A palavra filosofia
Φιλοσοφία
A palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo
deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais.
Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sábio.
Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber.
Filósofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.
Assim, filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja
o conhecimento, o estima, o procura e o respeita.
Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de
Cristo) a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria
plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou
amá-la, tornando-se filósofos.
Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos (a
festa mais importante da Grécia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali
estando apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com as
disputas e os torneios; as que iam para competir, isto é, os atletas e artistas (pois,
durante os jogos também havia competições artísticas: dança, poesia, música,
teatro); e as que iam para contemplar os jogos e torneios, para avaliar o
desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de
pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo.
Com isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses
comerciais - não coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser
comprada e vendida no mercado; também não é movido pelo desejo de competir
- não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer
competidores ou “atletas intelectuais”; mas é movido pelo desejo de observar,
contemplar, julgar e avaliar as coisas, as ações, a vida: em resumo, pelo desejo de saber. A verdade não pertence a ninguém, ela é o que buscamos e que está diante
de nós para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do espírito) para vê -la.
A Filosofia é grega
A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e
sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de
suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio
pensamento, é um fato tipicamente grego.
Evidentemente, isso não quer dizer, de modo algum, que outros povos, tão
antigos quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes,
os persas, os hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam
sabedoria, pois possuíam e possuem. Também não quer dizer que todos esses
povos não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da
Natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.
Quando se diz que a Filosofia é um fato grego, o que se quer dizer é que ela
possui certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os
pensamentos, estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, o
pensamento, a ação, as técnicas, que são completamente diferentes das
características desenvolvidas por outros povos e outras culturas.
Vejamos um exemplo. Os chineses desenvolveram um pensamento muito
profundo sobre a existência de coisas, seres e ações contrários ou opostos, que
formam a realidade. Deram às oposições o nome de dois princípios: Yin e Yang.
Yin é o princípio feminino passivo na Natureza, representado pela escuridão, o
frio e a umidade; Yang é o princípio masculino ativo na Natureza, representado
pela luz, o calor e o seco. Os dois princípios se combinam e formam todas as
coisas, que, por isso, são feitas de contrários ou de oposições. O mundo, portanto,
é feito da atividade masculina e da passividade feminina.
Tomemos agora um filósofo grego, por exemplo, o próprio Pitágoras. Que diz
ele? Que a Natureza é feita de um sistema de relações ou de proporções
matemáticas produzidas a partir da unidade (o número 1 e o ponto), da oposição
entre os números pares e ímpares, e da combinação entre as superfícies e os
volumes (as figuras geométricas), de tal modo que essas proporções e
combinações aparecem para nossos órgãos dos sentidos sob a forma de
qualidades contrárias: quente-frio, seco-úmido, áspero-liso, claro-escuro, grande-pequeno,
doce-amargo, duro-mole, etc. Para Pitágoras, o pensamento alcança a
realidade em sua estrutura matemática, enquanto nossos sentidos ou nossa
percepção alcançam o modo como a estrutura matemática da Natureza aparece
para nós, isto é, sob a forma de qualidades opostas.
Qual a diferença entre o pensamento chinês e o do filósofo grego?
O pensamento chinês toma duas características (masculino e feminino) existentes
em alguns seres (os animais e os humanos) e considera que o Universo inteiro é feito da oposição entre qualidades atribuídas a dois sexos diferentes, de sorte que
o mundo é organizado pelo princípio da sexualidade animal ou humana.
O pensamento de Pitágoras apanha a Natureza numa generalidade muito mais
ampla do que a sexualidade própria a alguns seres da Natureza, e faz distinção
entre as qualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisível da
Natureza, que, para ele, é de tipo matemático e alcançada apenas pelo intelecto,
ou inteligência.
São diferenças desse tipo, além de muitas outras, que nos levam a dizer que
existe uma sabedoria chinesa, uma sabedoria hindu, uma sabedoria dos índios,
mas não há filosofia chinesa, filosofia hindu ou filosofia indígena.
Em outras palavras, Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos
que surgiu especificamente com os gregos e que, por razões históricas e políticas,
tornou-se, depois, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada
cultura européia ocidental da qual, em decorrência da colonização portuguesa do
Brasil, nós também participamos.
Através da Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os
princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética,
política, técnica, arte.
Aliás, basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política,
monarquia, anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, cronologia, gênese,
genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmácia, entre muitas outras, são
palavras gregas, para percebermos a influência decisiva e predominante da
Filosofia grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades
europeias ocidentais.
É por isso que, em decorrência do predomínio da economia capitalista criada
pelo Ocidente e que impõe um certo tipo de desenvolvimento das ciências e das
técnicas, falamos, por exemplo, em “ocidentalização dos chineses”,
“ocidentalização dos árabes”, etc. Com isso queremos significar que modos de
pensar e de agir, criados no Ocidente pela Filosofia grega, foram incorporados
até mesmo por culturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a
Filosofia.
É pelo mesmo motivo que falamos em “orientalismos” e “orientalistas” para
indicar pessoas que buscam no budismo, no confucionismo, no Yin e no Yang,
nos mantras, nas pirâmides, nas auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e
de explicar a realidade, a Natureza, a vida e as ações humanas que não são
próprias ou específicas do Ocidente, isto é, são diferentes do padrão de
pensamento e de explicação que foram criados pelos gregos a partir do século
VII antes de Cristo, época em que nasce a Filosofia.
O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu
Por causa da colonização européia das Américas, nós também fazemos parte -
ainda que de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assim
também somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o
pensamento ocidental europeu.
Desse legado, podemos destacar como principais contribuições as seguintes:
► A ideia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e
universais, isto é, os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por
exemplo, graças aos gregos, no século XVII da nossa era, o filósofo inglês Isaac
Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da Natureza.
A lei da gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação de um outro,
produz uma reação igual e contrária, que pode ser calculada usando como
elementos do cálculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que
a ação e a reação se deram.
Essa lei é necessária, isto é, nenhum corpo do Universo escapa dela e pode
funcionar de outra maneira que não desta; e esta lei é universal , isto é, válida
para todos os corpos em todos os tempos e lugares.
Um outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme
demonstraram os filósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em
Tóquio em 1993, em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em São Paulo
em 1792, em Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do
triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas.
► A ideia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser
plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos
misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas são
conhecimentos que o pensamento humano, por sua própria força e capacidade,
pode alcançar.
► A ideia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis, regras e
normas universais e necessárias, segundo as quais podemos distinguir o
verdadeiro do falso. Em outras palavras, a idéia de que o nosso pensamento é
lógico ou segue leis lógicas de funcionamento.
Nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na
afirmação, atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que
“Sócrates é um ser humano ”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação,
retiramos alguma coisa de outra (quando dizemos “este caderno não é verde”,
estamos retirando do caderno a cor verde).
Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa. Se
alguém apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates
é homem. Logo, Sócrates é mortal ”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal” é verdadeira, porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem
verdadeiras.
► A ideia de que as práticas humanas, isto é, a ação moral, a política, as técnicas
e as artes dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, da nossa
escolha passional (ou emocional) ou racional, de nossas preferências, segundo
certos valores e padrões, que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e
não por imposições misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido feitas
por forças secretas, invisíveis, sejam elas divinas ou naturais, e impossíveis de
serem conhecidas.
► A ideia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque
obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser
contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberações dos
homens, em condições determinadas.
Dessa forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela
caia natural e necessariamente; um ser humano anda porque as leis anatômicas e
fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários
para a locomoção.
No entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabeça de um passante, esse
acontecimento é contingente ou acidental. Por quê? Porque, se o passante não
estivesse andando por ali naquela hora, a pedra não o atingiria. Assim, a queda da
pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário, mas que uma pedra
caia sobre minha cabeça quando ando é inteiramente contingente ou acidental.
Todavia, é muito diferente a situação das ações humanas. É verdade que é por
uma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas é por
deliberação voluntária que ando para ir à escola em vez de andar para ir ao
cinema, por exemplo. É verdade que é por uma lei necessária da Natureza que os
corpos pesados caem, mas é por uma deliberação humana e por uma escolha
voluntária que fabrico uma bomba, a coloco num avião e a faço despencar sobre
Hiroshima.
Um dos legados mais importantes da Filosofia grega é, portanto, essa diferença
entre o necessário e o contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo - “tudo
é necessário, temos que nos conformar e nos resignar ” -, mas também evitar a
ilusão de que podemos tudo quanto quisermos, se alguma força extranatural ou
sobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessárias que podemos
conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos.
► A ideia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento
verdadeiro, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem
agem cegamente, mas criam valores pelo quais dão sentido às suas vidas e às
suas ações.
A Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a
realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram a
fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os
seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e
as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria
razão é capaz de conhecer-se a si mesma.
Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos
humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por
divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por
todos, através da razão, que é a mesma em todos; quando se descobriu que tal
conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da
verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada
ou transmitida a todos.
Referência:
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 6.ed. São Paulo,
Ática,1997. p. 19-23
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