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FILOPARANAVAÍ

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

LEITURA DE TEXTO FILOSÓFICO: Realismo e Senso Comum


Realismo de senso comum
John Hospers
Tradução de Tânia Dias
No Português de Portugal

Se há algo que parece certo, é o facto de adquirirmos conhecimento por meio dos nossos sentidos: visão, audição, tacto, sabor, cheiro. Como poderia alguém negar que temos tal conhecimento? Não estaremos a pressupor que o temos, mesmo ao fazer esta pergunta? 

Contudo, existem pessoas que duvidam disso. São cépticos em relação ao conhecimento de um mundo que nos seja revelado pelos nossos sentidos. Uma pessoa pode, sem dúvida, ser céptico acerca de muitas coisas: acerca de religião, ou de ética, ou de entidades não observáveis como quarks, mas não existem muitos cépticos acerca da percepção dos sentidos. Eu vejo a cadeira, aproximo-me dela, e sento-me nela. Como pode alguém negar isto? 

“Mas não sei que estas coisas existem. Sei que de momento me parecem existir. Mas talvez eu esteja enganado ao pensar assim. Talvez nenhuma destas coisas que penso que vejo realmente existam”. 

René Descartes (1596–1650), que é normalmente visto como o fundador da filosofia moderna, registou essa ideia nas suas Meditações em 1641: “Persuadi-me”, escreveu, “que não havia absolutamente nada no mundo, nenhum céu, nenhuma terra, nenhuns espíritos, nenhuns corpos”. E acrescentou: “Não me persuadi também de que eu próprio não existia?”

Dúvidas e Desilusões
Não, disse Descartes. Se eu duvido de alguma destas coisas, então pelo menos eu, que duvido, tenho de existir. Como poderia haver uma dúvida sem alguém para a colocar? A dúvida não flutua no ar, à espera que alguém a coloque. Assim, se duvido, pelo menos eu, que duvido, existo, pelo menos enquanto duvidar. Tenho consciência de que duvido; por isso

a ideia é: apenas este atributo não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo, isto é certo. Mas por quanto tempo? Certamente enquanto penso. […] Agora sei com certeza que sou e simultaneamente que pode suceder que todas estas imagens e em geral tudo o que se refere à natureza corpórea sejam apenas quimeras. […] Mas que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto dizer? Quer dizer: uma coisa que duvida, que compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer. […] Mesmo que dormisse sempre, mesmo que também aquele que me criou me enganasse com todas as suas forças, o que há nisto que não seja tão verdadeiro como eu existir?

Portanto, existo. Mas posso continuar a duvidar de que veja, ouça, etc., um mundo real. Há um salto da minha existência para a existência de um mundo fora da minha mente. Na verdade, posso supor que o que julgo ser real é apenas uma enorme ilusão. Descartes supõe que existe 

um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar. Vou acreditar que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todos as coisas exteriores não são mais que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade. Vou considerar que não tenho mãos, nem olhos, nem carne, nem sangue, nem sentidos, antes crendo falsamente ter tudo isto.

Suponhamos que o génio maligno tem por único objectivo enganar-me. Coloca ilusões na minha mente, de forma a fazer-me pensar que estou a ver árvores, casas, etc. ― mas na realidade não existem nenhumas destas coisas. O génio maligno pode até levar-me a acreditar que tenho um corpo, quando não tenho. Não me pode levar a acreditar que existo, quando não existo, por que, para isso, tem que haver um “eu” para ser enganado. Mas talvez ele me engane acerca de tudo o resto. 

Um diálogo
A: É ridículo acreditar que existe tal génio maligno. Eu acredito apenas naquilo que pode ser provado e não existe a menor prova de que tal génio maligno existe. 

B: Mas como sabes que não existe um génio maligno? 

A: Não posso provar que não existe ― tal como não posso provar que Zeus, Poseidon e os outros antigos deuses gregos não existem. Mas isso não me dá a menor razão para acreditar que existem. 

No caso dos deuses gregos, sabemos como seria a sua existência. Não ficaríamos surpreendidos se aparecessem um dia no alto do Monte Olimpo? Mas isso não é como o caso do génio enganador. Permito-me afirmar que nem sabemos como seria o génio enganador se existisse; não podemos ter experiência alguma que possa mostrar a existência de um tal génio enganador. 

B: De acordo. Não o podemos vê-lo. Mas podemos ter provas da sua existência, por meio das suas ilusões. 

A: Tenta imaginar tal ilusão. O génio enganador ilude-me fazendo-me pensar que existe ali uma mesa. Aproximo-me, tropeço e depois sento-me nela. Há realmente uma mesa ali. Não foi nenhum engano. Sei quais são as condições para que a mesa exista e essas condições foram satisfeitas. 

B: Mas não vês que o génio enganador está a iludir-te para que acredites que existe ali uma mesa. Ele colocou as impressões sensoriais tão inteligentemente na tua mente que não consegues ver a diferença. 

A: É mesmo essa a questão: não há diferença. Aquilo a que chamamos ver e tocar a mesa, Descartes chama ser levado a acreditar que existe uma mesa. São duas expressões verbais para a mesma coisa ― dois rótulos para a mesma garrafa. Existe uma diferença na descrição, mas não no que está a ser descrito. Não existe diferença de facto, apenas nas palavras. 

B: Não existe diferença discernível, mas existe na mesma uma diferença. O enganador é tão esperto que nós não conseguimos distinguir a diferença. 

A: E eu digo que não existe diferença para discernir. Quando alguém me diz “Talvez não exista ali nenhuma mesa”, vou lá, vejo-a, toco-lhe, sento-me nela, fotografo-a. No discurso vulgar diríamos que isso é a prova de que há uma mesa ali. E é. Que melhor prova pode haver? Um minuto mais tarde posso ver outra coisa, mas naquele momento eu vejo e toco numa mesa. Não fui levado a acreditar de que existe uma mesa. Ali está ela ― não há engano. 

B: Mas, tanto quanto sabes, a hipótese do génio maligno pode ser verdadeira. Tu não sabes que não é verdadeira. 

A: Mas sei. Se alguma coisa satisfizer todos os critérios para ser um X, então é um X. Se parece um pato, anda como um pato e grasna como um pato, é um pato; é isso que queremos dizer quando dizemos que é um pato. Dá-me a mínima prova em contrário ― acerca de truques mágicos ou ilusões ópticas ― e eu terei as minhas dúvidas. Mas se todos os testes para ser um X forem positivos ― todos os testes e não apenas os que nós fizemos até agora ― bem, então, por definição, é um X. 

B:Tanto quanto podemos dizer é um X. Mas o génio maligno de Descartes pode estar a enganar-nos. 

A: Não. Se houver um engano, tem de haver uma maneira de se saber se se foi enganado. De outra forma, a palavra “engano” não distingue nada de nada. Vagueio pelo deserto e vejo o que me parece ser água; mas quando me aproximo, desaparece e vejo que é apenas uma miragem. Descobri que fui enganado. Este é um engano evidente e comum e revelei a sua natureza. O que estás a fazer é a pegar em tudo ― ver e tocar a mesa e ver uma miragem no deserto ― e a chamar a tudo um engano. Isso é como se juntássemos todos os animais e lhes chamássemos a todos cães. 

B: Mas o génio enganador de Descartes está a enganá-lo por intermédio de todos os seus sentidos de uma só vez. É tão astuto que o seu engano não pode ser detectado. O seu engano acontece sempre sem dificuldades. Supõe que o enganador escreve no seu diário: “Hoje eu levei Descartes a acreditar que está a ver e a tocar objectos físicos reais”. E no dia seguinte escreve a mesma coisa: “Ainda consegui enganar Descartes”. Todos os dias o seu engano é perfeito. Descartes é sempre levado a pensar que vê coisa físicas e todos os dias o génio enganador é bem-sucedido. 

A: A cadeira que vês, que tocas e em que te sentas é uma cadeira real. É assim que usamos a expressão “uma cadeira real” e a distinguimos de cadeiras “apenas aparentes”. 

B: À medida que o génio enganador se foi tornando melhor a enganar, descobriu que podia enganar tão inteligentemente que ninguém nunca descobriria o que ele estava a fazer. E é isso o que ele realmente faz. 

A: O génio maligno queria enganar-me. Mas não conseguiu. Eu podia ter sido enganado quanto ao oásis, mas não quanto à mesa. Se vejo, toco e me sento na mesa, não é uma ilusão. O génio enganador enganou-se a si próprio. Achas mesmo que o génio maligno me podia levar apenas a pensar que estou a comer comida, quando afinal de contas não estou? Poderia ele enganar-me a esse respeito sempre? Mas se nunca como realmente comida, como posso estar vivo? 

B: O génio levou-te a pensar que tens um corpo. Mesmo acreditar que tens um corpo é um engano. 

A: Não tenho um corpo? Aqui estão as minhas mãos, aqui está o meu tronco, que vejo quando me sento. Posso duvidar disso? 

B: Claro. Enquanto o enganador te enganar, pode fazer-te acreditar falsamente que tens um corpo. Como disse Descartes, a única coisa de que não podes duvidar é de que tu, um ser consciente, existes, de outra forma não existiria alguém para ser enganado. De facto, o génio talvez tenha feito mais: talvez todas as tuas experiências sejam um sonho. 

John Hospers
An Introduction to Philosophical Analysis (Routledge, Londres, 1997), pp. 71–73.

Publicado originalmente em

Notas
1. René Descartes, Primeira Meditação, Coimbra, Almedina, 1976, pp. 118–119. ↩︎ 
2. René Descartes, Segunda Meditação, Coimbra, Almedina, 1976, pp. 122–125. ↩︎  
3. Ibid., p. 113–114. ↩︎

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