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FILOPARANAVAÍ

domingo, 2 de maio de 2010

TEETETO DE PLATÃO: Partes de XXI a XXX

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TEETETO



Parte XXI

Teodoro — É brincadeira, Sócrates; defendeste o homem com ardor juvenil.

Sócrates — Isso é muita bondade, companheiro. Porém dize-me uma coisa: porventura não notaste que Protágoras nos falou agora mesmo em tom de censura, por dirigirmos nosso discurso a um menino e nos aproveitarmos de sua timidez em detrimento de sua doutrina, dele Protágoras? Não chamou a isso pilhéria de mau gosto, dando grande relevo à sua medida das coisas e concitando-nos a estudar seriamente aquela doutrina?

Teodoro — Como não haveria de notar, Sócrates?

Sócrates — E então? Aconselhas a obedecer-lhe?

Teodoro — Sem a menor discrepância.

Sócrates — Como vês, com exceção de ti, todos aqui são crianças. Por isso, se tivermos de obedecer ao homem, eu e tu é que teremos de perguntar e responder no exame acurado de sua tese, para que, pelo menos nisso ele não possa censurar-nos de que a análise de sua doutrina por nós levada a cabo, do começo ao fim não passou de brincadeira com meninos.

Teodoro — Ora essa! Teeteto não é capaz de acompanhar com mais facilidade do que muita gente barbada o estudo de qualquer proposição?

Sócrates — Porém não melhor do que tu, Teodoro. Não irás admitir que eu tenha de defender a todo o transe teu falecido amigo, e tu nada possas fazer nesse sentido. Não, meu caro; acompanha-nos só num trechozinho, até vermos se a ti, somente, é que devemos tomar como medida das figuras geométricas, ou se cada um se basta a si mesmo, como tu, na astronomia e nas demais disciplinas em que, com justiça, te distingues.

Teodoro — Não é fácil, Sócrates, ficar um sentado ao teu lado e esquivar-se a gente de responder às tuas perguntas. Foi leviandade de minha parte pedir-te há pouco que não me despisses e não me constrangesses neste passo como fazem os Lacedemônios. Aliás, quer parecer-me que te aproximas mais de Cirão. Pois os Lacedemônios o que fazem é convidar o visitante a retirar-se ou despir-se, ao passo que tu me dás a impressão de representares o teu papel mais à maneira de Anteu. Não largas quem se aproxima de ti, enquanto não o obrigas a despir-se e a medir-se contigo na dialética.

Sócrates — Achaste uma excelente imagem, Teodoro para minha doença. Com a diferença de que eu sou mais pugnaz do que esses lutadores, pois não têm conta os Héracles e os Teseus com que já me defrontei, campeões de disputa todos eles, e que me malharam sem dó nem piedade. Mas nem por isso abandono o campo, tal a paixão com que me entrego a essa modalidade de exercício. Não me prives, pois, do prazer de medirmos as forças num certame que só será de vantagem para nós dois.

Teodoro — Bem: desisto das objeções; conduze-me para onde quiseres. De todo o jeito, terei de suportar o destino que urdiste para mim, até vir a ser confundido por tua critica. Porém não ficarei à tua disposição além do termo que tu mesmo propuseste.

Sócrates — Basta só até aí. O que importa é ter cuidado para não recairmos, sem querermos, no fraseado infantil, o que nos poderiam censurar.

Teodoro — Esforçar-me-ei nesse sentido, dentro de minhas possibilidades.

Parte XXII

Sócrates — De início, voltemos a tratar da questão anterior, para vermos se tínhamos ou não tínhamos razão de nos aborrecermos e de rejeitar a tese de que em matéria de sabedoria cada um se basta a si mesmo. O próprio Protágoras admitiu que certos indivíduos levam vantagem sobre outros no discernir o melhor e o pior, vindo a ser esses, precisamente, os sábios. Não foi isso?

Teodoro — Certo.

Sócrates — Se ele se achasse aqui presente e nos fizesse semelhante concessão, não sendo nós os que cedêssemos, como seus defensores não teríamos necessidade de voltar a essa questão com o propósito de reforçá-la. Poderiam, aliás, objetar-nos que nos falta autoridade para admitir seja o que for no nome dele. Em tais questões, não é pequena diferença ser deste modo ou de outro.

Teodoro — Tens razão.

Sócrates — Não procuremos auxílio estranho; a assentemos em poucas palavras as bases do nosso acordo só com elementos tirados do seu próprio argumento.

Teodoro — De que jeito?

Sócrates — É o seguinte: o que aparece para cada pessoa é, realmente, como lhe aparece. Não é assim que ele se exprime?

Teodoro — Exatamente.

Sócrates — Nós, também, Protágoras, expomos a opinião de algum homem, ou melhor, de todos os homens, quando dizemos não haver quem não se considere em determinados assuntos mais sábio do que outros, ou inferior em certas coisas a muita gente, e que, pelo menos nos grandes perigos, como sejam: campanhas militares, doenças, tempestades no mar, são tidos como verdadeiros deuses os que comandam nessas diferentes situações, por ser de esperar deles a salvação, conquanto em nada se distingam dos demais homens, senão for, tão-só, pelo saber. Por toda a parte, no burburinho da vida, todos procuram preceptores e comandantes para si próprios, para os animais e seus trabalhos, não faltando, por outro lado, quem não se considere competente para ensinar e comandar. Em todos esses casos, que mais poderemos dizer, se não for que os homens estão convencidos de haver entre eles sábios e ignorantes?

Teodoro — Nada mais.

Sócrates — E não consideram todos eles a sabedoria como pensamento verdadeiro, e a ignorância como opinião falsa?

Teodoro — Sem dúvida.

Sócrates — Que faremos, então, Protágoras, com essa proposição? Diremos que as opiniões dos homens são sempre verdadeiras, ou que algumas vezes são certas e outras vezes falsas? Em qualquer hipótese, o que se conclui é que nas opiniões dos homens não há só verdade, porém as duas coisas: verdades e erros. Reflete agora, Teodoro, se algum dos adeptos de Protágoras, ou tu mesmo, afirmaria que ninguém considera ignorante outra pessoa, ou capaz de formar falsas opiniões?

Teodoro — Não é de acreditar, Sócrates.

Sócrates — No entanto, é a conclusão inevitável a que tende a tese de que o homem é a medida de todas as coisas.

Teodoro — Como assim?

Sócrates — Quando formas em teu foro intimo alguma opinião sobre determinado objeto e ma comunicas, de acordo com aquela assertiva terá ela de ser verdadeira para ti. Mas não nos assistirá também o direito de atuar como juízes de teu julgamento, ou precisaremos concluir sempre que tua opinião é verdadeira? E em cada caso, não pegarão em armas contra ti milhares de adversários que pensam de maneira diferente e denunciam como falsos a tua opinião e o teu juízo?

Teodoro — Sim, Sócrates, por Zeus; miríades, e como diz Homero, prontos para aprestarem toda sorte de incômodos.

Sócrates — E então? Precisamos dizer, se assim o determinas, que formas opiniões verdadeiras para ti, porém falsas para essas miríades de pessoas?

Teodoro — É o que necessariamente se conclui daquela proposição.

Sócrates — E Protágoras, como se arranjaria? Na hipótese de não acreditar que o homem é a medida das coisas, nem ele nem a grande maioria, que, de fato, não acredita, não seria inevitável não existir para ninguém sua Verdade, tal como ele a descreveu? E se ele a admitisse, porém as multidões a rejeitassem, sabes muito bem, para começar, que na mesma proporção em que o número dos que não a aceitam ultrapassa o dos que a aceitam, há mais razões para seu princípio não existir do que para existir.

Teodoro — Necessariamente, se depender do critério pessoal a existência ou não existência de alguma coisa.

Sócrates — Ao depois, o mais bonito, no caso, é reconhecer ele próprio que terão de estar certos seus contraditores, quando opinam sobre seu princípio e o declaram falso, visto admitir que a opinião de todos se refere ao que existe.

Teodoro — Perfeitamente.

Sócrates — Então, ele confessa que sua opinião é falsa, uma vez declarada verdadeira a dos que afirmam estar ele em erro.

Teodoro — Necessariamente.

Sócrates — E os outros, admitem que estejam errados?

Teodoro — Em absoluto.

Sócrates — Ao passo que ele proclama estarem todos certos, de acordo com seus próprios escritos.

Teodoro — Parece. Sócrates De todo lado, pois, há contestação, a começar por Protágoras. Sim, principalmente por ele, visto aceitar como verdadeira a opinião dos que o contraditam. De onde vem, que o próprio Protágoras admite que nem um cão nem qualquer homem da rua não é medida de nada que não houvesse previamente estudado. Não e isso mesmo?

Teodoro — Exato.

Sócrates — Logo, se é contestada por todo o mundo, a Verdade de Protágoras não é verdadeira para ninguém, nem para ele próprio.

Teodoro — Atacamos com muita violência, Sócrates, esse meu amigo.

Sócrates — Mas meu caro, não dispomos de nenhum critério absoluto para dizer que encontramos o caminho certo. É de crer que, como mais velho, ele seja mais sábio do que nós. Se neste momento ele conseguisse sair da terra só até o pescoço, com toda a certeza me acusaria de dizer muita tolice, e a ti também, por concordares comigo, depois do que afundaria de novo na terra e desapareceria. Só o que nos compete, quero crer, é valermo-nos de nós mesmos, tal como nos fez a natureza, e dizer sempre o que nos pareça verdadeiro. Agora, por exemplo, não devemos sustentar, de acordo, aliás, com a opinião geral, que há pessoas mais sábias do que outras, como as há, também, mais ignorantes?

Teodoro — A mim, pelo menos, assim parece.

Parte XXIII
Sócrates — E não será certo dizermos que constitui base sólida para a tese de Protágoras o que afirmamos em sua defesa, que muita coisa é o que parece ser para cada um de nós: quente, seco, doce e tudo o mais do mesmo tipo? Mas se ele confessar que em certos casos os homens diferem entre si, por força terá de admitir que em matéria de saúde ou de doença não está ao alcance de qualquer mulherzinha ou criançola curar-se a si mesmo graças ao conhecimento do que lhes é salutar, mas que, pelo menos neste terreno, se não alhures, um homem difere do outro.

Teodoro —É assim que eu penso também.

Sócrates — Em política dá-se o mesmo: belo e feio, justo e injusto, pio e ímpio, o que nesses assuntos cada cidade tem nessa conta e declara ser legal, é verdadeiro para cada uma, não havendo, nesse domínio, superioridade em matéria de sabedoria, nem entre os particulares nem entre as cidades. Agora, quanto à questão de determinar o que é de proveito para cada cidade, ele terá de concordar que aqui ou nenhures um conselheiro pode ser melhor do que outro e que as cidades diferem fundamentalmente umas das outras com relação à verdade, sem ter ele a ousadia de afirmar que tudo o que determinada cidade legisla, na convicção de que lhe será de proveito, terá de ser, infalivelmente, vantajoso.Acerca do que me referi há pouco, o justo e o injusto, o pio e o ímpio, os homens se comprazem em proclamar que nada disso é assim mesmo por natureza nem tem existência à parte, mas que a opinião aceita por todos torna-se verdadeira nesse próprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento. Os que não estudam a tese de Protágoras até suas últimas conseqüências não podem estadear outra sabedoria. Porém observo, Teodoro, que nossa investigação nos fez passar de um argumento pequeno para um grande.

Teodoro — E não temos tempo de sobra para tudo, Sócrates?

Sócrates — Parece. Por vezes, meu admirável amigo, tal como agora e em outras circunstâncias, me tem ocorrido como é natural revelarem-se oradores ridículos as pessoas dadas a especulações filosóficas, sempre que se apresentam nos tribunais.

Teodoro — Que queres dizer com isso?

Sócrates — Parece-me que os indivíduos que desde moços vivem a rolar nos tribunais ou quejandos ajuntamentos, em confronto com os educados na filosofia e estudos correlatos são como escravos comparados a homens livres.

Teodoro — E qual é a razão?

Sócrates - A que apontaste agora mesmo: o tempo de que sempre dispõem, por terem folga para conversar em paz, tal como se dá neste momento conosco, pois agora mesmo mudamos de assunto pela terceira vez. É o que eles fazem quando um novo tema lhes agrada mais do que o debatido, sem se preocuparem se a conversa dura muito ou pouco. O que importa é atingir a verdade. Os outros, ao revés disso, só falam com o tempo marcado,premidos a todo instante pela água da clepsidra, que não os deixa alargar-se à vontade na apreciação dos temas prediletos. Ademais, o adversário não arreda pé de junto deles, a insistir nos artigos da acusação, de nome antomosia, outras tantas barreiras que não podem ser ultrapassadas. Trata-se sempre de discursos de escravos a favor de algum conservo, pronunciado na presença do senhor que se acha ali sentado e traz na mão alguma queixa. A luta nunca se trava por questões indiferentes, porém sempre de interesse pessoal, estando,muita vez, em jogo a própria vida. De tudo isso resulta que eles ficam hábeis e sumamente atilados, por saberem adular o senhor com suas falas e servi-lo de mil modos. Porém sua alma deles acaba estiolada e retorcida, pois, escravos desde a infância, ressentem-se no crescimento, na retidão e na liberdade, o que os leva a práticas tortuosas e deixa suas tenras almas expostas a perigos e temores de toda a espécie. Não podendo transpor esses obstáculos sem ferir a justiça e a liberdade, voltam-se muito cedo para a mentira e respondem, à injustiça com injustiça, donde vem ficarem inteiramente deformados e retorcidos. Desse modo, terminada a adolescência, sem. terem nada sadio na mente, quando atingem a idade madura tornam-se sábios e de malícia incontrastável, segundo crêem.Queres que examinemos também os que compõem nosso coro, ou será preferível deixá-los de lado e reatarmos nossa discussão, para não abusarmos demais da liberdade tão peculiar a nossos discursos a que há pouco nos referimos e da facilidade de mudar de tema?

Teodoro — De jeito nenhum, Sócrates; convém examiná-los. Observaste, com muita propriedade, que os componentes deste coro não somos escravos, mas o inverso: os discursos é que nos servem, aguardando cada um deles o remate que lhes quisermos dar, pois não temos juízes postados na nossa frente, nem, como no caso dos poetas, espectadores que nos censurem ou dêem ordens.

Parte XXIV

Sócrates — Então, falemos dos diretores do coro, já que isso te agrada, conforme verifico. Qual a vantagem de perdermos tempo com a arrala miúda do campo da filosofia?De início, devemos observar acerca dos primeiros que desde a mocidade o que mais do que tudo ignoram é o caminho da ágora ou onde fica o tribunal, a sala de conselho e quejandos, locais de reuniões públicas; não ouvem nem vêem as leis nem as decisões escritas ou faladas. As disputas dos cargos públicos nas hetérias, as reuniões e os festins, os banquetes animados por tocadoras de flauta: nem em sonhos lhes ocorre comparecer a nada disso.Nasceu na cidade alguém de nobre ou baixa estirpe? Certo cidadão herdou tara de seus antepassados, homens ou mulheres? É o que filósofo conhece tão pouco, como se diz, como quanta areia há no mar. Nem chega mesmo a saber que não sabe nada disso. Porém não se alheia dessas coisas por vanglória, mas porque realmente só de corpo está presente na cidade em que habita, enquanto o pensamento, considerando inane e sem valor todas as coisas merecedoras apenas de desdém, paira por cima de tudo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a sua superfície, contemplando os astros para além do céu, a perscrutar a natureza em universal e cada a ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se com o que se passa ao seu lado.

Teodoro — Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates — Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a filosofia. Realmente, um indivíduo assim alheia-se por completo até dos vizinhos mais chegados e desconhece não somente o que eles fazem como até mesmo se se trata de homens ou de criaturas de espécie diferente. Mas o que seja o homem e o que, por natureza, lhe cumpre fazer ou suportar, para distingui-lo dos outros seres, eis o que ele procura conhecer, sem se poupar a esforços em sua investigação. Compreendes-me, Teodoro, ou não?

Teodoro — Compreendo; é muito verdadeiro tudo isso.

Sócrates — Eis a razão, amigo, como disse no começo, de em todas as circunstâncias, assim na vida pública como no trato particular com seus concidadãos, no tribunal ou alhures, sempre que nosso filósofo é forçado a tratar de assuntos que lhe caem sob a vista ou diante dos pés, tornar-se alvo de galhofa não apenas por parte das raparigas da Trácia como de todo o povo, levando-o sua falta de experiência a cair nos poços e na mais triste confusão. Sua irremediável inabilidade para as coisas práticas fá-lo passar por imbecil. Num revide de injúrias não sabe como atacar o adversário, por desconhecer os vícios dos homens, já que nunca se preocupou com a vida de ninguém. E por não saber como sair-se de tais enrascadelas, faz papel mais que ridículo. Por outro lado, quando se trata de elogios e de enaltecerem uns aos outros com termos pomposos, não procura esconder o riso; estoura em gargalhadas sem nenhum constrangimento, o que o faz parecer tolo. Quando ouve o encômio de qualquer tirano ou potentado, imagina que se trata do elogio de um pastor: porqueiro, cabreiro ou vaqueiro, por ser abundante a sua ordenha. É de opinião, aliás, que os reis guardam e ordenham um rebanho muito mais insidioso e intratável do que os dos verdadeiros pastores, e que por falta de vagar acabam ficando tão rústicos e ignorantes como aqueles e tão cercados por seus muros como os verdadeiros pastores pelos currais nas montanhas. Quando ouve dizer que tal indivíduo é dono de dez mil plectros de terra, ou até de mais, como se se tratasse de uma grande propriedade, julga que lhe falam de coisinhas sem valor, acostumado, como está, a contemplar a terra inteira. Ao ouvir gabarem títulos de nobreza, por poder alguém mencionar sete antepassados ricos, considera
absolutamente fútil tal elogio e revelador de curteza de vista por parte dos que falam, os quais, por ignorância, são incapazes de apreender o todo e de calcular que não há quem não tenha miríades sem conta de avós e antepassados, entre os quais se sucedem ricos e pobres, também por miríades, potentados e escravos, Helenos e bárbaros, indiscriminadamente, nesta ou naquela geração. Enumerar como grande coisa vinte e cinco antepassados ou dizer-se originário de Héracles, filho de Anfitrião, é para ele uma contagem ínfima. O vigésimo quinto antepassado de Anfitrião foi quem a sorte quis, sem falarmos no qüinquagésimo avô desse vigésimo quinto, divertindo-se o filósofo com a incapacidade de toda essa gente para contar e para purgar a mente de tanta fatuidade. Em tais situações o filósofo é ridicularizado pela plebe, que ora o considera desdenhoso, ora desconhecedor do que lhe está na frente dos pés e a quem as menores coisas causam inextricável confusão.

Teodoro — Tudo, Sócrates, se passa exatamente como disseste.

Parte XV

Sócrates — Porém no caso, amigo, de conseguir ele arrastar alguém para as alturas em que se encontra e de resolver-se este outro a sair das perguntas: Em que te ofendi? Ou Em que me ofendeste? para considerar a justiça ou a injustiça em si mesmas e procurar saber em que uma difere da outra ou de tudo o mais, desistindo de aplicar-se a temas como o de saber se é feliz o Rei ou quem for possuidor de montões de ouro, para estudar a realeza em geral ou a felicidade e a desgraça do homem em universal, em que consistem e de que modo convém à natureza humana adquirir uma e fugir da outra: quando aquele indivíduo de alma pequenina, afiada e chicanista se vê obrigado a responder a todas essas questões, então, é sua a vez de sofrer o mesmo castigo: sente vertigens na altura a que se viu guindado, e por falta de hábito de sondar com a vista o abismo fica com medo, atrapalha-se todo e mal consegue balbuciar, tornando-se objeto de galhofa não apenas das raparigas trácias ou das pessoas incultas em geral, pois todos estes são incapazes de notar o ridículo da situação, como de quantos receberam educação contrária à dos escravos. Eis aí, Teodoro, a condição desses dois tipos. Um, educado realmente com liberdade e lazer, a quem dás o nome de filósofo, não merece ser vituperado por fazer figura simplória e revelar-se imprestável quando se vê às voltas com alguma ocupação servil, como, por exemplo, não saber amarrar os cobertores na hora de viajar nem temperar alimentos ou preparar discursos bajulatórios. O outro é capaz de fazer tudo isso com rapidez e perfeição, porém não saberá arranjar o manto no ombro direito como o faz o homem livre, e muito menos, apanhando a música do discurso, entoar condignamente o hino da verdadeira vida dos deuses e dos varões bem-aventurados.

Teodoro — Se conseguisses, Sócrates, convencer todo o mundo da verdade do que disseste como fizeste comigo, haveria mais paz e menos males entre os homens.

Sócrates — É certo, Teodoro. Porém não é possível eliminar os males — forçoso é haver sempre o que se oponha ao bem — nem mudarem-se eles para o meio dos deuses. É inevitável circularem nesta região, pelo meio da natureza perecível. Daqui nasce para nós o dever de procurar fugir quanto antes daqui para o alto. Ora, fugir dessa maneira é tornar-se o mais possível semelhante a Deus; e tal semelhança consiste em ficar alguém justo e santo com sabedoria. Mas a verdade, meu excelente amigo, é que não é fácil convencer ninguém de que as razões consideradas válidas pela maioria para fugir do vício e procurar a virtude não são as que levam um a cultivar esta e evitar aquela, a fim de não parecer ruim, senão virtuoso. A meu ver, tudo isso não passa de história de velhas, como se diz. Mas a verdade, vou declarar-te qual seja: de modo nenhum Deus é injusto, senão justo em grau máximo, não podendo ninguém ficar semelhante a ele se não for tomando-se o mais justo possível. É assim que se avalia com acerto a superioridade de uma pessoa, ou sua covardia e falta de virilidade. O conhecimento de semelhante fato configura a sabedoria e a verdadeira virtude, e sua ignorância, maldade e tolice manifestas. As demais aparências de habilidade e de sabedoria, quando se mostram no exercício do poder público, são conhecimentos grosseiros; nas artes, vulgaridade. Assim, quando alguém é injusto ou ímpio, por ações ou palavras, será melhor não conceder-lhe que todo o seu êxito se baseia na astúcia, pois esse indivíduo se envaideceria com o reparo, muito ancho por ter ouvido dizer, segundo crê, que não é néscio ou fardo inútil sobre a terra, porém homem como terão de ser os que melhor sabem vencer na vida pública. A esses tais é preciso dizer-lhes a verdade: que são tanto mais o que julgam não ser, quanto menos sabem o que são. De fato, todos eles desconhecem qual seja o castigo da injustiça, o que menos do que tudo não se pode ignorar. Não é o que todos pensam: castigos corporais e morte, de que os malfeitores muitas vezes escapam, senão penalidade a que ninguém se exime.

Teodoro — A que penalidade te referes?

Sócrates — Na própria ordem das coisas, amigo, há dois paradigmas: um divino e bemaventurado; outro, contrário a Deus e miserabilíssimo. Porém nada disso eles percebem; a enfatuação e a demência em grau máximo os impedem de sentir que com suas ações injustas eles se aproximam do segundo e cada vez mais se afastam do primeiro. São castigados pela vida que levam, conforme ao modelo de sua preferência. E se lhes dizemos que se não renunciarem àquela habilidade, depois de mortos não serão recebidos no local estreme de maldades e aqui em baixo terão de levar vida conforme seu caráter: os maus convivendo com a maldade: tudo isso eles escutam, sabidíssimos e astuciosos, como palavreado vazio, de pessoas desprezíveis.

Teodoro — É muito certo, Sócrates.

Sócrates — Sei disso, companheiro. Mas uma coisa acontece com eles. Sempre que se vêem forçados, nalgum encontro particular, a argumentar a respeito das teses por eles rejeitadas, e a sustentar com brio por algum tempo a discussão, sem abandonar covardemente o campo: então, amigo, com todos eles se passa uma coisa muito interessante, pois acabam por se desgostarem de seus próprios argumentos; toda a sua retórica emurchece, fazendo eles, afinal, figura de crianças. Porém deixemos essas considerações, que não passam de acessórios; como novos tributários, poderão afogar o argumento principal, a que teremos de voltar, caso te declares de acordo.

Teodoro — Para mim não foi desagradável, Sócrates, semelhante digressão. Com toda a minha idade, foi-me fácil acompanhá-la. Mas, se assim preferes, refaçamos nosso caminho.
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Parte XXVI
Sócrates — Em nosso estudo ficamos na asserção de que os adeptos da doutrina de ser o movimento a essência última das coisas e de que a realidade para cada indivíduo é exatamente como lhe parece ser, são obrigados a aceitar no resto, principalmente no que concerne à justiça, quanto uma determinada cidade institui como lei é perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei não for derrogada; mas no que entende com os bens, ninguém ainda teve coragem de sustentar que é vantajoso para a cidade tudo sobre o que lhe aprouver legislar, e que vantajoso continuará sendo enquanto a lei não for abolida. Porém isso eqüivaleria a ridicularizar nosso tema, não é verdade?

Teodoro — Perfeitamente.

Sócrates — Não falemos, pois, do nome, mas apenas da coisa por ele designada.

Teodoro — Sem dúvida.

Sócrates — Seja o que for que a cidade designa por este ou aquele nome, a isso é que ela visa quando promulga leis, não havendo lei dentro de suas cogitações e possibilidades, que não seja proposta com vistas ao seu maior proveito. A que outro fim pode visar uma legislação?

Teodoro — A nenhum.

Sócrates — E será que as cidades sempre acertam? Não se dará o caso de errarem, e errarem muito?

Teodoro — Eu, de mim, estou convencido de que também erram.

Sócrates — É com o que mais prontamente todos concordariam, se orientássemos nossa investigação para o problema do útil em universal. Ora, este se estende também para o futuro. Sempre que legislamos, é com a idéia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir, sendo futuro, precisamente, a denominação certa desse tempo.

Teodoro — Perfeitamente.

Sócrates — Assim sendo, perguntamos o seguinte a Protágoras ou a quem afinar com ele na maneira de pensar: O homem é a medida de todas as coisas, conforme afirmas, Protágoras: do branco, do pesado, do leve, em suma: de tudo o mais do mesmo gênero, sem nenhuma exceção. Por trazer ele em si mesmo o critério decisivo de tudo, como ele percebe as coisas, assim acredita que elas sejam, considerando-as verdadeiras para ele e como existentes. Não é isso mesmo?

Teodoro — Certo.

Sócrates — E com respeito às coisas futuras, Protágoras, lhe diremos, traz o homem, também, o critério em si mesmo, e tal como cada um pensa que as coisas irão acontecer, tudo se passará exatamente como eles imaginam? Exemplifiquemos com o calor: quando um leigo em medicina pensa que vai ter febre e que nele se irá revelar essa espécie de calor, e o médico, de seu lado, assevera o contrário: de acordo com qual opinião diremos que o futuro decorrerá? Com ambas, porventura, no sentido de que para o médico o paciente não ficará nem quente nem febril, e para este, as duas coisas ao mesmo tempo?

Teodoro — Seria o cúmulo do ridículo.

Sócrates — Porém imagino que a respeito de como ficará o vinho, se doce ou ácido, é decisiva a opinião do agricultor, não a do citarista.

Teodoro — Como não?

Sócrates — O mesmo se diga da consonância ou dissonância futuras: o pedótriba, com seus conhecimentos de ginástica não se manifestará com mais segurança do que o músico acerca do que ele próprio, professor de ginástica, achará mais bem soante.

Teodoro — De forma alguma.

Sócrates — Do mesmo modo nos preparativos de um banquete, a opinião do convidado desconhecedor da arte culinária valerá menos que a do cozinheiro, em matéria do tempero das iguanas. Sim, porque não iremos discutir agora acerca do prazer que qualquer pessoa possa ter neste momento ou tivesse tido no passado; o que se pergunta é se cada um de nós é o melhor juiz para o que nos venha a parecer ou ser, de fato, agradável no futuro. Ou, ainda: sobre o poder maior ou menor de persuasão de discursos que terão de ser pronunciados no tribunal, não serás, porventura, Protágoras, mais capaz de prejulgar do que os leigos na matéria?

Teodoro — Certamente, Sócrates; nesse terreno, pelo menos, ele se declararia superior a todos.

Sócrates — Por Zeus, amigo; sei muito bem disso! Ninguém lhe teria dado tanto dinheiro, só para gozar de sua conversação, se ele não tivesse convencido os ouvintes de que a respeito de tudo o que terá de ser ou parecer no futuro, nem os próprios adivinhos julgam com tanta segurança como ele.

Teodoro — É muito certo.

Sócrates — E a legislação e sua utilidade, não olha também para o futuro? E não é admitido por toda a gente que, por vezes, o legislador terá de enganar-se sobre o que possa ser de mais vantagem?

Teodoro — Sem a menor dúvida possível.

Sócrates — Mui discretamente, pois, precisaremos levar teu mestre a confessar que há homens mais sábios do que outros e que só estes servem de medida, e que eu, ignorante como sou, de jeito nenhum poderei ver-me forçado a ser medida, como há pouco queria aquele discurso pronunciado, de bom ou de mau grado, a seu favor.

Teodoro — A meu ver, Sócrates, esse é o ponto mais vulnerável de sua tese, e também pelo fato de admitir ele a validez das opiniões alheias, que, conforme vimos, se recusam a aceitar como bons seus argumentos.

Sócrates — Em muitos outros pontos, também, Teodoro, pode ser atacada a tese de que a opinião de qualquer pessoa é verdadeira. Porém quando se trata das impressões presentes de alguém, fontes de sensações e de opiniões correlatas, é mais difícil demonstrar que não são verdadeiras. É possível que o que eu digo não tenha consistência e que elas sejam, de fato, irrefutáveis, estando com a verdade os que as consideram evidentes e iguais a conhecimento. Não deixou, pois, o nosso Teeteto de acertar no alvo, quando formulou a identidade entre sensação e conhecimento. É de mister, assim, atacar de mais perto a questão, como nos recomendou, aliás, o discurso em defesa de Protágoras, e examinar de novo este ser inquieto e movediço, para percuti-lo e ver se emite som cheio ou de taboca rachada. A batalha travada ao redor dele não é de importância secundária nem mobiliza pouca gente.

Parte XXVII

Teodoro — Está longe de carecer de importância; na Jônia, principalmente, ela se alastra a olhos vistos. Os sectários de Heráclito são os mais ardorosos defensores de tal doutrina.

Sócrates — Tanto maior é nosso dever, amigo Teodoro, de reexaminá-la desde seus fundamentos, tal como eles mesmos a formularam.

Teodoro — Perfeitamente. Porém discutir com seriedade, Sócrates, doutrinas heraclitianas, ou, como disseste, homéricas, se não forem ainda mais velhas, com aquela gente de Éfeso que se apresentam como conhecedores delas, é tão impossível como falar com quem se encontra azoratado por ferroadas de tavões. Em coerência com a lição de seus próprios escritos, estão sempre em movimento. Demorar no exame de determinado argumento ou questão e, um por vez, com toda a seriedade, perguntar ou responder, e o que menos de tudo são capazes de fazer. Até mesmo a expressão Nada já fora excessiva para exprimir a nenhuma tranqüilidade de ânimo daquela gente. Quando lhes formulas alguma pergunta, retiram como de um carcás pequeninas e enigmáticas sentenças que desferem contra ti; se solicitares esclarecimentos sobre o seu significado, és atingido por outra de construção ainda mais original. E quanto é nisso, nunca chegarás a qualquer conclusão com nenhum deles, como não chegam, aliás, eles mesmos entre si. Põem o máximo empenho em não deixarem que algo se estabilize nos seus discursos nem em suas próprias almas, pelo receio, segundo penso, de que já seria alguma coisa estacionário, que é o que eles mais combatem e se esforçam por expulsar de toda a parte.

Sócrates — Decerto, Teodoro, só viste esses homens no calor das disputas, sem nunca teres conversado com eles em tempo de paz, por não serem teus amigos. Porém nos intervalos de mais calma, segundo penso, comunicam essas coisas aos discípulos que eles cuidam de formar à sua imagem.

Teodoro — Que discípulos, homem? Entre eles ninguém é discípulo de ninguém. Todos brotam espontaneamente, ao sabor da inspiração, achando cada um de per si que o vizinho não sabe nada. De toda essa gente, como disse, jamais alcançarás a menor resposta, nem à força nem de bom grado; precisamos apanhá-los e examiná-los como a problemas.

Sócrates — Falas com muito senso. E esse problema, não o recebemos dos antigos velado pela poesia, para melhor escondê-lo das multidões, que o Oceano e Tétis, geradores do resto das coisas, são corrente d’água, e que nada é imóvel? É o que os modernos, mais sábios do que eles, demonstram abertamente, para que os próprios sapateiros, ouvindo-os, assimilem tamanha sabedoria e deixem de acreditar estultamente que há. seres parados e seres em movimento, e aprendam que tudo é movimento, com o que passarão a reverenciar os mestres. Porém por pouco me esqueceu, Teodoro, que outros sustentam precisamente o contrário, como, por exemplo: Só como imóvel, de fato, é que o Todo deverá chamar-se, e tudo o mais quanto os Melissos e os Parmênides atiram contra aqueles, a saber: que tudo é um e se mantém imóvel em si mesmo, não havendo lugar para onde possa declinar. E agora, amigo, que faremos no meio de toda essa gente? Avançando aos pouquinhos, viemos cair, sem o percebermos, entre os dois grupos, e se não descobrirmos jeito de escapar de ambos, incorreremos em penalidade, como se dá na palestra com os jogadores de barra, quando, apanhados pelos dois quadros, se vêem arrastados em direções contrárias. Parece-me aconselhável começar nosso exame pelos que abordamos primeiro, os que estão em fluxo permanente, e se virmos que sua doutrina tem fundamento sério, nós mesmos os ajudaremos a puxar-nos, para ver se escapamos dos outros. Porém se os que imobilizam o Todo nos parecerem mais verdadeiros, nos acolheremos sob seu amparo, a fim de nos livrarmos dos que movimentam até o imóvel. Por último, no caso de concluirmos que nenhum diz coisa com coisa, suportaremos o ridículo de pretender emitir opinião própria, em que pese à nossa insignificância, após condenarmos a de pessoas tão veneráveis pelo saber e pela idade. Agora vê, Teodoro, se vale a pena correr semelhante risco.

Teodoro — O que não é admissível, Sócrates, de jeito nenhum, é deixar de investigar o que ambas as facções pretendem.

XXVIII

Sócrates — Pois investiguemos, já que fazes tanto empenho nisso. A meu parecer, o começo do nosso estudo da natureza do movimento deve consistir na indagação do que eles querem dizer quando afirmam que tudo se movimenta. É o seguinte: referem-se a uma única forma de movimento ou a duas? Não me agrada ficar sozinho com o meu modo de pensar; põe-te ao meu lado para, juntos, se for o caso, recebermos o castigo. Responde-me ao seguinte: não dirás que uma coisa se movimenta quando ela muda de lugar e também quando gira em torno do mesmo ponto?

Teodoro — Exato.

Sócrates — Eis aí, por conseguinte, uma primeira forma de movimento. Mas, quando determinada coisa, parada no lugar em que está, vem a envelhecer, ou de negra fica branca, ou passa de duro para mole, ou sofre alterações de outra natureza, não merece tudo isso, também, ser considerado formas de movimento?

Teodoro — Acho que sim.

Sócrates — Não pode ser de outra maneira. Digo, pois, que há duas espécies de movimento: o de alteração e o de translação.

Teodoro — Falas com muito senso.

Sócrates — Firmado esse ponto, voltemos a conversar com os que afirmam que tudo se movimenta e lhes formulemos a seguinte pergunta: Pretendes que todas as coisas se movem simultaneamente dos dois modos, por alteração e por translação, ou algumas dos dois modos, e outras apenas de um?

Teodoro — Por Zeus, não saberei dizê-lo; porém acho que eles responderiam que é pelos dois.

Sócrates — Se o não dissessem, amigo, teriam de reconhecer que estão paradas as mesmas coisas que lhes parecem movimentar-se, e que tão certo seria afirmar que tudo se move como tudo está em repouso.

Teodoro — Só dizes a verdade.

Sócrates — Ora, se tudo tem de mover-se e em nada há imobilidade, tudo se move sempre com todos os movimentos.

Teodoro — Necessariamente.

Sócrates — Analisa também o que eles declaram: Já não dissemos que eles explicam a gênese: do calor ou a da brancura ou seja do que for, pelo movimento de cada uma dessas coisas, no momento da sensação, entre o agente e o paciente, com o que este se torna sentiente, não sensação, e o agente, por sua vez, certo qual, não propriamente qualidade? Decerto a expressão Qualidade não só te parece estranha como difícil de apreender em sua acepção genérica. Então, ouve por partes. O agente não se torna nem calor nem brancura, porém quente e branco, e tudo o mais pelo mesmo conseguinte. Como deves lembrar-te do que ficou dito antes, em parte alguma existe a umidade em si mesma, como não existem o agente e o paciente; do encontro de ambos é que se geram as sensações e seus respectivos objetos, passando a haver, de um lado, uma coisa com certa qualidade, e, do outro, um sujeito que percebe.

Teodoro — Lembro-me; como não?

Sócrates — Deixemos tudo o mais de lado, sem nos preocuparmos com explicações, e nos atenhamos apenas ao que afirmamos no começo, quando lhes perguntamos: Tudo se move e passa, como dizeis, não é isso mesmo?

Teodoro — Exato.

Sócrates — De acordo, sempre, com as duas formas de movimento por nós distinguidas: alteração e translação?

Teodoro — Certamente, sem o que o movimento não seria perfeito.

Sócrates — Se só houvesse passagem de um para outro lugar, sem nenhuma alteração, seríamos capazes de dizer de que natureza são as coisas que se deslocam e passam, não é isso mesmo?

Teodoro — Certo.

Sócrates — Porém desde que nem isso é estável, e o que se escoa, escoa branco, que também se altera, de forma que há fluxo até da própria brancura, com transição para uma cor diferente, não podendo, pois, de jeito nenhum ser apreendida como tal, haverá meio de dar o nome de cor a alguma coisa, com a certeza de estarmos empregando a designação certa?

Teodoro — De que jeito, Sócrates? Nem a isso nem a nada do mesmo gênero, se no próprio instante de designá-la essa coisa nos escapa, visto não parar de escoar-se?

Sócrates — E que diremos das sensações, sejam de que natureza forem, como as da vista, ou as do ouvido? No ver e no ouvir, elas se conservam estáveis?

Teodoro — De jeito nenhum, pois que tudo se move.

Sócrates — Nesse caso, em vez de dizer que alguma coisa é vista, seria mais certo dizer que não é vista, valendo o mesmo para toda espécie de sensação, já que tudo se move de todas as maneiras.

Teodoro — Não, realmente.

Sócrates — No entanto, sensação e conhecimento se eqüivalem, como afirmamos eu e Teeteto.

Teodoro — Afirmastes, sim.

Sócrates — Nesse caso, nossa resposta à pergunta: Que é conhecimento? tanto se referia a conhecimento como a não-conhecimento.

Teodoro — É possível.

Sócrates — Saiu-nos uma obra-prima a tentativa de corrigir nossa primeira resposta, quando nos dispusemos a demonstrar que tudo se move, justamente para que a resposta parecesse certa. Agora, porém, pelo que se vê, ficou mais do que claro que se tudo se move, toda resposta a respeito seja do que for é igualmente justa, pois tanto faz dizer que uma coisa é deste jeito como daquele, ou melhor, caso queiras, que devém assim ou assado, para não imobilizarmos toda essa gente com nossa argumentação.

Teodoro — Tens razão.

Sócrates — Menos, Teodoro, no ter eu dito: Assim e Não assim. Pois nunca devemos valer-nos da expressão Assim, visto como esse Assim já não seria movimento, nem, ainda, da contrária, Não assim, que também implicaria ausência de movimento. Os adeptos de semelhante tese terão de criar uma linguagem nova, por carecerem presentemente de expressões para traduzir sua hipótese, a não ser a fórmula De nenhum modo, repetida ao infinito, que é a que mais condiz com o que eles querem significar.

Teodoro — Seria, de fato, a expressão mais conveniente.

Sócrates — Desse modo, Teodoro, ficamos livres de teu amigo, sem lhe concedermos em absoluto que todos os homens são a medida de todas as coisas, a não ser o homem inteligente. Não aceitamos, também, que conhecimento seja sensação, pelo menos em conexões com o princípio de que tudo se move, tirante a hipótese de ter ainda o nosso Teeteto alguma coisa a acrescentar.

Teodoro — Falaste admiravelmente bem, Sócrates. E, uma vez terminado esse assunto, sinto-me dispensado da obrigação de responder, pois o combinado entre nós foi: Até o fim da discussão sobre o princípio de Protágoras.

Parte XXIX

Teeteto — Porém não antes, Teodoro, de tu e Sócrates estudarem a doutrina dos que proclamam que o Todo está parado, conforme propusestes há pouco.

Teodoro — Moço como és, Teeteto, ensinas os mais velhos a cometer injustiça e violar tratados? Não; cuida do que vais responder a Sócrates no que ainda falta analisar.

Teeteto — Se for do seu agrado. Porém teria mais gosto em ouvir o que acabei de dizer.

Teodoro — Convidar Sócrates para argumentar é o mesmo que chamar cavaleiros para a planície. Se desejas ouvir, basta perguntar.

Sócrates — Porém quer parecer-me, Teodoro, e que não me será possível satisfazer a vontade de Teeteto no que ele me pediu.

Teodoro — Por quê?

Sócrates — Tenho escrúpulos de analisar por maneira muito grosseira Melissos e os mais que proclamam a imobilidade do Todo, em que me mostre mais brando do que fui com Parmênides. Porém Parmênides me inspira, para empregar a linguagem de Homero,respeito e vergonha a um só tempo. Estive com o homem quando ainda era muito moço e ele já avançado em anos, tendo-se me revelado de rara profundidade de pensamento. Por isso, tenho receio de não compreender suas palavras e que nos escape ainda mais o sentido profundo das idéias. Porém o que acima de tudo me faz medo é poder a tese que arrastou para tão longe nossa argumentação, a saber, o que seja conhecimento, deixar de ser devidamente apreciada, se novos argumentos tumultuarem o banquete, no caso de lhes facilitarmos a entrada. Principalmente a questão levantada há pouco é de alcance incalculável; considerá-la pela rama não seria tratamento condigno; mas se a estudarmos como convém, far-nos-á perder de vista a do conhecimento. Teremos de fugir desses dois escolhos. O aconselhável é ajudar Teeteto com nossa arte maiêutica no seu trabalho de parto do conhecimento.

Teodoro — Sim, façamos isso mesmo, se pensas desse modo.

Sócrates — Considera mais o seguinte, Teeteto, como aditamento ao que ficou exposto: sensação é conhecimento; não foi isso que respondeste?

Teeteto — Foi.

Sócrates — E se alguém te perguntasse: Com que o homem vê o branco e o preto e com que ouve o agudo e o grave? penso que lhe responderias: com os olhos e com os ouvidos.

Teeteto — Certo.

Sócrates — O emprego um tanto livre dos vocábulos e expressões, sem escravizá-los a um rigorismo exagerado, de regra não É indício de falta de educação liberal; o contrário, justamente, É que é mostra de servilismo. Porém em certos casos é necessário precisão, tal como agora, em que se nos impõe a tarefa de procurar o que há de incorreto em tua resposta. Reflete um pouco, para dizer qual é a fórmula mais certa: Vemos com os olhos, ou por meio dos olhos? e Ouvimos com os ouvidos, ou por meio dos ouvidos?

Teeteto — Quer parecer-me, Sócrates, que é por meio dos órgãos, não com eles, que percebemos alguma coisa.

Sócrates — Seria absurdo, menino, se uma quantidade enorme de sensações estivessem apinhadas dentro de nós como num cavalo de pau, sem se relacionarem com uma única idéia, ou seja a alma ou como te aprouver denominá-la, ponto de convergência delas todas, por meio da qual, usada como instrumento, percebemos todo o sensível.

Teeteto — Essa explicação me parece mais certa do que a outra.

Sócrates — A razão de eu exigir em nosso diálogo tamanha precisão, é para sabermos se não há em nos um princípio, sempre o mesmo, com o qual, por meio dos olhos, atingimos o branco e o preto, e, por meio de outros órgãos, outras qualidades, e se, interrogado, poderias relacionar tudo isso com o corpo. Mas talvez seja melhor que a resposta parta de ti mesmo, em vez de eu formulá-la com tanto trabalho. Dize-me o seguinte: os órgãos por intermédio dos quais sentes o quente e o seco, o leve e o doce, tu os localizas no corpo ou noutra parte?

Teeteto — Em nada mais, se não for no próprio corpo.

Sócrates — E não quererás, também, admitir que tudo o que sentes por meio de uma faculdade não podes sentir por meio de outra? Assim, o que é percebido por meio dos olhos não o será pelos ouvidos, e o contrário: o que percebes pelo ouvido, não perceberás pelos olhos.

Teeteto — Como não hei de querer?

Sócrates — E no caso de conceberes, ao mesmo tempo, alguma coisa por meio desses dois sentidos, não poderás ter alcançado essa percepção comum nem só por meio de um nem por meio do outro.

Teeteto — De jeito nenhum.

Sócrates — E a respeito do som e da cor, não admites, inicialmente, que ambos existem?

Teeteto — óbvio.

Sócrates — E também que cada um difere do outro, mas é igual a si mesmo?

Teeteto — Como não?

Sócrates — E que juntos são dois, e cada um em separado é apenas um?

Teeteto — Isso também.

Sócrates — E a semelhança ou dissemelhança entre eles, não és também capaz de investigar?

Teeteto — Talvez.

Sócrates — E por meio de que percebes tudo isso a respeito de ambos? Só por meio da vista ou só por meio do ouvido é que não poderás apreender o que apresentam de comum. Aí vai uma outra prova, em reforço do que dissemos. Se fosse possível determinar até que ponto eles são ou não são salgados, saberias dizer-me por meio de que faculdade os
examinarias? Não haveria de ser nem com a vista nem com o ouvido, porém com algo diferente.

Teeteto — Sem dúvida: a faculdade que tem por instrumento a língua.

Sócrates — Muito bem. Mas, por qual órgão se exerce a faculdade que te permite conhecer o que há de comum a todas as coisas e às de que nos ocupamos, para que de cada uma possas dizer que é ou não é, e tudo o mais acerca do que há pouco te interroguei? Para isso tudo, que órgão quererás admitir, por meio do qual perceberá as coisas o que em nós percebe?

Teeteto — Referes-te a ser e a não-ser, semelhança e dissemelhança, identidade e diferença, e também à unidade e aos mais números que se lhe aplicam. Evidentemente, tua pergunta abrange, outrossim, o par e o ímpar e tudo o mais que lhes vem no rastro, desejando tu saber por intermédio de que parte do corpo percebemos tudo isso com a alma.

Sócrates — Acompanhas-me admiravelmente bem, Teeteto; foi isso exatamente o que perguntei.

Teeteto — Por Zeus, Sócrates; não sei como responder, salvo dizer que se me afigura não haver um órgão particular para essas noções, como há para as outras. A meu parecer, é a alma sozinha e por si mesma que apreende o que em todas as coisas é comum.

Sócrates — És lindo, Teeteto, não feio, como Teodoro disse há pouco; quem fala desse modo é belo e bom. Além da beleza de tua fala, prestaste-me um excelente serviço com me aliviares de uma exposição prolixa, se te parece realmente que algumas coisas a alma investiga por si mesma, e outras por meio das diferentes faculdades do corpo. Era isso que eu pensava e o que queria que tu também admitisses.

Teeteto — É como vejo essa questão.

Parte XXX

Sócrates — E em qual das duas classes pões o ser? Pois o ser ocorre em tudo.

Teeteto — Na das coisas que a alma procura atingir por si mesma.

Sócrates — Que também abrange o semelhante e o dissemelhante, o idêntico e o diferente?

Teeteto — Sim.

Sócrates — E isto agora: o belo e o feio, o bom e o mau?

Teeteto — No meu modo de pensar, é nessas noções, especialmente, que a alma examina o ser, comparando-as em suas relações recíprocas e com os fatos passados, presentes e futuros.

Sócrates — Pára aí. E não sentirá pelo tacto a dureza do que é duro e a moleza do que é mole?

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — E a essência e dualidade desses fatos, sua oposição recíproca, a essência dessa mesma oposição, não é nossa alma que, voltando a considerá-las e a confrontá-las, procura discernir?

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — Logo, desde o nascimento, tanto os homens como os animais têm o poder de captar as impressões que atingem a alma por intermédio do corpo. Porém relacioná-las com a essência e considerar a sua utilidade, é o que só com tempo, trabalho e estudo conseguemos raros a quem é dada semelhante faculdade.

Teeteto — Perfeitamente.

Sócrates — E poderá atingir a verdade de alguma coisa quem não alcançar a sua essência?

Teeteto — Nunca!

Sócrates — E do que não se alcança a verdade, poder-se-á ter conhecimento?

Teeteto — De que jeito, Sócrates?

Sócrates — Naquelas impressões, por conseguinte, não é que reside o conhecimento, mas no raciocínio a seu respeito; é o único caminho, ao que parece, para atingir a essência e a verdade; de outra forma é impossível.

Teeteto — Claro.

Sócrates — E darás o mesmo nome aos dois processos, já que é tão grande a diferença entre ambos?

Teeteto — Não fora justo.

Sócrates — Então, que nome dás ao primeiro, isto é, ao fato de ver, ouvir, cheirar e sentir frio ou calor?

Teeteto — O de sensação. Qual mais poderia ser?

Sócrates — A tudo isso dás o nome de sensação?

Teeteto — Forçosamente.

Sócrates — Ao que, conforme vimos, não é dado atingir a verdade, por isso mesmo que não nos conduz à essência.

Teeteto — Sem dúvida.

Sócrates — Como não atinge o conhecimento.

Teeteto — Não, de fato.

Sócrates — Sendo assim, Teeteto, não poderão ser a mesma coisa sensação e conhecimento.

Teeteto — Parece mesmo que não, Sócrates. Patenteou-se-nos agora que conhecimento é diferente de sensação.

Sócrates — Porém o fim primordial de nossa análise não visava a determinar o que conhecimento não é, mas o que venha a ser. De qualquer forma, já avançamos o suficiente para não procurá-lo de jeito nenhum na sensação, porém no nome que possa ter a alma quando se ocupa sozinha com o estudo do ser.

Teeteto — Mas isso, Sócrates, segundo creio, chama-se julgar.

Sócrates — Pois tens razão, amigo, em pensar dessa maneira. Retoma o assunto desde o começo, depois de apagar quanto ficou dito, e considera se não vês melhor do ponto em que chegaste. E agora dize mais uma vez que é conhecimento?

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