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domingo, 3 de janeiro de 2010

O Príncipe - parte 2

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O Príncipe / Parte 2

Filosofia Política




Nicoló Machiavelli

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O Príncipe - Parte 2

CAPÍTULO VIII

DOS QUE CHEGARAM AO PRINCIPADO POR MEIO DE CRIMES

(DE HIS QUI PER SCELERA AD PRINCIPATUM PERVENERE)

Mas, porque pode-se tornar príncipe ainda por dois modos que não podem ser atribuídos totalmente à fortuna ou à virtude, não me parece acertado pô-los de parte, ainda que de um deles se possa mais amplamente cogitar em falando das repúblicas. Estes são, ou quando por qualquer meio criminoso e nefário se ascende ao principado, ou quando um cidadão privado torna-se príncipe de sua pátria pelo favor de seus concidadãos. E, falando do primeiro modo, apontarei dois exemplos, um antigo e outro atual, sem entrar, contudo, no mérito desta parte, pois penso seja suficiente, a quem de tal necessitar, apenas imitá-los.

Agátocles siciliano, não só de privada mas também de ínfima e abjeta condição, tornou-se rei de Siracusa. Filho de um oleiro, teve sempre, no decorrer de sua juventude, vida celerada; todavia, acompanhou seus atos delituosos de tanto vigor de ânimo e de corpo que, tendo ingressado na milícia, em razão de atos de maldade, chegou a ser pretor de Siracusa. Uma vez investido nesse posto, tendo deliberado tornar-se príncipe e manter pela violência e sem favor dos outros aquilo que por acordo de todos lhe tinha sido concedido, depois de acerca desse seu desejo ter estabelecido acordo com Amilcar cartaginês, que se encontrava em ação com os seus exércitos na Sicilia, reuniu certa manhã o povo e o senado de Siracusa como se tivesse de deliberar sobre assuntos pertinentes à República e, a um sinal combinado, fez que seus soldados matassem todos os senadores e os mais ricos da cidade; mortos estes, ocupou e manteve o principado daquela cidade sem qualquer controvérsia civil. E, se bem por duas vezes os cartagineses tivessem com ele rompido e estabelecido assédio, não só pode defender a sua cidade como ainda, tendo deixado parte de sua gente na defesa contra o cerco, com o restante assaltou a África e em breve tempo libertou Siracusa do sítio levando os cartagineses a extrema dificuldade: tiveram de com ele estabelecer acordo e contentar-se com as possessões da África, deixando a Sicília para Agátocles.

Quem considere, pois, as ações e a vida desse príncipe, não encontrará coisa, ou pouca achará, que possa atribuir à fortuna: suas ações resultaram, como acima se disse, não do favor de alguém mas de sua ascensão na milícia, obtida com mil aborrecimentos e perigos, que lhe permitiu alcançar o principado e, depois, mantê-lo com tantas decisões corajosas e arriscadas. Não se pode, ainda, chamar virtude o matar os seus concidadãos, trair os amigos, ser sem fé, sem piedade, sem religião; tais modos podem fazer conquistar poder, mas não glória. Ademais, se se considerar a virtude de Agátocles no entrar e no sair dos perigos e a grandeza de seu ânimo no suportar e superar as adversidades, não se achará por que deva ser ele julgado inferior a qualquer dos mais excelentes capitães; contudo, sua exacerbada crueldade e desumanidade, com infinitas perversidades, não permitem seja ele celebrado entre os homens mais ilustres. Não se pode, assim, atribuir à fortuna ou à virtude aquilo que sem uma e outra foi por ele conseguido.

Nos nossos tempos, reinando Alexandre VI, Oliverotto de Fermo, tendo anos antes ficado órfão de pai, foi criado por um tio materno de nome Giovanni Fogliani; nos primeiros anos de sua juventude, foi encaminhado à vida militar sob o comando de Paulo Vitelli, a fim de que, tomado daquela disciplina, atingisse algum excelente posto da milícia. Morto Paulo, militou sob Vitellozzo, irmão daquele, e em muito pouco tempo, por ser engenhoso, de físico e ânimo fortes, tornou-se o primeiro homem de sua milícia. Mas, parecendo-lhe coisa servil o estar sob as ordens de outrem, com a ajuda de alguns cidadãos de Fermo, aos quais era mais cara a servidão que a liberdade de sua pátria, e com o favor de Vitellozzo, pensou ocupar Fermo. E escreveu a Giovanni Fogliani dizendo que, por ter estado muitos anos fora de casa, desejava ir visitá-lo e à sua cidade e conhecer o seu patrimônio; e, como não tinha trabalhado senão para conquistar honras, para que seus concidadãos vissem como não tinha gasto o tempo em vão, queria chegar com pompa e acompanhado de cem cavalos de amigos e servidores seus; pedia-lhe, pois, se servisse ordenar fosse ele recebido pelos cidadãos de Fermo com todas as honras, o que não somente o dignificaria, mas também a Fogliani, dado haver sido seu discípulo.

Não deixou Giovanni de despender esforços em favor de seu sobrinho: tendo feito com que os moradores de Fermo o recebessem com honrarias, alojou-o em suas casas. Aí, passados alguns dias e pronto para ordenar secretamente aquilo que era necessário à sua futura perfídia, Oliverotto promoveu soleníssimo banquete para o qual convidou Giovanni Fogliani e todos os principais homens de Fermo. Consumadas que foram as iguarias e após todos os demais entretenimentos usuais em semelhantes ocasiões, Oliverotto, com habilidade, abordou certos assuntos graves, falando da grandeza do Papa Alexandre, de seu filho César e dos empreendimentos dos mesmos. Tendo Giovanni e os demais respondido a tais considerações, ele, repentinamente, ergueu-se dizendo ser aquilo assunto para falar-se em lugar mais secreto, retirando-se para um cômodo onde Giovanni e todos os outros foram ter com ele. Nem ainda tinham se assentado, de lugares ocultos saíram soldados que mataram Giovanni e a todos os demais.

Depois desse homicídio, Oliverotto montou a cavalo, correu a cidade acompanhado de seus homens e assediou em seu palácio o supremo magistrado; em conseqüência, por medo, foram obrigados a obedecê-lo e formar um governo do qual ele se fez príncipe. E, mortos todos aqueles que, por descontentes, poderiam ofendê-lo, fortaleceu-se com novas ordens civis e militares de forma que, no período de um ano em que reteve o principado, não somente esteve forte na cidade de Fermo, como também se tornou causa de pavor para todas as populações vizinhas. Teria sido difícil a sua destruição, como difícil foi a de Agátocles, se não tivesse sido enganado por César Bórgia quando este, em Sinigalia, como já se disse, aprisionou os Orsíni e os Vitelli. Ai, preso também ele, foi estrangulado juntamente com Vitellozzo, mestre de suas virtudes e suas perfídias, um ano após haver cometido o parricídio.

Poderia alguém ficar em dúvida sobre a razão por que Agátocles e algum outro a ele semelhante, após tantas traições e crueldades, puderam viver longamente, sem perigo, dentro de sua pátria e, ainda, defender-se dos inimigos externos sem que os seus concidadãos contra eles tivessem conspirado, tanto mais notando-se que muitos outros não conseguiram manter o Estado, mediante a crueldade, nos tempos pacíficos e, muito menos, nos duvidosos tempos de guerra. Penso que isto resulte das crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-se dizer serem aquelas (se do mal for lícito falar bem) que se fazem instantaneamente pela necessidade do firmar-se e, depois, nelas não se insiste mas sim se as transforma no máximo possível de utilidade para os súditos; mal usadas são aquelas que, mesmo poucas a princípio, com o decorrer do tempo aumentam ao invés de se extinguirem. Aqueles que observam o primeiro modo de agir, podem remediar sua situação com apoio de Deus e dos homens, como ocorreu com Agátocles; aos outros torna-se impossível a continuidade no poder.

Por isso é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios, Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem sempre necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança diante das novas e contínuas injúrias. Portanto, as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam melhor apreciados. Acima de tudo, um príncipe deve viver com seus súditos de modo que nenhum acidente, bom ou mau, o faça variar: porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não estarás em tempo de fazer o mal, e o bem que tu fizeres não te será útil eis que, julgado forçado, não trará gratidão.

CAPÍTULO IX

DO PRINCIPADO CIVIL

(DE PRINCIPATU CIVILI)

Mas passando a outra parte, quando um cidadão privado, não por perfídia ou outra intolerável violência, porém com o favor de seus concidadãos, torna-se príncipe de sua pátria, o que se pode chamar principado civil (para tal se tornar, não é necessária muita virtude ou muita fortuna, mas antes uma astúcia afortunada) digo que se ascende a esse principado ou com o favor do povo ou com aquele dos grandes. Porque em toda cidade se encontram estas duas tendências diversas e isso resulta do fato de que o povo não quer ser mandado nem oprimido pelos poderosos e estes desejam governar e oprimir o povo: é destes dois anseios diversos que nasce nas cidades um dos três efeitos: ou principado, ou liberdade, ou desordem.

O principado é constituído ou pelo povo ou pelos grandes, conforme uma ou outra destas partes tenha oportunidade: vendo os grandes não lhes ser possível resistir ao povo, começam a emprestar prestígio a um dentre eles e o fazem príncipe para poderem, sob sua sombra, dar expansão ao seu apetite; o povo, também, vendo não poder resistir aos poderosos, volta a estima a um cidadão e o faz príncipe para estar defendido com a autoridade do mesmo. O que chega ao principado com a ajuda dos grandes se mantém com mais dificuldade daquele que ascende ao posto com o apoio do povo, pois se encontra príncipe com muitos ao redor a lhe parecerem seus iguais e, por isso, não pode nem governar nem manobrar como entender.

Mas aquele que chega ao principado com o favor popular, aí se encontra só e ao seu derredor não tem ninguém ou são pouquíssimos que não estejam preparados para obedecer. Além disso, sem injúria aos outros, não se pode honestamente satisfazer os grandes, mas sim pode-se fazer bem ao povo, eis que o objetivo deste é mais honesto daquele dos poderosos, querendo estes oprimir enquanto aquele apenas quer não ser oprimido. Contra a inimizade do povo um príncipe jamais pode estar garantido, por serem muitos; dos grandes, porém, pode se assegurar porque são poucos. O pior que pode um príncipe esperar do povo hostil é ser por ele abandonado; mas dos poderosos inimigos não só deve temer ser abandonado, como também deve recear que os mesmos se lhe voltem contra, pois que, havendo neles mais visão e maior astúcia, contam sempre com tempo para salvar-se e procuram adquirir prestígio junto àquele que esperam venha a vencer. Ainda, o príncipe tem de viver, necessariamente, sempre com o mesmo povo, ao passo que pode bem viver sem aqueles mesmos poderosos, uma vez que pode fazer e desfazer a cada dia esse seu poderio, dando-lhes ou tirando-lhes reputação, a seu alvedrio.

E, para melhor esclarecer esta parte, digo que os grandes devem ser considerados em dois grupos principais: ou procedem por forma a se obrigarem totalmente à tua fortuna, ou não. Os que se obrigam e não são rapaces, devem ser considerados e amados. Os que não se obrigam devem ser encarados de dois modos: se fazem isso por pusilanimidade ou por natural defeito de espírito, deverás servir-te deles, máxime que são bons conselheiros, porque na prosperidade isso te honrará e na adversidade não precisarás temê-los. Mas quando eles, ardilosamente, não se obrigam por ambição, é sinal que pensam mais em si próprios do que em ti: desses deve o príncipe guardar-se temendo-os como se fossem inimigos declarados, porque sempre, na adversidade, ajudarão a arruiná-lo.

Deve, pois, alguém que se torne príncipe mediante o favor do povo, conservá-lo amigo, o que se lhe torna fácil, uma vez que não pede ele senão não ser oprimido. Mas quem se torne príncipe pelo favor dos grandes, contra o povo, deve antes de mais nada procurar ganhar este para si, o que se lhe torna fácil quando assume a proteção do mesmo. E, por que os homens, quando recebem o bem de quem esperavam somente o mal, se obrigam mais ao seu benfeitor, torna-se o povo desde logo mais seu amigo do que se tivesse sido por ele levado ao principado. O príncipe pode ganhar o povo por muitas maneiras que, por variarem de acordo com as circunstâncias, delas não se pode estabelecer regra certa, razão pela qual das mesmas não cogitaremos.

Concluirei apenas que a um príncipe é necessário ter o povo como amigo, pois, de outro modo, não terá possibilidades na adversidade. Nabis, príncipe dos espartanos, suportou o assédio de toda a Grécia e de um exército romano coberto de vitórias, contra eles defendendo sua pátria e seu Estado; bastou-lhe apenas, sobrevindo o perigo, garantir-se contra poucos, o que não seria suficiente se tivesse o povo como inimigo. E não surja alguém para refutar esta minha opinião com aquele provérbio bastante conhecido de que, quem se apoia no povo firma-se na lama, porque o mesmo é verdadeiro somente quando um cidadão privado estabelece bases sobre o povo e imagina que o mesmo vá libertá-lo quando oprimido pelos inimigos ou pelos magistrados; neste caso seria possível sentir-se freqüentemente enganado, como os Gracos em Roma e Messer Giórgio Scali em Florença. Mas sendo um príncipe quem se apoie no povo, que possa mandar e seja um homem de coragem, que não esmoreça nas adversidades, não careça de armas e mantenha com seu valor e suas determinações alentado o povo todo, jamais se sentirá por ele enganado e constatará ter estabelecido bons fundamentos.

Amiúde esses principados periclitam quando estão para passar da ordem civil para um governo absoluto, porque esses príncipes ou governam por si mesmos ou por intermédio dos magistrados. Neste último caso a situação dos mesmos é mais fraca e perigosa, porque dependem completamente da vontade dos cidadãos prepostos à magistratura, os quais, principalmente nos tempos adversos, podem tomar-lhes o Estado com grande facilidade, ou contrariando suas ordens ou não lhes prestando obediência. E o príncipe não pode, nas ocasiões de perigo, assumir em tempo a autoridade absoluta, porque os cidadãos e os súditos, acostumados a receber as ordens dos magistrados, não estão, naquelas conjunturas, para obedecer às suas determinações, havendo sempre, ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas nas quais ele possa confiar. Tal príncipe não pode fundar-se naquilo que observa nas épocas de paz, quando os cidadãos precisam do Estado, porque então todos correm, todos prometem e cada um quer morrer por ele enquanto a morte está longe; mas na adversidade, no momento em que o Estado tem necessidade dos cidadãos, então poucos são encontrados. E tanto mais é perigosa esta experiência, quanto não se a pode fazer senão uma vez. Contudo, um príncipe hábil deve pensar na maneira pela qual possa fazer com que os seus cidadãos sempre e em qualquer circunstância tenham necessidade do Estado e dele mesmo, e estes, então, sempre lhe serão fiéis.


CAPÍTULO X

COMO SE DEVEM MEDIR AS FORÇAS DE TODOS OS PRINCIPADOS

(QUOMODO OMNIUM PRINCIPATUUM VIRES PERPENDI DEBEANT)

Ao examinar as qualidades destes Estados, convém fazer uma outra consideração, isto é, se um príncipe tem Estado tão grande e forte que possa, precisando, manter-se por si mesmo, ou então se tem sempre necessidade da defesa de outrem. Para esclarecer melhor esta parte, digo julgar como podendo manter-se por si mesmos aqueles que podem, por abundância de homens e de dinheiro, organizar um exército à altura do perigo a enfrentar e fazer face a uma batalha contra quem venha assaltá-lo, assim como julgo necessitados da defesa de outrem os que não podem defrontar o inimigo em campo aberto, mas são obrigados a refugiar-se atrás dos muros da cidade, guarnecendo-os. Quanto ao primeiro caso já foi falado e, futuramente, diremos o que for necessário; relativamente ao segundo, não se pode aduzir algo mais do que exortar tais príncipes a fortificarem e a proverem sua cidade, não se preocupando com o território que a contorna. E quem tiver bem fortificada sua cidade e, acerca dos outros assuntos, se tenha conduzido para com os súditos como acima foi dito e abaixo se esclarecerá, será sempre assaltado com grande temor, porque os homens são sempre inimigos dos empreendimentos onde vejam dificuldades, e não se pode encontrar facilidade para atacar quem tenha sua cidade forte e não seja odiado pelo povo.

As cidades da Alemanha gozam de grande liberdade, têm pouco território e obedecem ao imperador quando assim querem, não temendo nem a este nem a outro poderoso que lhes esteja ao derredor porque são de tal forma fortificadas que todos pensam dever ser enfadonha e difícil sua expugnação. Na verdade, todas têm fossos e muros adequados, possuem artilharia suficiente, conservam sempre nos armazéns públicos o necessário para beber, comer e arder por um ano; além disso, para manter a plebe alimentada sem prejuízo do povo, têm sempre, em comum, por um ano, meios para lhe dar trabalho naquelas atividades que sejam o nervo e a vida daquelas cidades e das indústrias das quais a plebe se alimente. Têm em grande conceito os exercícios militares, a respeito dos quais têm muitas leis de regulamentação.

Um príncipe, pois, que tenha uma cidade forte e não se faça odiar, não pode ser atacado e, existindo alguém que o assaltasse, retirar-se-ia com vergonha, eis que as coisas do mundo são assim tão variadas que é quase impossível alguém pudesse ficar com os exércitos ociosos por um ano, a assediá-lo. A quem replicasse que, tendo as suas propriedades fora da cidade e vendo-as a arder, o povo não terá paciência e o longo assédio e a piedade de si mesmo o farão esquecer o príncipe, eu responderia que um príncipe poderoso e afoito superará sempre aquelas dificuldades, ora dando aos súditos esperança de que o mal não será longo, ora incutindo temor da crueldade do inimigo, ora assegurando-se com destreza daqueles que lhe pareçam muito temerários. Além disso, é razoável que o inimigo deva queimar o país apenas chegado, nos tempos em que o ânimo dos homens está ainda ardente e voluntarioso na defesa; por isso, o príncipe deve ter pouca dúvida porque, depois de alguns dias, quando os ânimos estão mais frios, os danos já foram causados, os males já foram sofridos e não há mais remédio; então, os súditos vêm se unir ainda mais ao semi príncipe, parecendo-lhes que este lhes deva obrigação, uma vez que suas casas foram incendiadas e suas propriedades arruinadas para a defesa do mesmo. E a natureza dos homens é aquela de obrigar-se tanto pelos benefícios que são feitos como por aqueles que se recebem. Donde, em se considerando tudo bem, não será difícil a um príncipe prudente conservar firmes, antes e depois do cerco, os ânimos de seus cidadãos, desde que não faltem víveres nem meios de defesa.


CAPÍTULO XI

DOS PRINCIPADOS ECLESIÁSTICOS

(DE PRINCIPATIBUS ECLESIASTICIS)

Resta-nos somente, agora, falar dos principados eclesiásticos, nos quais todas as dificuldades existem antes que se os possuam, eis que são adquiridos ou pela virtude ou pela fortuna, e sem uma e outra se conservam, porque são sustentados pelas ordens de há muito estabelecidas na religião; estas tornam-se tão fortes e de tal natureza que mantêm os seus príncipes sempre no poder, seja qual for o modo por que procedam e vivam. Só estes possuem Estados e não os defendem; súditos, e não os governam; os Estados, por serem indefesos, não lhes são tomados; os súditos, por não serem governados, não se preocupam, não pensam e nem podem separar-se deles. Somente estes principados, pois, são seguros e felizes. Mas, sendo eles dirigidos por razão superior, à qual a mente humana não atinge, deixarei de falar a seu respeito,mesmo porque, sendo engrandecidos e mantidos por Deus, seria obra de homem presunçoso e temerário dissertar a seu respeito. Contudo, se alguém me perguntar donde provém que a Igreja, no poder temporal, tenha chegado a tanta grandeza, pois que antes de Alexandre os potentados italianos, e não apenas aqueles que eram ditos "potentados" mas qualquer barão e senhor, mesmo que sem importância, pouco valor davam ao poder temporal da Igreja, e agora um rei de França treme, ela pode expulsá-lo da Itália e ainda logra arruinar os venezianos, apontarei fatos que, a despeito de conhecidos, não me parece supérfluo reavivar em parte na memória.

Antes que Carlos, rei da França, invadisse a Itália, esta província encontrava-se sob o domínio do Papa, dos venezianos, do rei de Nápoles, do duque de Milão e dos florentinos. Estes potentados tinham de se haver com dois cuidados principais: um, que nenhum estrangeiro entrasse na Itália com tropas; o outro, que nenhum deles ocupasse mais Estado. Aqueles dos quais se tinha mais receio eram o Papa e os venezianos. Para conter os venezianos tornou-se necessária a união de todos os demais, como ocorreu na defesa de Ferrara; para deter o Papa, serviam-se dos barões de Roma, eis que. estando divididos em duas facções, Orsíni e Colonna, sempre existia motivo de discórdia entre eles e, estando de arma em punho sob os olhos do pontífice, mantinham o pontificado fraco e inseguro. Se bem surgisse, vez por outra, um Papa animoso, como foi Xisto, nem a sua fortuna nem o seu saber puderam livrá-lo desses inconvenientes. A brevidade da vida dos pontífices era a causa dessa situação, porque, nos dez anos que, em média, vivia um Papa, somente com muita dificuldade podia ele enfraquecer uma das facções; se, por exemplo, um deles tivesse quase extinguindo os collonessi surgia um outro, inimigo dos Orsíni, que os fazia ressurgir sem que tivesse tempo de liquidar os Orsíni. Isto tornava o poder temporal do Papa pouco considerado na Itália.

Surgiu depois Alexandre VI que, de todos os pontífices que já existiram, foi o que mostrou o quanto um Papa podia, com o dinheiro e as tropas, para adquirir maior poder; e fez, com o uso do Duque Valentino como instrumento e com a oportunidade da invasão dos franceses, todas aquelas coisas que relatei acima com relação às ações do duque. Se bem seu intento não fosse o de tornar grande a Igreja mas sim o duque, não obstante, tudo o que fez reverteu em favor da grandeza da Igreja, a qual, após a sua morte, extinto o duque, se tornou herdeira de sua obra. Veio depois o Papa Júlio e encontrou a Igreja grande, possuindo toda a Romanha, reduzidos à impotência os barões de Roma e, pelas perseguições de Alexandre, anuladas aquelas facções; encontrou, ainda, o caminho aberto para acumular dinheiro, o que jamais havia sido feito antes de Alexandre.

Júlio não só seguiu tais práticas, como as ampliou; pensou em conquistar Bolonha, extinguir os venezianos e expulsar os franceses da Itália: todos esses empreendimentos lhe saíram bem, e com tanto maior louvor quanto realizou tudo isso para engrandecer a Igreja e não para favorecer algum cidadão particular. Conservou, ainda, os partidos dos Orsíni e dos Colonna nas mesmas condições em que os encontrara e, se bem entre eles houvesse algum chefe capaz de fazer mudar a situação, duas coisas os mantiveram quietos: uma, a grandeza da Igreja, que os atemorizava; a outra, não terem eles cardeais, os quais são os causadores dos tumultos entre as facções. Nem em tempo algum ficarão quietas essas partes, desde que possuam cardeais, pois estes sustentam os partidos dentro e fora de Roma e os barões são forçados a defendê-los; assim, da ambição dos prelados, nascem as discórdias e os tumultos entre os barões. Sua Santidade, o Papa Leão, encontrou o pontificado potentíssimo e, espera-se, se aqueles que referimos o fizeram grande pelas armas, este o fará ainda maior e mais venerado pela bondade e suas outras infinitas virtudes.


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