Hegel e o caráter ético-político da ideia de liberdade
(PARTE1)
Textos Filosóficos
HEGEL, Friedrich. Hegel e o caráter ético-político da idéia de liberdade. in MARÇAL, Jairo (org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED/PR, 2009. pp. 299-337. Texto de apresentação e notas: RAMOS, Cesar A. Tradução do alemão e notas: Cesar A. Ramos e MULLER, Marcos Lutz
Georg Wilhelm friedrich hEGEl nasceu em Stuttgart (Alemanha), em 1770, e morreu em Berlin, aos 61 anos em 1831. Estudou teologia e filosofia (1788-1793) no seminário da igreja protestante em Wurttemberg (Tubinger Stift), mas desistiu de ser pastor, e dedicou-se à filosofia. Nessa época, em Tubingen, conheceu o poeta Hölderlin e o estudante de filosofia Schelling. Ainda jovem, nutriu grande admiração pela Revolução Francesa (1789). Depois de deixar o seminário, o jovem Hegel trabalhou como preceptor de filhos de famílias ilustres da época, e depois como professor de filosofia em um Ginásio em Nuremberg, do qual foi diretor em 1808.
Em 1816 foi nomeado para a cátedra de Filosofia da Universidade de Heidelberg, e, em 1818, ingressou na Universidade de Berlin, nela permanecendo até a sua morte, vítima de cólera. Pouco antes, em 1829, tinha assumido o cargo de reitor desta mesma Universidade.
Em 1801 publicou seu primeiro livro: Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling. Em 1807 surgiu a Fenomenologia do espírito. No período de 1812, 1813 e 1816 publicou a Ciência da lógica, em três volumes. Em 1817 escreveu a Enciclopédia das ciências filosóficas, uma expo-sição em compêndio sobre todo o seu sistema filosófico, com reedições ampliadas em 1827 e 1830. No período em que esteve na Universidade de Berlin, publicou as Linhas fundamentais da filosofia do direito (1820), um texto, também em compêndio, sobre ética, filosofia política e direito, o qual foi objeto de sucessivas lições nas suas aulas na Universidade, em 1818/19, 1819/20, 1821/22, 1822/23, 1824/25. Nesse mesmo tempo, além destes cursos, proferiu lições sobre filosofia da arte, história da filosofia, filosofia da história e filosofia da religião. Após a morte de Hegel, os discípulos editaram e publicaram os apontamentos do mestre sobre as lições, complementados com as anotações dos próprios alunos. Esse material foi conhecido como Filosofia da história, Estética, Filosofia da Religião e História da filosofia. São textos de grande serventia didática para um estudo introdutório ao pensamento hegeliano. 1
[1 Após a sua morte, a influência do hegelianismo foi significativa, sobretudo, nas áreas da filosofia política e do direito. Na Alemanha, logo após a sua morte, presença do pensamento hegeliano ocorreu sob a forma de duas correntes, cada qual disputando a herança hegeliana – os “hegelianos de direita” (Davi Strauss, Kuno Fischer, Karl Rosenkranz) – na perspectiva de um pensamento conservador e religioso; e os “hegelianos de esquerda” (Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Arnold Ruge, Max Stirner e Karl Marx), seguindo uma leitura revolucionária e crítica da realidade social, e para a qual o arcabouço teórico da filosofia de Hegel era extremamente útil. Mas a influência de Hegel, ainda que díspar e controversa, se estende à filosofia do século XX, nas aproximações possíveis que ela permite na filosofia marxista, nos filósofos da teoria crítica da Escola de Frankfurt e em alguns pensadores, chamados comunitaristas, como C. Taylor e outros nos nossos dias.]
Hegel foi considerado como o último grande pensador que escreveu um sistema filosófico. De fato, as suas ideias versam sobre um vasto campo, abrangendo os mais diversos aspectos da filosofia: lógica, teoria do conhecimento, ética, filosofia política e do direito, filosofia da história, da arte, da religião e outros. A exposição das suas ideias, escritas numa linguagem de compreensão nem sempre fácil, está enfeixada segundo um encadeamento metodológico sistemático. São ideias que revelam a intenção do autor em compreender a riqueza das determinações da realidade que se apresentam para o conhecimento filosófico.
O hegelianismo se propõe ao desafio de ser um discurso filosófico sobre a totalidade. Isso porque o conhecimento da realidade – multifacetária e contraditória – para se constituir em saber verdadeiro, deve ser ri-goroso, sistemático e racional, o que configura, no vocabulário de Hegel, uma “ciência do absoluto”. Esta é a pretensão de uma filosofia especulativa que tem por objeto uma análise exaustiva e “omnicompreensiva” (A Enciclopédia das ciências filosóficas retrata essa pretensão) de tudo aquilo que pode se apresentar e se realizar como ideia: do ponto de vista “da Ideia em si e para si” – objeto da Lógica; da ideia “em seu ser-outro” – a Filosofia da Natureza; e da ideia que “em seu ser-outro retorna a si mesma”, o domínio da Filosofia do Espírito.2 No que diz respeito à Filosofia do Espírito3,
[2 HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften I, Werke 8, § 18. 3 O conceito de espírito apresenta uma diversidade de sentido filosófico, psicológico e religioso na tradição da história das ideias. Na filosofia hegeliana, espírito (Geist) denota um significado fundamental no sistema filosófico de Hegel. Do ponto de vista da divisão deste sistema, o espírito é a Ideia na forma de um retorno de um outro da Ideia lógica – a natureza. Se a Filosofia da Natureza tem por objeto a Ideia na forma de um outro que lhe é exterior – aquilo que é finito e contingente –, a Filosofia do Espírito analisa a Ideia que retorna a si, como liberação da natureza, e permanece junto de si, no seu próprio elemento. Esta Filosofia pode ser do espírito subjetivo, objetivo e absoluto. O espírito subjetivo refere-se às manifestações interiores da alma (Antropologia), aos fenômenos da consciência (Psicologia). O espírito objetivo de um modo geral diz respeito à mente humana e às formas espirituais da sua realização como produtos ou objetivações da atividade espiritual, em oposição à natureza, como mundo da liberdade realizada. O espírito absoluto significa um processo de totalização ou de plenitude que compreende a arte, a religião e a filosofia, formas da sua realização, nas quais ele tem a si mesmo por objeto.]
um conceito é fundamental na organização do pensamento de Hegel – a liberdade. A dinâmica de efetivação da sua realidade consiste num processo (histórico) que retrata o desenvolvimento progressivo do espírito objetivo segundo uma lógica (movimento dialético) que lhe é imanente. Nesse sentido, ele tem a sua objetivação – é espírito objetivo – que supera e, ao mesmo tempo, conserva a sua diferença – o espírito subjetivo. É no âmbito do espírito objetivo que ocorre a investigação filosófica hegeliana no campo do direito, da política e da moral, objeto, sobretudo, da obra Linhas fundamentais da filosofia do direito. Nesta obra, encontra-se uma discussão detalhada da Ideia de liberdade, a qual é vista como princípio do agir humano seja de ordem subjetiva, seja de ordem objetiva, institucional (social, jurídico e político).
O tema da liberdade constitui um dos aspectos essenciais da filoso-fia moderna, presente no Jusnaturalismo e, sobretudo, no Idealismo Alemão em filósofos como Kant, Fichte e Schelling. Hegel reconhece o mérito destes pensadores, pois, erigiram a liberdade como princípio subjetivo do agir e, também, como fundamento da vida política. Contudo, critica-os pelo caráter limitante que a liberdade possui: o seu sentido e alcance se restringe ao indivíduo e à sua associação com os demais, sem compreender o valor intrínseco da universalidade da liberdade na forma da sua realização objetiva e concreta na vida social e política dos homens.
Hegel pretende aprofundar o potencial especulativo do conceito de liberdade compreendendo-a, ainda na trilha do Idealismo Alemão, como Ideia. Mas, trata-se de um conceito que se desenvolve em duas dimensões ou sentidos que se interpenetram: o lógico-conceitual e o histórico- institucional. Dimensões estas que podem, ainda, ser retratadas pelo aspecto subjetivo e objetivo da liberdade. 4
[4 Para esclarecer sua posição quanto à ideia e ao seu idealismo, Hegel retoma a discussão entre Platão e Aristóteles no que diz respeito ao significado que tem a ideia nesses filósofos, tomando o partido de Aristóteles. Defende a tese de que ideia constitui um princípio ativo, aquilo que é verdadeiro: uma efetividade que não se separa de um conteúdo (real) do qual constitui a sua forma, o eidos, a Ideia e no qual se objetiva. Quando Hegel afirma que a Ideia é “a unidade do ideal (Ideellen) e do real (Reellen), do finito e do infinito, da alma e do corpo”, quer apontar, precisamente, para os dois aspectos solidários da ideia e da idealidade do conceito. O momento do conceito se apresenta como aquele em que o ideal, o infinito é a ideia enquanto forma conceitual; e o seu aspecto real, se configura como o finito, o corpo: o Dasein do conceito, enquanto idealidade que possui uma existência empírica, um conteúdo objetivado. O conceito encerra em si, portanto, um ideal que demanda ser efetivado, e a realização efetiva desse ideal é a ideia, a idealidade concreta, o momento superior da unidade da identidade (da identidade do conceito) e da sua diferença (a finitude). A idealidade, enquanto qualidade da ideia, consiste no entrelaçamento da finitização do ideal (conceitual) e da elevação do real em ideal. Por isso, nada mais estranho a Hegel do que conceber a separação e o isolamento desses dois momentos. Nada mais falso do que a representação de um ideal divorciado do real ou de um real apartado do ideal seja no idealismo transcendente de Platão, seja no idealismo transcendental de Kant.]
Do ponto de vista lógico-conceitual, a liberdade se traduz pela estrutura autorreferente da lógica do conceito.5
[ 5 A Ciência da lógica, dividida em dois momentos: a lógica objetiva e a subjetiva, trata de três estruturas lógicas: o ser, a essência e o conceito. Este último diz respeito às determinações que não são deduzidas de um estado cognitivo de quem representa conceitualmente pelo pensamento um objeto, mas determinações conceituais autoproduzidas segundo um desenvolvimento imanente de um sujeito (não empírico ou gramatical) ontológico que abarca ou “compreende” o enunciado e a enunciação, o objeto e a sua apreensão racional, a objetividade e a subjetividade. A lógica do conceito exprime de modo mais incisivo a noção conceitual da ideia, cuja dinâmica se manifesta pela articulação dialética dos seus três momentos: universalidade, particularidade e singularidade. Quando Hegel diz que “no conceito se abriu, por conseguinte, o reino da liberdade” (Wissenschaft der logik, II, Werke 6, p. 125) quer retratar o elemento autorreferente do conceito, assimilando-o ao caráter definidor daquilo que é livre: o estar consigo mesmo ou junto a si.]
Livre é quem permanece no seu próprio elemento, que está “em casa”, junto a si. O aspecto essencial dessa liberdade é a autosuficiência, ou seja, algo (um sujeito lógico) é livre quando permanece nele mesmo, transita no seu próprio âmbito e tem em si mesmo a razão de ser da sua identidade autônoma e não depende de nada senão de si mesmo como algo que espontaneamente se põe como entidade autorreferente, contemplando, assim, o estatuto lógico daquilo que é em-si e para-si. Esse é o sentido da liberdade enquanto realidade conceitual. Nessa medida, ela representa a mais absoluta autorreferencialidade de algo que está junto de si (Beisichselbstsein). Esta é a característica essencial da liberdade que é, também, atribuída ao espírito, uma vez que ela constitui a própria essência do espírito e a sua efetividade (Wirklichkeit)6 – diz Hegel, ao defini-lo como uma singularidade que se manifesta numa relação idêntica a si e, por isso mesmo, livre, tal como é, de forma análoga, aquilo que se define como subjetividade.
[ 6 Sobre o termo efetividade (Wirklichkeit) ver nota 15.]
Esse caráter autorreferencial da liberdade como estar junto de si pode, também, de forma, isomórfica, ser atribuído à liberdade subjetiva dos indivíduos. Desse ponto de vista, o indivíduo para ser livre deve ter nele mesmo a fonte e a razão de ser de seus atos, o que inclui o domínio racional do sujeito como agente consciente de si e de sua ação, que dirige as suas escolhas e que encontra satisfação no seu agir como expressão da sua subjetividade. Ou seja, a presença da liberdade supõe uma condição lógica: a autoposição do sujeito como senhor de si mesmo. Este aspecto da liberdade constitui um pressuposto necessário para que as ações de interferências não sejam invasivas à liberdade do sujeito, tornando-o suscetível a toda sorte de dominação por forças estranhas à sua autonomia.
Hegel se refere ao termo liberdade subjetiva (subjektive Freiheit) em vários sentidos, todos eles indicando a realização da particularidade de um sujeito. A liberdade subjetiva refere-se a um tipo de ação conscientemente escolhida pela livre vontade do indivíduo. Diz respeito à subjetividade da vontade como determinação moral, o que implica a não-dominação daquelas ações que os sujeitos livremente escolhem, opondo-se, assim, às práticas não desejadas que provêm da coerção e da autoridade de terceiros. Diz respeito, ainda, às pretensões pessoais que visam satisfazer os interesses e as necessidades do indivíduo quanto à sua felicidade e aos seus direitos. Mas, a liberdade subjetiva indica, também, aquelas ações que demonstram arbítrio e têm o sentido depreciativo de idiossincrasias contingentes de um sujeito. Na diversidade do seu significado, essa liberdade constitui um fato histórico do mundo moderno. Compreendê- la e assegurá-la significa reconhecê-la como o grande princípio da modernidade, o qual surge como elemento histórico distintivo em relação aos tempos antigos.
Além do caráter autorreferencial, e que envolve a subjetividade do indivíduo, a liberdade compreende, também, o elemento objetivo da sua manifestação. Nessa medida, ela se apresenta como ser-aí (Dasein) ou exteriorização da sua identidade autorreferencial, e que pode ser compreendido como o seu outro. Assim, o desenvolvimento do espírito é o próprio movimento de sua realização, ou seja, da liberdade, cujo registro não é outra coisa senão a objetividade histórica das intervenções humanas.
O aspecto histórico-institucional representa, portanto, o processo histórico (e objetivo) de efetivação da ideia de liberdade. Por isso, Hegel afirma que “a história universal representa a marcha gradual do princípio cujo conteúdo e a consciência da liberdade.”7 Paralelamente, esse processo revela-se como a “exposição” do espírito que alcança, nos tempos modernos, a sua constituição, representada pela realidade institucional do Estado. Nessa medida, Hegel pretende compreender a liberdade não mais como limite ou restrição, confinada à subjetividade das liberdades individuais (livre-arbítrio) conflitantes entre si, mas como o processo de sua plena efetivação como Ideia que abarca o momento subjetivo autorreferente e o objetivo de sua manifestação. Constitui-se, desse modo, a segunda dimensão da liberdade – o aspecto histórico-institucional – que retrata, numa relação de alteridade, o outro da identidade conceitual, precisamente de um outro que lhe é adequado, próprio – o seu outro.
[7 HEGEL, Vorlesungen uber die Philosophie der Geschichte, Werke 12. p. 77]
Para não cair na vacuidade de uma vontade que se reflete a si mesma, a liberdade necessita de um ser-aí, de uma referência que, a despeito de ser externa a si, não lhe é estranha. O homem só pode estar consigo mesmo na objetivação de suas ações e junto com os outros em relações de intersubjetividade. A liberdade do indivíduo retrata (e repõe) a liberdade espiritual do estar junto de si no seu outro, mediante o qual ele permanece em si mesmo; mas, ao mesmo tempo, ele deve efetivar a sua liberdade neste outro que ele reconhece como o seu outro – o aspecto objetivo da liberdade.
Mas, qual é o elemento que permite a passagem do caráter autorreferencial da liberdade (a face subjetiva) para a sua objetivação? O mecanismo que vai permitir que a liberdade possa transitar no seu próprio elemento sem depender de um outro e, ao mesmo tempo, ter para si um conteúdo ou uma referência por uma “outridade”, abandonando, assim, a vacuidade da sua condição abstrata e formal é, justamente, a dialética do reconhecimento. Para que as relações comunitárias possam desempenhar o papel do mútuo reconhecimento, elas necessitam dispor de instituições ético-políticas que possibilitam a mediação de formas positivas de reconhecimento. A família, a sociedade civil-burguesa e o Estado são instituições políticas e sociais – daquilo que Hegel chamou de eticidade ou vida ética (Sittlichkeit).8 É a eticidade que cumpre esse papel, permitindo que a liberdade subjetiva alcance uma realização efetiva, nelas se reconhecendo como o seu outro, uma realidade que não é estranha ao indivíduo e à sua liberdade.
[ 8 A tradução de Sittlichkeit por “eticidade”, “vida ética” ou “moralidade objetiva” não dá conta do significado amplo e profundo que Hegel atribui a esse vocábulo. Esta forma de moralidade social, comunitária, objetiva distingue-se da moral individual, interior e subjetiva, chamada de moralidade (Moralität), objeto da segunda parte das Linhas fundamentais da filosofia do direito. Na figura da pessoa do direito abstrato, e que Hegel desenvolve na primeira parte desta obra, a liberdade se apresentou como ser-aí imediato da liberdade. Na moralidade, ela se determinou como bem de uma subjetividade ou como “reflexão da autoconsciência”. Essa universalidade interiorizada do bem não deve permanecer abstratamente encerrada em-si, mas se efetivar na realidade objetiva. Configura-se, então, o terceiro momento da Ideia de liberdade que possui tanto a determinação da totalidade substancial, como a da subjetividade singular, o qual será desenvolvido na terceira parte da Filosofia do Direito, denominada de eticidade.]
O direito, as instituições políticas e sociais da eticidade são realizações comunitárias que trazem o sinal da sua própria razão de ser: instaurar e assegurar a liberdade que não se reduz à sua dimensão meramente individual e subjetiva A novidade que Hegel apresenta à filosofia social (ético-política) do seu tempo consiste em compreender a sociedade moderna na articulação de três esferas no processo de efetivação da Ideia de liberdade: a) a esfera da família, lugar da intimidade efetiva da vida imediata privada dos indivíduos; b) um segundo momento, ainda privado, a esfera da liberdade subjetiva da particularidade, da vida econômica e do trabalho dos indivíduos (burgueses) na sociedade civil; e c) a esfera superior da universalidade do Estado que encerra em si o monopólio político da vida pública dos cidadãos, momento não só distinto e superior aos dois primeiros, como também, fim último e razão de ser deles.
São estas instituições que efetivam a Ideia de liberdade, dandolhe a dimensão de uma realidade objetiva. Por isso, Hegel identifica a liberdade nessa esfera como o “reino da liberdade efetivada, o mundo do espírito produzido a partir do próprio espírito como uma segunda natureza.”9 O lado objetivo diz respeito ao mundo social destas instituições e das práticas sociais e intersubjetivas que operam no sentido de desenvolver e manter a liberdade subjetiva, a qual só adquire sentido e estabilidade na objetivação da liberdade, cuja consistência, por sua vez, depende da ação (política e moral) dos sujeitos. Uma ordem social livre é suficientemente forte e estável para assegurar e ampliar a liberdade subjetiva apenas se os cidadãos são membros de instituições que os amparam com objetivos, valores e convicções éticas e políticas.
A família constitui o agrupamento social imediato que inaugura a arquitetônica da vida ética da Filosofia do Direito. Nela, os indivíduos demonstram uma forma de reconhecimento segundo a unidade ética da intimidade familiar, na qual os membros participam de um agrupamento imediato, íntimo, próprio da identidade afetiva, e mediante a qual indivíduos se reconhecem vinculados pelo sentimento e pelo amor. O elemento autorreferencial da liberdade desloca-se para a intimidade da comunidade da família, onde o indivíduo está efetivamente no seu próprio elemento, permanecendo em si mesmo na privacidade do grupo familiar.
[9 HEGEL, G.W.F. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse, [Lineamentos da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio] Werke 7, eds. E. Moldenhauer e K. M. Michel, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1975, § 4. Desse ponto de vista, é possível compreender a tese hegeliana de que a “Ideia do direito é a liberdade e para apreendê-la verdadeiramente é preciso conhecê-la no seu conceito e no seu ser-aí (Dasein)” (idem, § 1, adendo).]
A sociedade civil (burgerliche Gesellschaft)10 representa o momento em que o princípio da liberdade subjetiva e o interesse da particularidade se manifestam. Os indivíduos estão unidos segundo uma universalidade formal que revela a integração recíproca dos seus interesses e necessidades mediada pelas relações dos indivíduos uns com os outros. São relações sociais (civis) porque vinculam os homens numa sociabilidade interdependente, marcada pelas necessidades recíprocas que o trabalho de todos pretende suprir. Mas, eles não estão isolados, pois, satisfazem as suas necessidades em relações sociais que eles mantém entre si. Cada um reconhece no outro um meio para a realização das necessidades individuais e comunitárias. São relações sociais que retratam uma forma de reconhecimento social, ainda que permeada pela disputa, pelo conflito e pela mútua-dependência. Mas, é uma forma de reconhecimento que revela o jogo das necessidades recíprocas que os sujeitos necessitam e manifestam.
Para Hegel, a sociedade civil não possui a medida da universalidade, apesar dela demonstrar a dinâmica da liberdade individual no âmbito de relações sociais intersubjetivas. Submetida às regras de uma lógica da particularidade, ela se repõe a si própria num processo de constante reposição (a “má infinitude”) que pode desencadear, se abandonada a si própria, a sua autodestruição. Urge, então, realizar uma forma superior de eticidade para amparar e efetivar a própria liberdade subjetiva. Para além da esfera da particularidade, Hegel reivindica o espaço éticopolítico do Estado para superar as contradições e limitações da sociedade civil. Nele, o mútuo reconhecimento de seus membros é realizado sob a forma da autoconsciência coletiva que retrata uma sociabilidade comunitária mais elevada e superior, momento em que a liberdade se efetiva objetivamente.
[ 10 A sociedade civil em Hegel indica não apenas o caráter civil do segundo momento da eticidade. Significa, também, o caráter burguês dessa sociedade segundo a sua forma de organização social e econômica. O termo alemão Burger denota tanto o civil como o burguês, mas Hegel consagra essa expressão para o membro da sociedade civil (bourgeois), e não para o citoyen membro da sociedade política. Hegel se afasta da tradição da filosofia política do jusnaturalismo e passa dispensar atenção à economia política inglesa, à revolução econômica industrial e à valorização da categoria do trabalho. A sociedade civil deixa de ser a comunidade política (societas civilis) e passa a ser o lócus da sociabilidade dos indivíduos burgueses associados segundo interesses particulares, mediados pelo princípio da liberdade subjetiva.]
A Filosofia do Direito define o Estado como a “efetividade (Wirklichkeit) da liberdade concreta”11, a etapa derradeira no desenvolvimento progressivo da Ideia de liberdade.12 Sem o Estado, o indivíduo, meramente determinado na sua particularidade como membro da sociedade civil, se dissipa no arbítrio do princípio autorreferente da liberdade subjetiva. O Estado constitui uma forma mais plena de reconhecimento que solidifica o senso de união comunitária de participação, e de autoidentidade compartilhada, fundamento da vida política.
Concluindo, pode-se dizer que a filosofia política hegeliana admite o princípio liberal da liberdade dos indivíduos, denominada por Hegel de liberdade subjetiva, a qual opera como um dos elementos essenciais do Estado moderno, sobretudo, na esfera da sociedade civil. Contudo, à pretensão da ideia liberal de ênfase ao exclusivismo autorreferente da liberdade subjetiva, e, consequentemente, a instrumentalização do Estado aos interesses e direitos individuais, Hegel retoma na modernidade o conceito aristotélico da prioridade do Estado, da supremacia do bem comum como uma exigência teórica e prática, apreendida na noção irrenunciável e evidente de que os fins da comunidade são superiores aos fins dos membros individualmente considerados.13
[11 HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, op. cit., § 260. 12 O hegelianismo político foi interpretado como a filosofia que diviniza, em diversos matizes, o Estado: ora como glorificação do regime político prussiano (H. Heller, F. Rosenzweig, T. Litt, J. Dewey, L.T. Hobhouse, S. Hook, J. Plamenatz), ora como ideólogo do Estado fechado e totalitário inimigo da sociedade aberta das democracias ocidentais (K. Popper), ora como inspirador da ideologia de um poder mistificador e salvador (E. Topitsch), ora como mentor do mito do Estado forte (E. Cassirer). Apesar da suspeita que estes críticos levantam contra o hegelianismo político, a filosofia política de Hegel não faz a apologia do estatismo, negando a liberdade dos indivíduos, mesmo quando enfatiza o caráter da necessidade racional do Estado na constituição das formas modernas de uma sociabilidade ético-política. A reação contra essa interpretação ocorreu precisamente a partir do resgate do princípio da liberdade individual na filosofia hegeliana como expressão da modernidade O filósofo passou a ser visto como pensador da moderna sociedade politicamente organizada segundo os elementos do Estado de direito, e próximo de algumas teses do liberalismo. Estudos mais recentes da obra de Hegel demonstraram a improcedência das acusações de que o filósofo nega a liberdade individual e os direitos da pessoa. Essa interpretação manifestou-se na França (E. Weil, E. Fleischmann, J. D’Hondt, F. Grégoire, J-C. Pinson, G. Planty-Bonjour H. Denis, B. Bourgeois J-F Kervégan), na Inglaterra e nos Estados Unidos da América (T.M. Knox, J.N. Findlay, W. Kaufmann, Z. Pelczynski, S. Avineri, C. Taylor, S. Smith, A. Wood, A. Patten. R. Williams, R. Pippin, M. Forster, T. Pinkard,), na Itália (D. Losurdo), na Alemanha (J. Ritter, G. Rohrmoser. R. Maurer, O. Marquard, K-H Ilting, A. Honneth, H. Lubbe, D. Henrich e H-F. Fulda, M. Theunissen).]
[13 A intenção especulativa de Hegel, presente nos seus escritos da maturidade, não induz ao abandono do antigo princípio da Polis grega da prevalência da totalidade ética que o Estado representa. Significa, antes, uma tentativa de conciliação deste princípio com o da liberdade subjetiva da modernidade.]
A filosofia de Hegel constitui, assim, exemplo de um grandioso e radical investimento especulativo, qualificado como Ideia de liberdade. Ao mesmo tempo em que tem a pretensão de analisar a liberdade segundo um modo conceitual (lógico-ontológico) quer, também, compreendê- la como uma forma histórica de sua manifestação. Ou, dito de outro modo, sem abandonar o seu caráter autorreferencial (subjetivo), o filósofo pretende efetivá-la na sua necessária forma institucional (objetiva). Com essa dupla tarefa, Hegel se afasta do caráter autorreferente e limitativo da liberdade, incorporando-a num processo coletivo ou universal da sua realização que supera e, ao mesmo tempo, conserva14 os fins privados da liberdade individual de uma forma mais efetiva e consistente. Se a liberdade subjetiva não alcançar essa dimensão, e se circunscrever no âmbito dos interesses e desejos particulares dos indivíduos nas suas relações privadas, o próprio princípio da liberdade se vê ameaçado. A sustentação dessa liberdade é possível apenas numa lógica de mediação social em que a liberdade se realiza pela dialética do reconhecimento.
[14 Superação e conservação no sentido em que, hegelianamente, é empregado o termo Aufhebung (cf. nota n. 17 )]
Sugestões de Leitura PrinciPais obras de hegel Publicadas em língua Portuguesa
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis, Vozes, 2002.
HEGEL, G. W. F. A fenomenologia do espírito. Tradução de Henrique C. de Lima Vaz. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). Indicação principalmente do Prefácio, introdução e do primeiro e segundo capítulos.
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: A ciência da lógica. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, 1995-1997. v.1.
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: Filosofia da natureza. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, 1995-1997. v.2.
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: Filosofia do espírito. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, 1995-1997. v.3.
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome. Tradução de Artur Morão, Lisboa: Edições 70, 1989. HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Norberto de Paula Lima. São Paulo: Ícone, 1997. HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do estado no traçado fundamental. Tradução de Marcos Lutz Muller. Inédito.
HEGEL, G. W. f. O Direito Abstrato. Tradução de Marcos Lutz Muller. Clássicos da filosofia: Cadernos de Tradução [IFCH/UNICAMP], Campinas, n. 5, set. 2003.
HEGEL, G. W. F. Introdução à Filosofia do Direito. Tradução de Marcos Lutz Muller. Clássicos da filosofia: cadernos de Tradução [IFCH/UNICAMP], Campinas, n. 10, ago. 2005.
HEGEL, G. W. F. Estética. O Ideia e o ideal, O belo artístico e o ideal. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores).
HEGEL, G. W. F. História da filosofia: Introdução. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores).
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética. Tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 1999-2000. 2 v.
HEGEL, G. W. F. A Razão na história: introdução à filosofia da história universal. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1995. HEGEL, G. W. F. O Sistema da vida ética. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1991.
HEGEL, G. W. F. Propedêutica filosófica. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1989. HEGEL, G. W. F. Filosofia da história. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden, Brasília: UNB, 1995.
obras sobre hegel
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HÖSLE, V. O Sistema de Hegel. São Paulo: Loyola, 2007. INWOOD, M. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
KERVÉGAN, J-F. Hegel e o hegelianismo, São Paulo: Loyola, 2008. PLANT, R. Hegel. São Paulo: Unesp, 2000.
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ROSENZWEIG, F. Hegel e o Estado. São Paulo: Perspectiva, 2008. SINGER, P. Hegel. São Paulo: Loyola, 2003. TAYLOR, C. Hegel e a sociedade moderna. São Paulo: Loyola, 2005.
WEBER, T. Hegel: liberdade, Estado e história. Petrópolis: Vozes, 1993.
filoparanavai 2011
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