A Filosofia na História
Como todas as outras criações e instituições humanas, a Filosofia está na História
e tem uma história.
Está na História: a Filosofia manifesta e exprime os problemas e as questões que,
em cada época de uma sociedade, os homens colocam para si mesmos, diante do
que é novo e ainda não foi compreendido. A Filosofia procura enfrentar essa
novidade, oferecendo caminhos, respostas e, sobretudo, propondo novas
perguntas, num diálogo permanente com a sociedade e a cultura de seu tempo, do
qual ela faz parte.
Tem uma história: as respostas, as soluções e as novas perguntas que os filósofos
de uma época oferecem tornam-se saberes adquiridos que outros filósofos
prosseguem ou, freqüentemente, tornam-se novos problemas que outros filósofos
tentam resolver, seja aproveitando o passado filosófico, seja criticando-o e
refutando-o. Além disso, as transformações nos modos de conhecer podem
ampliar os campos de investigação da Filosofia, fazendo surgir novas disciplinas
filosóficas, como também podem diminuir esses campos, porque alguns de seus
conhecimentos podem desligar-se dela e formar disciplinas separadas.
Assim, por exemplo, a Filosofia teve seu campo de atividade aumentado quando,
no século XVIII, surge a filosofia da arte ou estética; no século XIX, a filosofia
da história; no século XX, a filosofia das ciências ou epistemologia, e a filosofia
da linguagem. Por outro lado, o campo da Filosofia diminuiu quando as ciências
particulares que dela faziam parte foram-se desligando para constituir suas
próprias esferas de investigação. É o que acontece, por exemplo, no século
XVIII, quando se desligam da Filosofia a biologia, a física e a química; e, no
século XX, as chamadas ciências humanas (psicologia, antropologia, história).
Pelo fato de estar na História e ter uma história, a Filosofia costuma ser
apresentada em grandes períodos que acompanham, às vezes de maneira mais
próxima, às vezes de maneira mais distante, os períodos em que os historiadores
dividem a História da sociedade ocidental.
Os principais períodos da Filosofia
Filosofia antiga
(do século VI a.C. ao século VI d.C.)
Compreende os quatro grandes períodos da Filosofia greco-romana, indo dos pré-socráticos
aos grandes sistemas do período helenístico, mencionados no capítulo
anterior.
Filosofia patrística
(do século I ao século VII)
Inicia-se com as Epístolas de São Paulo e o Evangelho de São João e termina no
século VIII, quando teve início a Filosofia medieval.
A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo e
João) e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião - o
Cristianismo - com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois somente
com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e
convertê-los a ela. A Filosofia patrística liga-se, portanto, à tarefa religiosa da
evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que
recebia dos antigos.
Divide-se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística latina
(ligada à Igreja de Roma) e seus nomes mais importantes foram: Justino,
Tertuliano, Atenágoras, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São
Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo, Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho,
Beda e Boécio.
A patrística foi obrigada a introduzir idéias desconhecidas para os filósofos
greco-romanos: a ideia de criação do mundo, de pecado original, de Deus como
trindade una, de encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos
e ressurreição dos mortos, etc. Precisou também explicar como o mal pode existir
no mundo, já que tudo foi criado por Deus, que é pura perfeição e bondade.
Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho e Boécio, a ideia de “homem
interior”, isto é, da consciência moral e do livre-arbítrio, pelo qual o homem se
torna responsável pela existência do mal no mundo.
Para impor as ideias cristãs, os Padres da Igreja as transformaram em verdades
reveladas por Deus (através da Bíblia e dos santos) que, por serem decretos
divinos, seriam dogmas, isto é, irrefutáveis e inquestionáveis. Com isso, surge
uma distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e
verdades da razão ou humanas, isto é, entre verdades sobrenaturais e verdades
naturais, as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma
graça divina, superior ao simples conhecimento racional. Dessa forma, o grande
tema de toda a Filosofia patrística é o da possibilidade de conciliar razão e fé, e, a
esse respeito, havia três posições principais:
1. Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão (diziam
eles: “Creio porque absurdo ”).
2. Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé
(diziam eles: “Creio para compreender”).
3. Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada uma
delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturar-se (a razão
se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo; a fé, a
tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura).
Filosofia medieval
(do século VIII ao século XIV).
Abrange pensadores europeus, árabes e judeus. É o período em que a Igreja
Romana dominava a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à Terra
Santa e criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. E, a
partir do século XII, por ter sido ensinada nas escolas, a Filosofia medieval
também é conhecida com o nome de Escolástica.
A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles,
embora o Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatônico (vindo da
Filosofia de Plotino, do século VI d.C.), e o Aristóteles que conhecessem fosse
aquele conservado e traduzido pelos árabes, particularmente Avicena e Averróis.
Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística, a Filosofia
medieval acrescentou outros - particularmente um, conhecido com o nome de
Problema dos Universais - e, além de Platão e Aristóteles, sofreu uma grande
influência das idéias de Santo Agostinho. Durante esse período surge
propriamente a Filosofia cristã, que é, na verdade, a teologia. Um de seus temas
mais constantes são as provas da existência de Deus e da alma, isto é,
demonstrações racionais da existência do infinito criador e do espírito humano
imortal.
A diferença e separação entre infinito (Deus) e finito (homem, mundo), a
diferença entre razão e fé (a primeira deve subordinar-se à segunda), a diferença
e separação entre corpo (matéria) e alma (espírito), O Universo como uma
hierarquia de seres, onde os superiores dominam e governam os inferiores (Deus,
arcanjos, anjos, alma, corpo, animais, vegetais, minerais), a subordinação do
poder temporal dos reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos: eis os
grandes temas da Filosofia medieval.
Outra característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado para
expor as idéias filosóficas, conhecida como disputa: apresentava-se uma tese e
esta devia ser ou refutada ou defendida por argumentos tirados da Bíblia, de
Aristóteles, de Platão ou de outros Padres da Igreja.
Assim, uma ideia era considerada uma tese verdadeira ou falsa dependendo da
força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores. Por causa
desse método de disputa - teses, refutações, defesas, respostas, conclusões
baseadas em escritos de outros autores -, costuma-se dizer que, na Idade Média, o
pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma ideia considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida (Bíblia, Platão, Aristóteles, um papa, um santo).
Os teólogos medievais mais importantes foram: Abelardo, Duns Scoto, Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Guilherme de Ockham, Roger Bacon, São Boaventura. Do lado árabe: Avicena, Averróis, Alfarabi e Algazáli. Do lado judaico: Maimônides, Nahmanides, Yeudah bem Levi.
Filosofia da Renascença
(do século XIV ao século XVI)
É marcada pela descoberta de obras de Platão desconhecidas na Idade Média, de novas obras de Aristóteles, bem como pela recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e romanos.
São três as grandes linhas de pensamento que predominavam na Renascença:
1. Aquela proveniente de Platão, do neoplatonismo e da descoberta dos livros do
Hermetismo; nela se destacava a ideia da Natureza como um grande ser vivo; o
homem faz parte da Natureza como um microcosmo (como espelho do Universo
inteiro) e pode agir sobre ela através da magia natural, da alquimia e da
astrologia, pois o mundo é constituído por vínculos e ligações secretas (a
simpatia) entre as coisas; o homem pode, também, conhecer esses vínculos e
criar outros, como um deus.
2. Aquela originária dos pensadores florentinos, que valorizava a vida ativa, isto
é, a política, e defendia os ideais republicanos das cidades italianas contra o
Império Romano-Germânico, isto é, contra o poderio dos papas e dos
imperadores. Na defesa do ideal republicano, os escritores resgataram autores
políticos da Antiguidade, historiadores e juristas, e propuseram a “imitação dos
antigos” ou o renascimento da liberdade política, anterior ao surgimento do
império eclesiástico.
3. Aquela que propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio destino,
tanto através dos conhecimentos (astrologia, magia, alquimia), quanto através da
política (o ideal republicano), das técnicas (medicina, arquitetura, engenharia,
navegação) e das artes (pintura, escultura, literatura, teatro).
A efervescência teórica e prática foi alimentada com as grandes descobertas
marítimas, que garantiam ao homem o conhecimento de novos mares, novos
céus, novas terras e novas gentes, permitindo-lhe ter uma visão crítica de sua
própria sociedade. Essa efervescência cultural e política levou a críticas
profundas à Igreja Romana, culminando na Reforma Protestante, baseada na
ideia de liberdade de crença e de pensamento. À Reforma a Igreja respondeu com
a Contra-Reforma e com o recrudescimento do poder da Inquisição.
Os nomes mais importantes desse período são: Dante, Marcílio Ficino, Giordano
Bruno, Campannella, Maquiavel, Montaigne, Erasmo, Tomás Morus, Jean
Bodin, Kepler e Nicolau de Cusa.
Filosofia moderna
(do século XVII a meados do século XVIII)
Esse período, conhecido como o Grande Racionalismo Clássico, é marcado por
três grandes mudanças intelectuais:
1. Aquela conhecida como o “surgimento do sujeito do conhecimento”, isto é, a
Filosofia, em lugar de começar seu trabalho conhecendo a Natureza e Deus, para
depois referir-se ao homem, começa indagando qual é a capacidade do intelecto
humano para conhecer e demonstrar a verdade dos conhecimentos. Em outras
palavras, a Filosofia começa pela reflexão, isto é, pela volta do pensamento sobre
si mesmo para conhecer sua capacidade de conhecer.
O ponto de partida é o sujeito do conhecimento como consciência de si reflexiva,
isto é, como consciência que conhece sua capacidade de conhecer. O sujeito do
conhecimento é um intelecto no interior de uma alma, cuja natureza ou
substância é completamente diferente da natureza ou substância de seu corpo e
dos demais corpos exteriores.
Por isso, a segunda pergunta da Filosofia, depois de respondida a pergunta sobre
a capacidade de conhecer, é: Como o espírito ou intelecto pode conhecer o que é
diferente dele? Como pode conhecer os corpos da Natureza?
2. A resposta à pergunta acima constituiu a segunda grande mudança intelectual
dos modernos, e essa mudança diz respeito ao objeto do conhecimento. Para os
modernos, as coisas exteriores (a Natureza, a vida social e política) podem ser
conhecidas desde que sejam consideradas representações, ou seja, idéias ou
conceitos formulados pelo sujeito do conhecimento.
Isso significa, por um lado, que tudo o que pode ser conhecido deve poder ser
transformado num conceito ou numa ideia clara e distinta, demonstrável e
necessária, formulada pelo intelecto; e, por outro lado, que a Natureza e a
sociedade ou política podem ser inteiramente conhecidas pelo sujeito, porque
elas são inteligíveis em si mesmas, isto é, são racionais em si mesmas e
propensas a serem representadas pelas idéias do sujeito do conhecimento.
3. Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional e que pode ser
plenamente captada pelas idéias e conceitos preparou a terceira grande mudança
intelectual moderna. A realidade, a partir de Galileu, é concebida como um
sistema racional de mecanismos físicos, cuja estrutura profunda e invisível é
matemática. O “livro do mundo”, diz Galileu, “está escrito em caracteres
matemáticos.”
A realidade, concebida como sistema racional de mecanismos físicomatemáticos,
deu origem à ciência clássica, isto é, à mecânica, por meio da qual
são descritos, explicados e interpretados todos os fatos da realidade: astronomia,
física, química, psicologia, política, artes são disciplinas cujo conhecimento é de
tipo mecânico, ou seja, de relações necessárias de causa e efeito entre um agente
e um paciente.
A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem ser
conhecidas e transformadas pelo homem. Nasce a ideia de experimentação e de
tecnologia (conhecimento teórico que orienta as intervenções práticas) e o ideal
de que o homem poderá dominar tecnicamente a Natureza e a sociedade.
Predomina, assim, nesse período, a ideia de conquista científica e técnica de toda
a realidade, a partir da explicação mecânica e matemática do Universo e da
invenção das máquinas, graças às experiências físicas e químicas.
Existe também a convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem,
as causas e os efeitos das paixões e das emoções e, pela vontade orientada pelo
intelecto, é capaz de governá-las e dominá-las, de sorte que a vida ética pode ser
plenamente racional.
A mesma convicção orienta o racionalismo político, isto é, a ideia de que a razão
é capaz de definir para cada sociedade qual o melhor regime político e como
mantê-lo racionalmente.
Nunca mais, na história da Filosofia, haverá igual confiança nas capacidades e
nos poderes da razão humana como houve no Grande Racionalismo Clássico. Os
principais pensadores desse período foram: Francis Bacon, Descartes, Galileu,
Pascal, Hobbes, Espinosa, Leibniz, Malebranche, Locke, Berkeley, Newton,
Gassendi.
Filosofia da Ilustração ou Iluminismo (meados do século XVIII ao começo
do século XIX)
Esse período também crê nos poderes da razão, chamada de As Luzes (por isso,
o nome Iluminismo). O Iluminismo afirma que:
► pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política
(a Filosofia da Ilustração foi decisiva para as idéias da Revolução Francesa de
1789);
► a razão é capaz de evolução e progresso, e o homem é um ser perfectível. A
perfectibilidade consiste em liberar-se dos preconceitos religiosos, sociais e
morais, em libertar-se da superstição e do medo, graças as conhecimento, às
ciências, às artes e à moral;
► o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações, que vão
das mais atrasadas (também chamadas de “primitivas” ou “selvagens ”) às mais
adiantadas e perfeitas (as da Europa Ocidental);
► há diferença entre Natureza e civilização, isto é, a Natureza é o reino das
relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e imutáveis,
enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade proposta pela
vontade livre dos próprios homens, em seu aperfeiçoamento moral, técnico e
político.
Nesse período há grande interesse pelas ciências que se relacionam com a idéia
de evolução e, por isso, a biologia terá um lugar central no pensamento ilustrado,
pertencendo ao campo da filosofia da vida. Há igualmente grande interesse e
preocupação com as artes, na medida em que elas são as expressões por
excelência do grau de progresso de uma civilização.
Data também desse período o interesse pela compreensão das bases econômicas
da vida social e política, surgindo uma reflexão sobre a origem e a forma das
riquezas das nações, com uma controvérsia sobre a importância maior ou menor
da agricultura e do comércio, controvérsia que se exprime em duas correntes do
pensamento econômico: a corrente fisiocrata (a agricultura é a fonte principal das
riquezas) e a mercantilista (o comércio é a fonte principal da riqueza das nações).
Os principais pensadores do período foram: Hume, Voltaire, D’Alembert,
Diderot, Rousseau, Kant, Fichte e Schelling (embora este último costume ser
colocado como filósofo do Romantismo).
Filosofia contemporânea
Abrange o pensamento filosófico que vai de meados do século XIX e chega aos
nossos dias. Esse período, por ser o mais próximo de nós, parece ser o mais
complexo e o mais difícil de definir, pois as diferenças entre as várias filosofias
ou posições filosóficas nos parecem muito grandes porque as estamos vendo
surgir diante de nós.
Referência
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 6.ed. São Paulo, Ática,1997. p. 43-48
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