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domingo, 3 de janeiro de 2010

O Príncipe - parte 5

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O Príncipeo / Parte 5

Filosofia Política



Nicoló Machiavelli
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O Príncipe - Parte PARTE 5

CAPÍTULO XXV

DE QUANTO PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS E DE QUE MODO SE LHE DEVA RESISTIR

(QUANTUM FORTUNA IN REBUS HUMANIS POSSIT, ET QUOMODO ILLI SIT OCCURREN DUM)

Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destróem as árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso.

Da mesma forma acontece com a sorte, a qual demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu ímpeto em direção ao ponto onde sabe não foram construídos diques e anteparos para contê-la, E, se considerardes a Itália, que é a sede destas variações e aquela que lhes deu motivo, vereis ser ela uma região sem diques e sem qualquer anteparo, eis que se protegida por convenientes forças militares, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esse transbordamento não teria feito as grandes alterações que fez, ou não teria ocorrido. Penso que isto seja suficiente quanto ao que tinha a dizer acerca da oposição que se pode antepor à sorte em geral.

Mas, restringindo-me mais ao particular, digo por que se vê um príncipe hoje em franco e feliz progresso e amanhã em ruína, sem que tenha mudado sua natureza ou as suas qualidades; isso resulta, segundo creio, primeiro das razões que foram longamente expostas mais atrás, isto é, que o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruina-se segundo as variações desta. Creio, ainda, seja feliz aquele que acomode o seu modo de proceder com a natureza dos tempos, da mesma forma que penso seja infeliz aquele que, com o seu proceder, entre em choque com o momento que atravessa.

Isso decorre de ver-se que os homens, naquilo que os conduz ao fim que cada um tem por objetivo, isto é, glórias e riquezas, procedem por formas diversas: um com cautela, o outro com ímpeto, um com violência, o outro com astúcia, um com paciência e o outro por forma contrária; e cada um, por esses diversos meios, pode alcançar o objetivo.

Vê-se, ainda, de dois indivíduos cautos, um alcançar o seu objetivo, o outro não, e da mesma maneira, dois deles alcançarem igualmente fim feliz com duas tendências diversas, sendo, por exemplo, um cauteloso e o outro impetuoso; isso resulta apenas da natureza dos tempos que se adaptam ou não ao proceder dos mesmos. Daí decorre aquilo que eu disse, isto é, que dois indivíduos agindo por formas diversas podem alcançar o mesmo efeito, ao passo que de dois que operem igualmente, um alcança o seu fim e o outro não.

Disto depende, ainda, a variação do conceito de bem, porque, se alguém se orienta com prudência e paciência e os tempos e as situações se apresentam de modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança a felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam, ele se arruina, visto não ter mudado seu modo de proceder. Nem é possível encontrar homem tão prudente que saiba acomodar-se a isso, seja porque não pode se desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja ainda porque, tendo alguém prosperado seguindo sempre por um caminho, não se consegue persuadi-lo de abandoná-lo. Por isso, o homem cauteloso, quando é tempo de passar para o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em conseqüência, cai em ruína, dado que se mudasse de natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua fortuna não se modificaria.

O Papa Júlio II, em todas as suas coisas procedeu impetuosamente e encontrou tanto os tempos como as circunstâncias coincidentes com aquele seu modo de proceder, pelo que sempre alcançou feliz êxito. Considerai a primeira campanha que encetou contra Bolonha, sendo ainda vivo messer Giovanni Bentivoglio. Os venezianos estavam descontentes; o rei da Espanha, nas mesmas condições; com a França ainda discutia tal empresa. Isso não obstante, com ferocidade e ímpeto, deu início pessoalmente àquela expedição que, uma vez iniciada, fez com que ficassem suspensos e parados tanto a Espanha como os venezianos, estes por medo, aquela pelo desejo de recuperar todo o reino de Nápoles, de outra parte, arrastou consigo o rei de França porque, vendo-o esse rei em campanha e desejando torná-lo seu amigo para aviltar os venezianos, julgou não poder negar-lhe a sua gente sem injuriá-lo por forma manifesta.

Realizou Júlio, portanto, com seu movimento impetuoso, aquilo que jamais outro pontífice, com toda a humana prudência, teria feito, pois se ele, para partir de Roma, tivesse esperado estar com todos os planos estabelecidos e todas as coisas assentadas, como qualquer outro Papa teria feito, nunca teria obtido êxito, eis que o rei de França teria apresentado mil desculpas e os outros lhe teriam incutido mil receios. Desejo omitir as outras suas ações, todas semelhantes e todas com feliz êxito, sendo que a brevidade da vida não o deixou experimentar o contrário, dado que se tivessem sobrevindo tempos em que se tornasse necessário agir com cautelas, surgiria a sua ruína, pois jamais ele teria desviado daquele modo de proceder a que a natureza o inclinava.

Concluo, pois, que variando a sorte e permanecendo os homens obstinados nos seus modos de agir, serão felizes enquanto aquela e estes sejam concordes e infelizes quando surgir a discordância. Considero seja melhor ser impetuoso do que dotado de cautela, porque a fortuna é mulher e consequentemente se torna necessário, querendo dominá-la, bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, porém, como mulher, sempre é amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais afoitos e com maior audácia a dominam.


CAPÍTULO XXVI

EXORTAÇÃO PARA PROCURAR TOMAR A ITÁLIA E LIBERTÁ-LA DAS MÃOS DOS BÁRBAROS

(EXHORTATIO AD CAPESSENDAM ITALIAM IN LIBERTATEMQUE A BARBARIS VINDICANDAM)

Consideradas pois, todas as coisas já expostas, pensando comigo mesmo se no momento presente, na Itália, corriam tempos capazes de honrar um príncipe novo e se havia matéria que assegurasse a alguém, prudente e valoroso, a oportunidade de nela introduzir nova organização que a ele desse honra e fizesse bem a todo o povo, quer me parecer concorrerem tantas circunstâncias favoráveis a um príncipe novo que não sei qual o tempo que poderia ser mais adequado para isto. E se, como já disse, para se conhecer a virtude de Moisés foi necessário que o povo de Israel estivesse escravizado no Egito, para conhecer a grandeza do ânimo de Ciro, que os persas fossem oprimidos pelos medas, e o valor de Teseu, que os atenienses estivessem dispersos, também no presente, querendo conhecer a virtude de um espírito italiano, seria necessário que a Itália se reduzisse ao ponto em que se encontra no momento, que ela fosse mais escravizada do que os hebreus, mais oprimida do que os persas, mais desunida do que os atenienses, sem chefe, sem ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida, e tivesse suportado ruína de toda sorte.

Se bem tenha surgido, até aqui, certo vislumbre de esperança em relação a algum príncipe, parecendo poder ser julgado como dirigido por Deus para redenção da Itália, contudo foi visto depois como, no apogeu de suas ações, foi abandonado pela sorte. De modo que, tornada sem vida, espera ela por aquele que cure as suas feridas e ponha fim aos saques da Lombardia, às mortandades no Reino de Nápoles e na Toscana, e a cure daquelas suas chagas já de há muito enfistuladas. Vê-se como ela implora a Deus lhe envie alguém que a redima dessas crueldades e insolências bárbaras. Vê-se, ainda, toda ela pronta e disposta a seguir uma bandeira, desde que haja quem a empunhe.

Nem se vê no presente em quem possa ela confiar a não ser na vossa ilustre casa, a qual, com a sua fortuna e virtude, favorecida por Deus e pela Igreja, da qual é agora príncipe, poderá tornar-se chefe desta redenção. Isso não será muito difícil, se procurardes seguir as ações e a vida dos acima indicados. E, se bem aqueles homens sejam raros e maravilhosos, sem dúvida foram homens, todos eles tiveram menor ocasião que a presente: porque os empreendimentos dos mesmos não foram mais justos nem mais fáceis do que este, nem foi Deus mais amigo deles do que de vós. É de grande justiça o que digo: iustum enim est bellum quibus necessarium, et pia arma ubi nulla nisi in armis spes est. Aqui há uma grande disposição, e onde esta existe não pode haver grande dificuldade, desde que se imite o modo de agir daqueles que apontei como exemplo. Além disso, aqui se vêem acontecimentos extraordinários emanados de Deus: o mar se abriu, uma nuvem revelou o caminho, a pedra verteu água, aqui choveu o maná; todas as coisas concorreram para a vossa grandeza. O restante deve ser feito por vós. Deus não quer fazer tudo, para não nos tolher o livre arbítrio e parte daquela glória que compete a nós. E não é de admirar se algum dos já citados italianos não tenha podido fazer aquilo que se pode esperar faça a vossa ilustre casa, e se, em tantas revoluções da Itália e em tantas manobras de guerra, parecer sempre que nesta a virtude militar esteja extinta. Isso resulta de que as suas antigas instituições não eram boas e não houve quem soubesse encontrar outras; e nenhuma coisa faz tanta honra a um príncipe novo, quanto as novas leis e os novos regulamentos por ele elaborados. Estes, quando são bem fundados e em si encerrem grandeza, tornam o príncipe digno de reverência e admiração; na Itália não faltam motivos para introduzir-se qualquer reforma. Aqui existe grande valor no povo, enquanto ele falta nos chefes. Observei nos duelos e nos combates individuais o quanto os italianos são superiores na força, na destreza ou no engenho. Mas, quando se passa para os exércitos, não comparecem. E tudo resulta da fraqueza dos chefes, porque aqueles que sabem não são obedecidos, e todos julgam saber, não tendo surgido até agora alguém que tenha sabido se sobressair pela virtude ou pela fortuna de forma a que os outros cedam. Daí decorre que, em tanto tempo, em tantas guerras feitas nos últimos vinte anos, sempre que se formou um exército inteiramente italiano o mesmo deu mau exemplo, do que dão prova Taro, depois Alexandria, Cápua, Gênova, Vailá, Bolonha, Mestri.

Querendo, pois, a vossa ilustre casa seguir aqueles homens excelentes e redimir suas províncias, é necessário, antes de toda e qualquer outra coisa, como verdadeiro fundamento de qualquer empreendimento, prover-se de tropas próprias, pois não se pode conseguir outras mais fiéis e mais seguras, nem melhores soldados. E, ainda que cada um deles seja bom, todos juntos tornar-se-ão ainda melhores, quando se virem comandados pelo seu príncipe e por este honrados e mantidos. É necessário, portanto, preparar esses exércitos, para poder, com a virtude itálica, defender-se dos estrangeiros.

E, se bem as infantarias suíças e espanholas sejam consideradas terríveis, em ambas existem defeitos, pelo que um terceiro tipo de infantaria poderia não somente opor-se-lhes, mas confiar em superá-las. Porque os espanhóis não podem enfrentar a cavalaria e os suíços deverão ter medo dos infantes, quando no combate os encontrarem obstinados como eles. Já se viu, e vê-se ainda, os espanhóis não poderem enfrentar uma cavalaria francesa e os suíços serem derrotados por uma infantaria espanhola. E, se bem deste último caso não se tenha tido plena prova, contudo viu-se uma amostra na campanha de Ravena, quando as infantarias espanholas se defrontaram com os batalhões alemães, que têm a mesma organização dos suíços; aí os espanhóis, com a agilidade do corpo e auxílio dos seus pequenos escudos, haviam-se colocado debaixo dos chuços alemães e estavam certos de feri-los e matá-los sem que os mesmos tal pudessem impedir; realmente, não fosse a cavalaria que os atacou, teriam morto todos os inimigos. Pode-se, pois, conhecido o defeito de uma e de outra dessas infantarias, organizar uma diferente, que resista à cavalaria e não tenha medo dos infantes, o que dará qualidade superior aos exércitos e imporá a mudança de táticas. Estas são daquelas coisas que, reformadas, dão reputação e grandeza a um príncipe novo.

Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim de que a Itália conheça, depois de tanto tempo, um seu redentor. Nem posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas aquelas províncias que têm sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de vingança, com que obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas se lhe fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual inveja se lhe oporia? Qual italiano lhe negaria o seu favor? A todos repugna este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência com aquele ânimo e com aquela esperança com que se abraçam as causas justas, a fim de que, sob sua insígnia, esta pátria seja nobilitada e sob seus auspícios se verifique aquele dito de Petrarca:

Virtude contra Furor

Tomará Armas; e Faça o Combater Curto

Que o Antigo Valor

Nos Itálicos Corações Ainda não é Morto.


CARTA DE MACHIAVELLI A FRANCESCO VETTORI, EM ROMA

(RELATIVA À OBRA IL PRÍNCIPE)

Magnifico oratori Florentino Francisco Vectori apud Summum Pontificem et benefactori suo.

Romae,

Magnífico embaixador. Tardias jamais foram as graças divinas. Digo isto porque me parecia não ter perdido mas sim estar esmaecida a vossa graça, tendo estado vós muito tempo sem escrever-me; estava em dúvida de onde pudesse vir a razão de tal. E dava pouca importância a todas as causas que vinham à minha mente, salvo quando pensava que tivésseis retraído de escrever-me, porque vos tivesse sido escrito que eu não fosse bom guardião de vossas cartas; e eu sabia que, afora Filippo e Pagolo, outros, de minha parte, não as tinham visto. Readquiri essa graça pela vossa última de 23 do mês passado, pelo que fico contentíssimo ao ver quão ordenada e calmamente exerceis essa função pública, e eu vos concito a continuar assim, porque quem deixa as suas comodidades pelas comodidades dos outros, perde as suas e destes não recebe gratidão. Desde que a fortuna quer dispor todas as coisas, é preciso deixá-la fazer, ficar quieto e não lhe criar embaraço, esperando que o tempo lhe permita fazer alguma coisa pelos homens; então, será bem suportardes maiores fadigas, zelar melhor das coisas, e a mim convirá partir da vilas e dizer: eis-me aqui. Não posso, portanto, desejando render-vos iguais graças, dizer nesta minha carta outra coisa que não aquilo que seja a minha vida, e se julgardes tal que valha trocá-la com a vossa, ficarei contente em mudá-la.

Aqui estou, na vila; depois que ocorreram aqueles meus últimos casos, não estive, somando todos, vinte dias em Florença. Até aqui tenho apanhado tordos à mão. Levantava-me antes do amanhecer, preparava a armadilha, ia-me além com um feixe de gaiolas ao ombro, que até parecia o Getas quando o mesmo voltava do porto com os livros de Anfitrião; apanhava no mínimo dois e no máximo seis tordos. E, assim, passei todo o mês de setembro. Depois esse passatempo, ainda que desprezível e estranho, veio a faltar com desgosto meu. Dir-vos-ei qual a minha vida agora. Levanto-me de manhã com o sol e vou a um meu bosque que mandei cortar, onde fico duas horas a examinar o trabalho do dia anterior e a passar o tempo com aqueles cortadores que estão sempre às voltas com algum aborrecimento entre si ou com os vizinhos. Acerca deste bosque eu teria a dizer-vos mil belas coisas que me aconteceram, bem como de Frosino de Panzano e dos outros que queriam desta lenha. Frosino, principalmente, mandou buscar certa quantidade sem dizer-me nada e, na ocasião do pagamento, queria reter dez liras que disse ter ganho de mim, há quatro anos, num jogo de cricca em casa de Antônio Guicciardini. Comecei a fazer o diabo: queria acusar o carroceiro, que fora ali mandado por ele, como ladrão. Enfim Giovanni Machiaveili interveio e nos pôs de acordo. Batista Guicciardini, Filippo Ginori, Tommaso dei Bene e alguns outros cidadãos, quando aqueles maus ventos sopravam, cada um me adquiriu uma ruma de lenha. Prometi a todos e mandei uma a Tommaso, a qual chegou a Florença pela metade, porque, para empilhá-la, ali estavam ele, a mulher, as criadas e os filhos, os quais pareciam o Gabburra quando na quinta-feira, com seus rapazes, abate um boi. De modo que, visto em quem eu depositava o meu ganho, disse aos outros que não tinha mais lenha; todos se encolerizaram e agastaram comigo, especialmente Batista, que inclui esta entre as demais desgraças de Prato.

Saindo do bosque, vou a uma fonte e, daqui, ao meu viveiro de tordos. Levo um livro comigo, ou Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores, Tíbulo, Ovidio e semelhantes; leio aquelas suas amorosas paixões, e aqueles seus amores lembram-me os meus; deleito-me algum tempo nestes pensamentos. Depois, vou pela estrada até à hospedaria; falo com os que passam, pergunto notícias das suas cidades, ouço muitas coisas e noto vários gostos e fantasias dos homens. Enquanto isso, chega a hora do almoço, quando com a minha família como aqueles alimentos que esta pobre vila e este pequeno patrimônio comportam. Terminado o almoço, retorno à hospedaria; aqui, geralmente, estão o estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois padeiros. Com estes eu me rebaixo o dia todo jogando cricca, trichtach, e, depois, daí nas cem mil contendas e infinitos acintes com palavras injuriosas; a maioria das vezes se disputa uma insignificância e, contudo, somos ouvidos gritar por São Casciano. Assim, envolvido entre estes piolhos, cubro o cérebro de bolor e desabafo a malignidade de minha sorte, ficando contente se me encontrásseis nesta estrada para ver se essa malignidade se envergonha.

Chegada a noite, retorno para casa e entro no meu escritório; na porta, dispo a roupa quotidiana, cheia de barro e lodo, visto roupas dignas de rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas antigas cortes dos homens do passado onde, por eles recebido amavelmente, nutro-me daquele alimento que é unicamente meu, para o qual eu nasci; não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões de suas ações. Eles por sua humanidade, me respondem, e eu não sinto durante quatro horas qualquer tédio, esqueço todas as aflições, não temo a pobreza, não me amedronta a morte: eu me integro inteiramente neles. E, porque Dante disse não haver ciência sem que seja retido o que foi apreendido, eu anotei aquilo de que, por sua conversação, fiz capital, e compus um opúsculo De Principatibus, onde me aprofundo o quanto posso nas cogitações deste assunto, discutindo o que é principado, de que espécies são, como são adquiridos, como se mantêm, porque são perdidos. Se alguma vez vos agradou alguma fantasia minha, esta não vos deveria desagradar; e um príncipe, principalmente um príncipe novo, deveria aceitar esse trabalho: por isso eu o dedico à magnificência de Juliano. Filippo Casavecchia o viu e vos poderá relatar mais ou menos como é e das conversas que tive com ele, se bem que freqüentemente eu aumente e corrija o texto.

Vós desejaríeis, magnífico embaixador, que eu deixasse esta vida e fosse gozar convosco a vossa. Eu o farei de qualquer maneira; mas o que me retém por ora são certos negócios que dentro de seis semanas terei ultimado. O que me deixa ficar em dúvida é que estão ai aqueles Soderini, aos quais eu seria forçado, estando aí, a visitar e a falar. Receio que ao meu retorno, pensando apear em casa, viesse a desmontar no Bargiello, eis que, se bem este Estado" tenha mui sólidas bases e grande segurança, ele é novo e, por isso, cheio de suspeitas; nem faltam sabidos que, para aparecer, como Pagolo Bertini, meteriam outros na prisão e deixariam a meu cargo os aborrecimentos. Peço-vos me tranqüilizeis deste receio e, depois, dentro do tempo mencionado, irei visitar-vos de qualquer modo.

Discuti com Filippo sobre esse meu opúsculo, se convinha dá-lo ou não e, sendo acertado dá-lo, se era mais conveniente que eu o levasse ou que o mandasse. Não me fazia dá-lo o receio de que Juliano não o lesse e que esse Ardinghelli se honrasse com esse meu último trabalho. Por outro lado, dá-lo satisfaria a necessidade que me oprime, porque estou em ruína e não posso permanecer assim por muito tempo, sem que me torne desprezível por pobreza, isso além do desejo que teria de que esses senhores Medici passassem a utilizar-me, se tivesse de começar a fazer-me rolar uma pedra; porque, se depois não conseguisse ganhar o seu favor, lamentar-me-ia de mim mesmo, eis que, quando fosse lido o opúsculo, ver-se-ia que os quinze anos que estive no estudo da arte do Estado, não os dormi nem brinquei, devendo todo homem achar agradável servir-se de alguém que, a custas de outros, fosse cheio de experiência. E da minha fidelidade não se deveria duvidar porque, tendo sempre observado a lealdade, não devo aprender agora a rompê-la; quem foi fiel e bom durante quarenta e três anos, que eu os tenho, não deve poder mudar sua natureza; da minha lealdade e bondade é testemunho a minha pobreza.

Desejaria, pois, que vós ainda me escrevêsseis aquilo que sobre este assunto vos pareça. A vós me recomendo. Seja feliz.


10 de Dezembro de 1513

NICOLÓ MACHIAVELLI

Florença.

fonte: http://www.culturabrasil.pro.br/

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