscrutar o ente, a saber, sob o ponto de vista do que ele é, enquanto é ente.
Mas a afirmação de Aristóteles sobre o que é a filosofia não pode ser absolutamente a única resposta à nossa questão. No melhor dos casos, é ela uma resposta entre muitas outras. Com o auxilio da caracterização aristotélica de filosofia pode-se evidentemente representar e explicar tanto o pensamento antes de Aristóteles e Platão quanto a filosofia posterior a Aristóteles. Entretanto, facilmente se pode apontar para o fato de que a filosofia mesma, e a maneira como ela concebe sua essência, passou por várias transformações nos dois milênios que seguiram o Estagirita. Quem ousaria negá-lo? Mas não podemos passar por alto o fato de a filosofia de Aristóteles e Nietzsche permanecer a mesma, precisamente na base destas transformações e através delas. Pois as transformações são a garantia para o parentesco no mesmo.
De nenhum modo afirmamos com isto que a definição aristotélica de filosofia tenha valor absoluto. Pois ela é já em meio à história do pensamento grego uma determinada explicação daquele pensamento e do que lhe foi dado como tarefa. A definição aristotélica de filosofia certamente é livre continuação da aurora do pensamento e seu encerramento. Digo livre continuação porque de maneira alguma pode ser demonstrado que as filosofias tomadas isoladamente e as épocas da filosofia brotam uma das outras no sentido da necessidade de um processo dialético.
Do que foi dito, que resulta para nossa tentativa de, num encontro, tratarmos a questão: Que é isto — a filosofia? Primeiramente um ponto: não podemos ater-nos apenas à definição de Aristóteles. Disto deduzimos o outro ponto: devemos ocupar-nos das primeiras e posteriores definições de filosofia.
A resposta somente pode ser uma resposta filosofante, uma resposta que enquanto resposta filosofa por ela mesma.
Quando é que a resposta à questão: Que é isto — a filosofia? é uma resposta filosofante? Quando filosofamos nós? Manifestamente apenas então - quando entramos em diálogo com os filósofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, é tarefa específica dos filósofos, é o falar, o légein no sentido do dialégesthai, o falar como diálogo. Se e quando o diálogo é necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto.
Supondo, portanto, que os filósofos são interpelados pelo ser do ente para que digam o que o ente é, enquanto é, então também nosso diálogo com os filósofos deve ser interpelado pelo ser do ente.
O ente enquanto tal dis-põe de tal maneira o falar que o dizer se harmoniza (accorder) com o ser do ente.
Para Platão e Aristóteles, o espanto é a dis-posição (1) na qual e para a qual o ser do ente se abre, o espanto é a dis-posição em meio à qual estava garantida para os filósofos gregos a correspondência ao ser do ente.
De bem outra espécie é aquela dis-posição que levou o pensamento a colocar a questão tradicional do que seja o ente enquanto é, de um modo novo, e a começar assim uma nova época da filosofia. Descartes, em suas meditações, não pergunta apenas e em primeiro lugar ti tò ón — que é o ente, enquanto é?
Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é o ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a essência da certitudo.
Para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a dúvida se torna aquela dis-posição em que vibra o acordo com o ens certum, o ente que é com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixação do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para o ego do homem. Assim, o ego se transforma no sub-iectum por excelência, e, desta maneira, a essência do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinação de um clare et distincte percipere. A dis-posição afetiva da dúvida é o positivo acordo com a certeza. Daí em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A dis-posição afetiva da confiança na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acessível permanece o páthos e com isso a arkhé da filosofia moderna.
Mas em que consiste o télos, a consumação da filosofia moderna, caso disto nos seja permitido falar? É este termo determinado por uma outra dis-posição? Onde devemos nós procurar a consumação da filosofia moderna? Em Hegel ou apenas na filosofia dos últimos anos de Schelling? E que acontece com Marx e Nietzsche? Já se movimentam eles fora da órbita da filosofia moderna? Se não, como determinar seu lugar?
Parece até que levantamos apenas questões históricas. Mas na verdade meditamos o destino essencial da filosofia. Procuramos pôr-nos à escuta da voz do ser. Qual a dis-posição em que ela mergulha o pensamento atual? Uma resposta unívoca a esta pergunta é praticamente impossível. Provavelmente impera uma dis-posição afetiva fundamental. Ela, porém, permanece oculta para nós. Isto seria um sinal para o fato de que nosso pensamento atual ainda não encontrou seu claro caminho. O que encontramos são apenas dis-posições do pensamento de diversas tonalidades. Dúvida e desespero de um lado e cega prossessão por princípios, não submetidos a exame, de outro, se confrontam.
Medo e angústia misturam-se com esperança e confiança. Muitas vezes e quase por toda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representação e cálculo puramente lógicos é absolutamente livre de qualquer dis-posição. Mas também a frieza do cálculo, também a sobriedade prosaica da planificação são sinais de um tipo de dis-posição. Não apenas isto; mesmo a razão que se mantém livre de toda influência das paixões é, enquanto razão, pré-dis-posta para a confiança na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras. (2)
A correspondência propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que corresponde ao apelo do ser do ente, é a filosofia. Que é isto — a filosofia? somente aprendemos a conhecer e a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é. Ela é ao modo da correspondência que se harmoniza e põe de acordo com a voz do ser do ente. Este co-responder é um falar. Está a serviço da linguagem. O que isto significa é de difícil compreensão para nós hoje, pois nossa representação comum da linguagem passou por um estranho processo de transformações.
Como conseqüência disso a linguagem aparece como um instrumento de expressão. (3) De acordo com isso, tem-se por mais acertado dizer que a linguagem está a serviço do pensamento em vez de: o pensamento como correspondência está a serviço da linguagem. Mas, antes de tudo, a representação atual da linguagem está tão longe quanto possível da experiência grega da linguagem. Aos gregos se manifesta a essência da linguagem como lógos.
Mas o que significa lógos e légein? Apenas hoje começamos lentamente, através de múltiplas interpretações do lógos, a descerrar para nossos olhos o véu sobre sua originária essência grega. Entretanto, nós não somos capazes nem de um dia regressar a esta essência da linguagem, nem de simplesmente assumi-la como herança. Pelo contrário, devemos entrar em diálogo com a experiência grega da linguagem como lógos. Por quê? Porque nós, sem uma suficiente reflexão sobre a linguagem, jamais sabemos verdadeiramente o que é a filosofia como a co-respondência acima assinalada, o que ela é como uma privilegiada maneira de dizer.
Agora, porém, haveria boas razões para exigir que nosso encontro se limitasse à questão que trata da filosofia. Esta restrição seria só então possível e até necessária, se do diálogo resultasse que a filosofia não é aquilo que aqui lhe atribuímos: uma correspondência, que manifesta na linguagem o apelo do ser do ente.
Com outras palavras: nosso encontro não se propõe a tarefa de desenvolver um programa fixo. Mas ele quisera ser um esforço de preparar todos os participantes para um recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos o ser do ente. Nomeando isto, pensamos no que já Aristóteles diz: Tò òn légetai pollakhõs.
“O sendo-ser torna-se, de múltiplos modos, fenômeno”.
NOTAS
1. Dis-posição (Stimmung) é um originário modo de ser do ser-aí, vinculado ao sentimento de situação (Befindlichkeit) que acompanha a derelicção (Geworfenheift). Pela dis-posição (que nada tem a ver com tonalidades psicológicas) o ser-no-mundo é radicalmente aberto. Esta abertura antecede o conhecer e o querer e é condição de possibilidade de qualquer orientar-se para próprio da intencionalidade (veja -se Ser e Tempo, § 29). Jogando com a riqueza semântica das derivações de Stimmung: bestimmt, gestimmt, abstirnmen, Ges!imnitheit, Bestimmtheit, Heidegger procura tornar claro como esta disposição é uma abertura que determina a correspondência ao ser, na medida em que é instaurada pela voz (Stimme) do ser. O filósofo toca aqui nas raízes do comportamento filosófico, da atitude originalmente do filosofar. (N. do T.).
2. Já em Ser e Tempo (§ 29) se alude à dis-posição que acompanha a teoria e se afirma que “o conhecimento ávido por determinações lógicas se enraíza ontológica e existencialmente no sentido de situação, característico do ser-no-mundo (p. 138). Apontando para o fato de que a própria razão está pre-dis-posta para confiar na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras, Heidegger fere um tabu que os sucessos da técnica ainda mais sacralizam. Mas, desde que Habermas, em seu livro Conhecimento e Interesse (Ed. Shurkamp, Frankfurt a. M. 1968), mostrou que atrás de todo conhecimento existe o interesse que o dirige, que a teoria quanto mais pura se quer mais se ideologiza, pode-se descobrir, nas afirmações de Heidegger, uma antecipação das razões ontológico-existenciais da mistura do conhecimento e interesse. Não há conhecimento imune ao processo de ideologização; dele não escapa nem mesmo o conhecimento científico, por mais exato, rigoroso e neutro que se proclame. (N. do T.).
3. A crítica da instrumentalização da linguagem visa a proteger o sentido, a dimensão conotadora e simbólica, contra a redução da linguagem ao nível da denotação, do simplesmente operativo. Não se trata apenas de salvar a mensagem lingüística da ameaça da pura semioticidade. O filósofo descobre na linguagem o poder do lógos, do dizer como processo apofântico; entrevê na linguagem a casa do ser, onde o homem mora nas raízes do humano. Em Heidegger, uma ontologia já impossível é substituída pela critica da linguagem, numa antecipação da moderna analítica da linguagem. (N. do T.).
Publicado em filopararanavai 2012
Utilizada a Versão eletrônica do livro “Que é isto – A Filosofia? (Qu’est-ce que la Philosophie?)”. Tradução e notas: Ernildo Stein
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/
Entre as principais obras de Heidegger encontram-se: "Novas Indagações sobre Lógica" (1912), "O Problema da Realidade na Filosofia Moderna" (1912), "A Doutrina do Juízo no Psicologismo - Uma Contribuição Crítico-positiva à Lógica" (1914), "A Doutrina das Categorias e da Significação em Duns Scoto" (1916), "O Conceito de Tempo na Ciência da História" (1916), "Ser e Tempo" (1927), "Que é Metafísica?" (1929), "Da Essência do Fundamento" (1929), "Kant e o Problema da Metafísica" (1929), Hölderlin e a Essência da Poesia" (1936).
Também podem ser citadas "Da Essência da Verdade" (1943), "Introdução à Metafísica" (1953), "Da Experiência de Pensar" (1954), "O que é isto, a Filosofia?" (1956), "Da Pergunta sobre o Ser" (1956), "O Princípio da Razão" (1956), "Identidade e Diferença (1957), "A Caminho da Linguagem" (1959), "Língua e Pátria" (1960), "Nietzsche" (1961), "A Pergunta sobre a Coisa" (1962), "Tese de Kant sobre o Ser" (1962), "Marcos do Caminho" (1967), "Sobre o Assunto Pensamento" (1969), "Fenomenologia e Teologia" (1970), "Heráclito" (1970).
Também podem ser citadas "Da Essência da Verdade" (1943), "Introdução à Metafísica" (1953), "Da Experiência de Pensar" (1954), "O que é isto, a Filosofia?" (1956), "Da Pergunta sobre o Ser" (1956), "O Princípio da Razão" (1956), "Identidade e Diferença (1957), "A Caminho da Linguagem" (1959), "Língua e Pátria" (1960), "Nietzsche" (1961), "A Pergunta sobre a Coisa" (1962), "Tese de Kant sobre o Ser" (1962), "Marcos do Caminho" (1967), "Sobre o Assunto Pensamento" (1969), "Fenomenologia e Teologia" (1970), "Heráclito" (1970).
filoparanavaí 2012
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