ACESSE O ARQUIVO DO BLOG
FILOPARANAVAÍ

domingo, 4 de abril de 2010

DISCURSO DO MÉTODO de René DESCARTES_ Partes 4,5 e 6

Counter

DISCURSO DO MÉTODO





DISCURSO DO MÉTODO Tradução de: Enrico Corvisieri
PARTES IV, V e VI

-
QUARTA PARTE
-
NÃO ESTOU SEGURO se deva falar-vos a respeito das primeiras meditações que aí realizei; já que por serem tão metafísicas e tão incomuns, é possível que não serão apreciadas por todos. 


Contudo, para que seja possível julgar se os fundamentos que escolhi são suficientemente firmes, vejo-me, de alguma forma, obrigado a falar-vos delas. 

Havia bastante tempo observara que, no que concerne aos costumes, é às vezes preciso seguir opiniões, que sabemos serem muito duvidosas, como se não admitissem dúvidas, conforme já foi dito acima; porém, por desejar então dedicar-me apenas a pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável. 

Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. 

E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. 

E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem também ocorrer enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso, que seja correto, decidi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos. Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. 

E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava. 

Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. 

De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é. 

Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. 

E, ao perceber que nada há no eu penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente. 

Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que, por conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidência, que devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais perfeita. 

No que se refere aos pensamentos que eu formulava sobre muitas outras coisas fora de mim, como a respeito do céu, da Terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão difícil saber de onde vinham, porque, não notando neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia julgar que, se fossem verdadeiros, seriam dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma perfeição; e se não o eram, que eu os formulava a partir do nada, ou seja, que existiam em mim pelo que eu possuía de falho. 

Mas não podia ocorrer o mesmo com a ideia de um ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era evidentemente impossível; e, visto que não é menos repulsiva a ideia de que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. 

De maneira que restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e que possuísse todas as perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, ou seja, para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus. 

A isso acrescentei que, admitido que conhecia algumas perfeições que eu não tinha, não era o único ser que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns termos da Escola); mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. 

Pois, se eu fosse sozinho e independente de qualquer outro, de maneira que tivesse recebido, de mim próprio, todo esse pouco mediante o qual participava do Ser perfeito, poderia receber de mim, pelo mesmo motivo, todo o restante que sabia faltar-me, e ser assim eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as perfeições que podia perceber existirem em Deus. 

Pois, de acordo com os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente considerar, a respeito de todas as coisas de que encontrava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e tinha certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam. 

Dessa forma, eu notava que a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas parecidas não podiam existir nele, porque eu mesmo apreciaria muito ser desprovido delas. 

Ademais, eu tinha idéias acerca de muitas coisas sensíveis e corporais; pois, apesar de presumir que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso, não podia negar, não obstante, que as idéias a respeito não existissem verdadeiramente em meu pensamento; porém, por já haver reconhecido em mim com bastante clareza que a natureza inteligente é distinta da corporal, considerando que toda a composição testemunha dependência, e que a dependência é evidentemente uma falha, julguei a partir disso que não podia ser uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, em conseqüência, Ele não o era, mas que, se existiam alguns corpos no mundo, ou então algumas inteligências, ou outras naturezas, que não fossem totalmente perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal maneira que não pudessem subsistir sem Ele por um único instante. 

Em seguida a isso, eu quis procurar outras verdades, e tendo-me estabelecido o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo, ou um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os geômetras conjeturam tudo isto em seu objeto, examinava algumas de suas demonstrações mais simples. 

E, ao perceber que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se alicerça somente no fato de serem concebidas com evidência, segundo a regra que há pouco manifestei, notei também que nada existia nelas que me garantisse a existência de seu objeto. 

Pois, por exemplo, eu percebia muito bem que, ao imaginar um triângulo, fazia-se necessário que seus três ângulos fossem iguais a dois retos; porém, malgrado isso, nada via que garantisse existir no mundo qualquer triângulo. Enquanto, ao voltar a examinar a ideia que eu tinha de um Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma maneira que na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe quanto seria qualquer demonstração de geometria. 

Mas o que leva muitas pessoas a se convencerem de que é difícil conhecê-lo, e também em conhecer o que é sua alma, é o fato de nunca alçarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma habituadas a nada considerar exceto na imaginação, que é uma maneira de pensar particular às coisas materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível. 

E isto é bastante evidente pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima, nas escolas, que nada existe no entendimento que não haja estado primeiramente nos sentidos, onde, contudo, é certo que as idéias de Deus e da alma nunca estiveram. 

E me parece que todos aqueles que querem usar a imaginação para compreendê-las se comportam da mesma maneira que se, para ouvir os sons ou sentir os odores, quisessem utilizar-se dos olhos; salvo com esta diferença: que o sentido da visão não nos assegura menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audição; enquanto a nossa imaginação ou os nossos sentidos jamais poderiam garantir-nos coisa alguma, se o nosso juízo não interviesse. 

Afinal, se ainda há homens que não estejam totalmente convencidos da existência de Deus e da alma, com as razões que apresentei, quero que saibam que todas as outras coisas, a respeito das quais se consideram talvez certificados, como a de possuírem um corpo, existirem astros e a Terra, e coisas parecidas, são ainda menos certas. 


Pois, apesar de se ter dessas coisas uma certeza moral, que é de tal ordem que, salvo sendo-se extravagante, parece impossível colocá-la em dúvida; contudo, ao que concerne à certeza metafísica, não se pode negar, a não ser que não tenhamos bom senso, que é motivo suficiente para não possuirmos total segurança a respeito, o fato de observarmos que podemos da mesma maneira imaginar, ao estarmos dormindo, que temos outro corpo, que vemos outros astros e outra Terra, sem que isso seja verdade. 

Pois, de onde sabemos que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos verdadeiros do que os outros, se muitos, com freqüência, não são menos vivos e nítidos? E, mesmo que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes agradar, não acredito que possam oferecer alguma razão que seja suficiente para dirimir essa dúvida, se não presumirem a existência de Deus. 

Pois, em princípio, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, ou seja, que as coisas que concebemos bastante evidente e distintamente são todas verdadeiras, não é correto a não ser porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós se origina dele. 

De onde se conclui que as nossas idéias ou noções, por serem coisas reais e oriundas de Deus em tudo em que são evidentes e distintas, só podem por isso ser verdadeiras. 

De maneira que, se temos muitas vezes outras que contêm falsidade, só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro, porque nisso participam do nada, ou seja, são assim confusas em nós porque nós não somos totalmente perfeitos. 

E é evidente que não causa menos aversão admitir que a falsidade ou a imperfeição se originam de Deus, como tal, do que admitir que a verdade ou a perfeição se originem do nada. 

Porém, se não soubéssemos de maneira alguma que tudo quanto existe em nós de real e verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem nossas idéias, não teríamos razão alguma que nos garantisse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras. 

Depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha dado a certeza dessa regra, é muito fácil compreender que os sonhos que imaginamos quando dormimos não devem, de forma alguma, levar-nos a duvidar da verdade dos pensamentos que nos ocorrem quando despertos. 

Pois, se sucedesse que, mesmo dormindo, tivéssemos alguma ideia muito distinta, como, por exemplo, que um geômetra criasse qualquer nova demonstração, o sono deste não a impediria de ser verdadeira. 

E, quanto ao equívoco mais recorrente de nossos sonhos, que consiste em nos representarem vários objetos tal como fazem nossos sentidos exteriores, não importa que ele nos dê a oportunidade de desconfiar da verdade de tais idéias, porque estas também podem nos enganar repetidas vezes, sem que estejamos dormindo, como ocorre quando os que têm icterícia vêem tudo da cor amarela, ou quando os astros ou outros corpos extremamente distantes de nós se nos afiguram muito menores do que são. 

Pois, enfim, quer estejamos despertos, quer dormindo, jamais devemos nos deixar convencer exceto pela evidência de nossa razão. 

E deve-se observar que eu digo de nossa razão, de maneira alguma de nossa imaginação ou de nossos sentidos. Porque, apesar de enxergarmos o sol bastante claramente, não devemos julgar por isso que ele seja do tamanho que o vemos; e bem podemos imaginar distintamente uma cabeça de leão enxertada no corpo de uma cabra, sem que tenhamos de concluir, por isso, que no mundo existe uma quimera; pois a razão não nos sugere que tudo quanto vemos ou imaginamos seja verdadeiro, mas nos sugere realmente que todas as nossas idéias ou noções devem conter algum fundamento de verdade; pois não seria possível que Deus, que é todo perfeito e verídico, as tivesse colocado em nós sem isso. 


E, pelo fato de nossos raciocínios nunca serem tão evidentes nem tão completos durante o sono como durante a vigília, apesar de que às vezes nossas imaginações sejam tanto ou mais vivas e patentes, ela nos sugere também que, não podendo nossos pensamentos serem totalmente verdadeiros, porque não somos totalmente perfeitos, tudo o que eles contêm de verdade deve encontrar-se inevitavelmente naquele que temos quando despertos, mais do que em nossos sonhos. 

QUINTA PARTE
SERIA DE MUITO meu agrado continuar e expor aqui toda a cadeia de outras verdades que deduzi dessas primeiras. 

Porém, suposto que, para tal realização, seria agora necessário que abordasse muitas questões controvertidas entre os eruditos, dos quais não desejo atrair a inimizade, acredito que será melhor que eu me abstenha e apenas diga, em geral, quais elas são, para deixar que os mais sábios julguem se seria útil que o público fosse mais especificamente informado a esse respeito. 

Continuava sempre firme na decisão que tomara de não presumir nenhum outro princípio, salvo aquele de que acabo de me servir para provar a existência de Deus e da alma, e de não aceitar coisa alguma por verdadeira que não se me afigurasse mais clara e mais correta do que se me haviam afigurado anteriormente as demonstrações dos geômetras. 

Contudo, atrevo-me a afirmar que não apenas encontrei modo de me satisfazer em pouco tempo no tocante a todas as mais importantes dificuldades que costumam ser enfrentadas na filosofia, mas também que percebi certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, após meditar bastante acerca delas, não poderíamos pôr em dúvida que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo. 

Em seguida, atentando para a seqüência dessas leis, creio haver descoberto muitas verdades mais úteis e mais importantes do que tudo quanto aprendera até então, ou mesmo esperava aprender. 

Porém, posto que tentei explicar as principais num tratado que certas considerações me impedem de publicar, não poderia fazê-las conhecer melhor do que explicando aqui, resumidamente, o que ele contém. 

Eu pleiteava, antes de escrevê-lo, incluir nele tudo o que julgava saber a respeito da natureza das coisas materiais. Contudo, tal qual os pintores que, não conseguindo representar igualmente bem numa tela plana todas as diversas faces de um corpo sólido, escolhem uma das principais, que põem à luz, e, sombreando as outras, só as fazem aparecer tanto quanto se possa vê-las ao olhar aquela; receando dessa forma, não colocar em meu discurso tudo o que havia em meu pensamento, tentei apenas expor bem amplamente o que concebia da luz; depois, na ocasião propícia, acrescentar alguma coisa a respeito do sol e das estrelas fixas, porque a luz provém quase inteiramente deles; a respeito dos céus, porque a transmitem; a respeito dos planetas, dos cometas e da Terra, porque a refletem; e, em particular, a respeito de todos os corpos que existem sobre a Terra, porque são ou coloridos, ou transparentes, ou brilhantes; e, por fim, a respeito do homem, porque é o seu espectador. 

Também, para sombrear um pouco todas essas coisas e poder dizer mais livremente o que pensava acerca delas, sem ser obrigado a seguir nem a desaprovar as opiniões aceitas entre os eruditos, decidi deixar todo esse mundo às suas disputas, e a falar apenas do que aconteceria num novo se Deus criasse agora em qualquer parte, nos espaços imaginários, suficiente matéria para compô-lo, e se agitasse de maneira diferente, e sem ordem, as diferentes partes desta matéria, de forma que compusesse com ela um caos tão tumultuado quanto os poetas possam nos fazer acreditar, e que, em seguida, não fizesse outra coisa a não ser prestar o seu concurso comum à natureza, e deixá -la agir conforme as leis por ele estabelecidas. 

Assim, em primeiro lugar, descrevi essa matéria e tentei representá-la de tal maneira que nada existe no mundo, parece-me, mais claro nem mais inteligível, salvo o que há pouco foi dito a respeito de Deus e da alma; pois presumi claramente que não havia nela nenhuma dessas formas ou qualidades a respeito das quais se discute nas escolas, nem, de modo geral, qualquer coisa cujo conhecimento não fosse tão natural às nossas almas que não se pudesse fingir ignorá-la. 

Ademais, mostrei quais eram as leis da natureza; e, sem alicerçar minhas razões em nenhum outro princípio, exceto no das perfeições infinitas de Deus, tentei provar todas aquelas que pudessem provocar alguma dúvida e mostrar que elas são tais que, ainda que Deus tivesse criado muitos mundos, não poderia haver um só em que deixassem de ser observadas. 

Depois disso, mostrei como a maior parte da matéria desse caos devia, como conseqüência dessas leis, dispor-se e arranjar-se de uma certa maneira que a torna semelhante aos nossos céus; como, contudo, algumas de suas partes deviam compor uma Terra, alguns dos planetas e cometas, e outras, um sol e estrelas fixas. 

Neste ponto, estendendo-me acerca do tema da luz, expliquei detidamente qual era a que se devia encontrar no sol e nas estrelas, e de que maneira, a partir daí, atravessava num instante os incomensuráveis espaços dos céus, e de que forma se refletia dos planetas e dos cometas para a Terra. 

Acrescentei a isso também várias coisas relativas à substância, posição, movimentos e todas as várias qualidades desses céus e desses astros; de maneira que pensava ter dito o suficiente a respeito, para fazer compreender que nada se percebe nos deste mundo que não devesse, ou ao menos não pudesse, parecer semelhante nos do mundo que eu descrevia. 

Daí me pus a falar especificamente acerca da Terra: como, apesar de haver claramente estabelecido que Deus não colocara peso algum na matéria de que ela era formada, todas as suas partes não deixavam de propender exatamente para o seu centro; como, existindo água e ar em sua superfície, a disposição dos céus e dos astros, especialmente da lua, devia nela causar um fluxo e refluxo, que fosse semelhante, em todas as suas circunstâncias, ao que se observa nos nossos mares; e, além disso, certo curso, tanto da água como do ar, do levante para o poente, tal como se observa também entre os trópicos; como as montanhas, os mares, as fontes e os rios podiam naturalmente formar-se nela, e os metais surgirem nas minas, e as plantas crescerem nos campos, e em geral todos os corpos denominados mistos ou compostos serem nela gerados. 

E entre outras coisas, já que além dos astros nada conheço no mundo, exceto o fogo, que produza a luz, dediquei-me a explicar com bastante clareza tudo o que pertence à sua natureza, de que maneira ele se origina, como se alimenta; como, às vezes, só há calor sem luz, e outras vezes, luz sem calor; como pode introduzir várias cores em vários corpos e numerosas outras qualidades; como funde uns e endurece outros; como os pode consumir a quase todos ou transformar em cinzas e em fumo; e, por fim, como dessas cinzas, apenas pela força de sua ação, produz o vidro; pois, ao considerar essa transmutação de cinzas em vidro tão assombrosa como nenhuma outra que se realize na natureza, proporcionou-me especial prazer descrevê-la. 

Contudo, não desejava inferir, de todas essas coisas, que este mundo houvesse sido criado da forma como propunha; pois é muito mais provável que, desde o início, Deus o tenha tomado tal como devia ser. Mas é certo, e é uma opinião geralmente adotada pelos teólogos, que a ação mediante a qual ele agora o conserva é exatamente igual àquela mediante a qual o criou: de forma que, apesar de não lhe haver dado, no início, outra forma a não ser a do caos, desde quando, tendo instituído as leis da natureza, tenha lhe prestado seu concurso, para ela agir assim como costuma, pode-se crer, sem nenhum prejuízo para o milagre da criação, que apenas por isso todas as coisas que são genuinamente materiais poderiam, ao longo do tempo, converter-se em tais como as vemos atualmente. E sua natureza é muito mais fácil de ser compreendida quando as vemos nascer pouco a pouco desta forma do que quando já as consideramos totalmente concluídas. 

Da descrição dos corpos inanimados e das plantas, passei à dos animais e especificamente à dos homens. 

Porém, como ainda não possuía suficiente conhecimento para falar a respeito deles no mesmo estilo que do resto, ou seja, demonstrando os efeitos a partir das causas, e mostrando de quais sementes e de que modo a natureza deve produzi-los, satisfiz-me em imaginar que Deus formasse o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto no aspecto exterior de seus membros como na conformação interior de seus órgãos, sem compô-lo de outra matéria exceto aquela que eu descrevera, e sem colocar nele, no início, alma racional alguma, nem qualquer outra coisa para servir-lhe de alma vegetativa ou sensitiva, mas sim avivasse em seu coração um desses fogos sem luz que eu já explicara, e que não concebia outra natureza a não ser a que aquece o feno quando o guardam antes de estar seco, ou a que faz ferver os vinhos novos quando fermentam sobre o bagaço. 

Pois, examinando as funções que, por causa disso, podiam se encontrar neste corpo, achava exatamente todas as que podem estar em nós sem que o pensemos, nem, como conseqüência que a nossa alma, isto é, essa parte distinta do corpo cuja função, como já foi dito mais acima, é apenas a de pensar, para tal contribua, e que são todas as mesmas, o que consente dizer que os animais sem razão se nos assemelham, sem que eu possa encontrar para isso nenhuma daquelas razões que, por dependerem do pensamento, são as únicas que nos pertencem enquanto homens, enquanto encontrava a todas em seguida, ao presumir que Deus criara uma alma racional e que a juntara a esse corpo de uma certa maneira que descrevia. Porém, para que se possa ver de que modo eu lidava com esta matéria, quero mostrar aqui a explicação do movimento do coração e das artérias, o qual, sendo o primeiro e o mais geral que se observa nos animais, consentirá julgar com facilidade, a partir dele, o que se deve pensar de todos os outros. 

E, para que seja mais fácil entender o que vou dizer a esse respeito, desejaria que todos os que não são peritos em anatomia se dessem ao trabalho, antes de ler isto, de mandar cortar diante deles o coração de um grande animal que possua pulmões, já que é em tudo parecido com o do homem, e que peçam para ver as duas câmaras ou concavidades nele existentes. 

Primeiramente, a que está no lado direito, na qual se ligam dois tubos muito largos: a veia cava, que é o principal receptáculo do sangue, como o tronco da árvore da qual todas as outras veias do corpo são ramos; e a veia arteriosa, que foi assim indevidamente denominada, pois em verdade se trata de uma artéria, a qual, originando-se do coração, se divide, após sair dele, em muitos ramos que vão espalhar-se nos pulmões. 

Depois, a que se encontra no lado esquerdo, na qual se ligam, de igual maneira, dois tubos que são tanto ou mais largos que os ante-flores: a artéria venosa, que também foi indevidamente denominada, porque se trata de uma veia que provém dos pulmões, onde se reparte em vários ramos, entrançados com os da veia arteriosa e com os desse conduto que se chama gasnete, por onde entra o ar da respiração; e a grande artéria, que, saindo do coração, espalha seus ramos por todo o corpo. 

Apreciaria também que lhes mostrassem cuidadosamente as onze diminutas peles que, como outras tantas diminutas portas, abrem e fecham as quatro aberturas que existem nessas duas concavidades três à entrada da veia cava, onde estão dispostas de tal maneira que não podem de forma alguma impedir que o sangue nela contido corra para a concavidade direita do coração, e no entanto impedem que possa dali sair; três à entrada da veia arteriosa, que, estando dispostas bem ao contrário, permitem de fato ao sangue que se encontra essa concavidade fluir para os pulmões, mas não ao que se encontra nos pulmões voltar para lá; e também duas outras a entrada da artéria venosa, que deixam passar o sangue dos pulmões para a concavidade esquerda do coração, mas obstam seu retorno; e três à entrada da grande artéria, que lhe permitem sair do coração, porém impedem seu retorno. 

E não é preciso procurar outra razão para o numero dessas peles, exceto a de que a abertura da artéria venosa, por ser oval em virtude do local onde se encontra, pode ser comodamente fechada com duas, enquanto, por serem as outras redondas, três podem melhor fechá-las. Além disso, desejaria que considerassem que a grande artéria e a veia arteriosa são de uma composição muito mais rija e mais firme do que a artéria venosa e a veia cava, e que as duas últimas se dilatam antes de penetrar no coração, formando aí como duas bolsas, denominadas orelhas do coração, que se compõem de uma carne parecida com a deste; e que existe sempre mais calor no coração do que em qualquer outro local do corpo, e, enfim, que este calor é capaz de fazer com que, se uma gota de sangue entrar em suas concavidades, ela inche prontamente e se dilate, como geralmente se comportam todos os líquidos quando os deixamos cair gota a gota dentro de algum vaso que esteja bem quente. 

Depois disso, nada mais necessito dizer para explicar o movimento do coração, exceto que, quando as suas concavidades não estão repletas de sangue, este flui necessariamente da veia cava para a concavidade direita, e da artéria venosa para a esquerda; já que esses dois vasos se encontram sempre cheios, e que suas aberturas, voltadas para o coração, não podem então ser fechadas; mas, tão logo tenham entrado duas gotas de sangue, uma em cada concavidade, estas gotas, que são bastante grossas, porque as aberturas por onde penetram são muito largas, e os vasos de onde provêm bem cheios de sangue, diluem-se e dilatam-se devido ao calor que aí encontram; dessa maneira, fazendo inflar o coração todo, empurram e fecham as cinco pequenas portas que ficam à entrada dos dois vasos de onde provêm, impedindo, assim, que chegue mais sangue ao coração; e, continuando a diluir-se cada vez mais, empurram e abrem as seis outras pequenas portas situadas à entrada dos dois outros vasos por onde saem, fazendo inflar dessa forma todos os ramos da veia arteriosa e da grande artéria, quase no mesmo instante que o coração, o qual, imediatamente, desincha, como ocorre também com essas artérias, por se resfriar o sangue que nelas entrou; e suas seis pequenas portas se fecham e as cinco da veia cava e da artéria venosa reabrem-se, dando passagem a duas outras gotas de sangue, que vão de novo inflar o coração e as artérias, da mesma maneira que as precedentes. E como o sangue, que penetra assim no coração, passa por essas duas bolsas que são denominadas suas orelhas, resulta que o movimento dessas é contrário ao seu, e que elas desincham quando ele infla. 

De resto, para que aqueles que não conhecem a força das demonstrações matemáticas, e não estão habituados a discernir as razões verdadeiras e as prováveis, não se arrisquem a negar tal fato sem uma análise, quero chamar-lhes a atenção para o fato de que esse movimento que acabo de descrever decorre necessariamente da simples disposição dos órgãos que se podem divisar a olho nu no coração, e do calor que se pode sentir com os dedos, e da natureza do sangue que se pode conhecer por experiência, como o movimento de um relógio decorre da força, da posição e da forma de seus contrapesos e rodas. 

Porém, se me for perguntado por que o sangue das veias não se esgota, fluindo continuamente para o coração, e por que as artérias não se enchem demais, já que tudo quanto passa pelo coração para elas se dirige, não preciso responder nada mais do que já foi escrito por um médico da Inglaterra, a quem é preciso dar o louvor de ter rompido o gelo neste ponto, e de ser o primeiro a ter ensinado a existência de muitas pequenas passagens nas extremidades das artérias, por onde o sangue que elas recebem do coração penetra nos diminutos ramos das veias, de onde ele torna a dirigir-se para o coração, de maneira que o seu curso é uma circulação perpétua. 

E isso ele prova muito bem pela experiência comum dos cirurgiões, que, amarrando o braço, sem apertá-lo muito, acima do local onde abrem a veia, fazem com que o sangue saia dela com mais abundância do que se não o tivessem amarrado. E aconteceria exatamente o contrário se eles o amarrassem mais abaixo, entre a mão e a abertura, ou então se o amarrassem com muita força em cima. 

Pois é evidente que o laço medianamente apertado, embora impedindo que o sangue, que já se encontra no braço, retorne ao coração pelas veias, não impede que para aí sempre aflua novo sangue pelas artérias, porque estas se situam por baixo das veias, e porque suas peles, sendo mais rijas, são mais difíceis de pressionar, e também porque o sangue proveniente do coração tende com mais força a passar por elas em direção à mão do que a voltar daí para o coração pelas veias. E, como esse sangue sai do braço pela abertura que há numa das veias, devem necessariamente existir algumas passagens abaixo do laço, ou seja, na direção das extremidades do braço, por onde possa vir das artérias. 

Além disso, ele prova bastante bem o que afirma a respeito do fluxo do sangue por certas pequenas peles, as quais se encontram de tal maneira dispostas em diversos pontos ao longo das veias, que não lhe permitem passar do meio do corpo para as extremidades, mas somente retornar das extremidades para o coração, e, ademais, pela experiência que mostra que todo o sangue que há no corpo pode dele sair em muito pouco tempo por uma única artéria, quando secionada, até mesmo se ela fosse fortemente amarrada muito próxima do coração, e secionada entre ele e a ligadura, de maneira que não houvesse motivo de imaginar que o sangue que daí saísse procedesse de outro lugar. 

Mas existem numerosas outras coisas que comprovam que a verdadeira causa desse movimento do sangue é a que eu apresentei. Assim, em primeiro lugar, a diferença que se percebe entre o sangue que sai das veias e o que sai das artérias só pode se originar do fato de que, havendo-se diluído e como destilado ao passar pelo coração, é mais fino, mais vivo e mais quente logo após sair dele, ou seja, quando corre nas artérias, do que o é um pouco antes de nele penetrar, isto é, quando corre nas veias. 

E, se se prestar atenção, verifica-se que tal diferença só aparece realmente na direção do coração e de forma alguma nos lugares que dele são mais distantes. Depois, a rigidez das peles, de que a veia arteriosa e a grande artéria se compõem, mostra satisfatoriamente que o sangue bate contra elas com mais força do que contra as veias. 

E por que seriam a concavidade esquerda do coração e a grande artéria maiores e mais largas do que a concavidade direita e a veia arteriosa, se não fosse porque o sangue da artéria venosa, tendo estado apenas nos pulmões depois de passar pelo coração, é mais fino e se dilui mais facilmente do que aquele que procede imediatamente da veia cava? 

E o que podem os médicos descobrir, ao tatear o pulso, se não sabem que, conforme o sangue muda de natureza, pode ser diluído pelo calor do coração mais ou menos forte e mais ou menos rápido do que antes? E, se se examina de que maneira esse calor se transfere aos outros membros, não convém confessar que é por meio do sangue que, ao passar pelo coração, nele se aquece e daí se espalha por todo o corpo? 

Daí decorre que, se se retira o sangue de alguma parte, retira-se-lhe da mesma forma o calor; e, mesmo que o coração fosse tão ardente quanto um ferro em brasa, não bastaria, como não basta, para aquecer os pés e as mãos, se não lhes enviasse ininterruptamente novo sangue. 

Depois, também se sabe daí que a real utilidade da respiração é levar bastante ar fresco aos pulmões, a fim de fazer com que o sangue, que para aí se dirige vindo da concavidade direita do coração, onde foi diluído e como transmudado em vapores, se adense e se transforme novamente, antes de recair na concavidade esquerda, sem o que não seria apropriado para servir de alimento ao fogo aí existente. 

O que está de acordo, porquanto os animais que não possuem pulmões não são providos de mais do que uma concavidade no coração, e as crianças, que não podem utilizá - los por se encontrarem fechadas no ventre de suas mães, apresentam uma abertura por onde corre o sangue da veia cava em direção à concavidade esquerda do coração e um conduto por onde ele provém da veia arteriosa para a grande artéria, sem passar pelos pulmões. 

Depois a digestão: como ela se processaria no estômago se o coração não lhe enviasse calor pelas artérias, e, com esse, alguns dos elementos mais fluidos do sangue, que ajudam a dissolver os alimentos que foram para ali levados? E a ação que transformou o suco desses alimentos em sangue, não será ela fácil de conhecer, se se considera que este se destila, passando e repassando pelo coração, talvez mais de cem ou duzentas vezes por dia? 

E de que mais se precisa para explicar a nutrição e a produção dos vários humores que há no corpo, salvo afirmar que a força com que o sangue, ao rarefazer-se, passa do coração para as extremidades das artérias leva alguns de seus elementos a se deterem entre os dos membros onde se encontram e a tomarem aí o lugar de alguns outros que elas expulsam; e que, de acordo com a situação, ou com a configuração, ou com a pequenez dos poros que encontram, alguns vão ter a certos lugares mais do que outros, de igual maneira como cada um pode ter visto várias peneiras que, sendo diferentemente perfuradas, servem para separar diversos grãos uns dos outros? 

E, por fim, o que existe de mais extraordinário em tudo isso é a geração dos espíritos animais, que são como um vento muito sutil, ou melhor, como uma chama muito pura e muito viva que, subindo ininterruptamente em grande quantidade do coração ao cérebro, dirige-se a partir daí, pelos nervos, para os músculos, e imprime movimento a todos os membros; sem que seja necessário imaginar outra causa que Leve os elementos do sangue que, por serem os mais agitados e penetrantes, são os mais adequados para compor tais espíritos, a se dirigirem mais ao cérebro do que a outras partes; mas apenas que as artérias, que os transportam para aí, são aquelas que provêm do coração em Linha mais reta de todas, e que, de acordo com as leis da mecânica, que são as mesmas da natureza, quando várias coisas tendem a mover-se em conjunto para um mesmo lado, onde não existe espaço suficiente para todas, tal qual os elementos do sangue que saem da concavidade esquerda do coração tendem para o cérebro, os mais débeis e menos agitados devem ser desviados pelos mais fortes, que por esse meio aí chegam sozinhos. 

Eu explanara muito particularmente todas essas coisas no tratado que pretendi publicar em tempos passados. E, em seguida, expusera nele qual deve ser a estrutura dos nervos e dos músculos do corpo humano, para fazer com que os espíritos animais que se encontram dentro deles tenham a força de mover seus membros: assim como se vê que as cabeças, pouco depois de decepadas, ainda se movem e mordem a terra, apesar de não serem mais animadas; quais transformações se devem efetuar no cérebro para produzir a vigília, o sono e os sonhos; como a luz, os sons, os odores, os sabores, o calor e todas as outras qualidades dos objetos exteriores nele podem imprimir variadas idéias por intermédio dos sentidos; como a fome, a sede e as outras paixões interiores também podem lhe transmitir as suas; o que deve ser nele tomado pelo senso comum, onde essas idéias são aceitas; pela memória, que as conserva, e pela fantasia, que as pode modificar diferentemente e formar com elas outras novas, e pelo mesmo meio, distribuindo os espíritos animais nos músculos, movimentar os membros desse corpo de tão diferentes maneiras, quer a respeito dos objetos que se apresentam a seus sentidos, quer das paixões interiores que se encontram nele, que os ossos se possam movimentar sem que a vontade os conduza. 

O que não parecerá de maneira alguma estranho a quem, sabendo quão diversos autômatos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir, sem aplicar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem organizada e capaz de movimentos mais admiráveis do que qualquer uma das que possam ser criadas pelos homens. 

E me demorara especificamente neste ponto, para mostrar que, se existissem máquinas assim, que fossem providas de órgãos e do aspecto de um macaco, ou de qualquer outro animal irracional, não teríamos meio algum para reconhecer que elas não seriam em tudo da mesma natureza que esses animais; contudo, se existissem outras que se assemelhassem com os nossos corpos e imitassem tanto nossas ações quanto moralmente fosse possível, teríamos sempre dois meios bastante seguros para constatar que nem por isso seriam verdadeiros homens. Desses meios, o primeiro é que jamais poderiam utilizar palavras, nem outros sinais, arranjando-os, como fazemos para manifestar aos outros os nossos pensamentos. 

Pois pode-se muito bem imaginar que uma máquina seja feita de tal modo que articule palavras, e até que articule algumas a respeito das ações corporais que causem alguma mudança em seus órgãos: por exemplo, se a tocam num ponto, que indague o que se pretende dizer-lhe; se em outro, que grite que lhe causam mal, e coisas análogas; mas não que ela as arrume diferentemente, para responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, assim como podem fazer os homens mais embrutecidos. 

E o segundo meio é que, ainda que fizessem muitas coisas tão bem, ou talvez melhor do que qualquer um de nós, falhariam inevitavelmente em algumas outras, pelas quais se descobriria que não agem pelo conhecimento, mas apenas pela distribuição ordenada de seus órgãos. 

Pois, enquanto a razão é um instrumento universal, que serve em todas as ocasiões, tais órgãos precisam de alguma disposição específica para cada ação específica; daí decorre que é moralmente impossível que numa máquina haja muitas e diferentes para fazê-la agir em todas as ocasiões da vida, da mesma maneira que a nossa razão nos faz agir. 

Note-se que, por esses dois meios, pode-se também conhecer a diferença que há entre os homens e os animais. Já que é algo extraordinário que não existam homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem nem mesmo a exceção dos loucos, que não tenham a capacidade de ordenar diversas palavras, arranjando-as num discurso mediante o qual consigam fazer entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não haja outro animal, por mais perfeito que possa ser, capaz de fazer o mesmo. 

E isso não ocorre porque lhes faltem órgãos, pois sabemos que as pegas e os papagaios podem articular palavras assim como nós, no entanto não conseguem falar como nós, ou seja, demonstrando que pensam o que dizem; enquanto os homens que, havendo nascido surdos e mudos, são desprovidos dos órgã os que servem aos outros para falar, tanto ou mais que os animais, costumam criar eles mesmos alguns sinais, mediante os quais se fazem entender por quem, convivendo com eles, disponha de tempo para aprender a sua língua. 

E isso não prova somente que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não possuem nenhuma razão. Pois vemos que é necessário bem pouco para saber falar; e, se bem que se percebe desigualdade entre os animais de uma mesma espécie, assim como entre os homens, e que uns são mais fáceis de adestrar que outros, não é acreditável que um macaco ou um papagaio, que fossem os mais perfeitos de sua espécie, não igualassem nisso uma criança das mais estúpidas ou pelo menos uma criança com o cérebro confuso, se a sua alma não fosse de uma natureza totalmente diferente da nossa. 

E não se devem confundir as palavras com os movimentos naturais, que testemunham as paixões e podem ser imitados pelas máquinas e também pelos animais; nem pensar, como alguns antigos, que os animais falam, embora não entendamos sua linguagem: pois, se fosse verdade, visto que possuem muitos órgãos correlatos aos nossos, poderiam fazer-se compreender tanto por nós como por seus semelhantes. 

E também coisa digna de nota que, apesar de haver muitos animais que demonstram mais habilidade do que nós em algumas de suas ações,percebe-se, contudo, que não a demonstram nem um pouco em muitas outras: de forma que aquilo que fazem melhor do que nós não prova que possuam alma; pois, por esse critério, tê-la-iam mais do que qualquer um de nós e agiriam melhor em tudo; mas, ao contrário, que não a possuem, e que é a natureza que atua neles conforme a disposição de seus órgãos: assim como um relógio, que é feito apenas de rodas e molas, pode contar as horas e medir o tempo com maior precisão do que nós, com toda a nossa sensatez. 

Depois disso, eu descrevera a alma racional, e havia mostrado que ela não pode ser de maneira alguma tirada do poder da matéria, como as outras coisas a respeito das quais falara, mas que devem claramente ter sido; e como não é suficiente que esteja alojada no corpo humano, assim como um piloto em seu navio, salvo talvez para mover seus membros, mas que é necessário que esteja junta e unida estreitamente com ele para ter, além disso, sentimentos e desejos parecidos com os nossos, e assim compor um verdadeiro homem. 

Afinal de contas, eu me estendi um pouco aqui sobre o tema da alma por ele ser um dos mais importantes; pois, após o erro dos que negam Deus, que penso haver refutado suficientemente mais acima, não existe outro que desvie mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza que a nossa, e que, portanto, nada temos a recear, nem a esperar, depois dessa vida, não mais do que as moscas e as formigas; ao mesmo tempo que, sabendo-se quanto diferem, compreende-se muito mais as razões que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, consequentemente, que não está de maneira alguma sujeita a morrer com ele; depois, como não se notam outras causas que a destruam, somos naturalmente impelidos a supor por isso que ela é imortal.
-
SEXTA PARTE
-
FAZIA TRÊS ANOS que eu conclu íra o tratado que compreende todas essas coisas, e que havia iniciado a revê-lo, com o intuito de entregá -lo a um editor, quando fiquei sabendo que pessoas, a quem respeito e cuja autoridade sobre minhas ações não é menor que minha própria razão sobre meus pensamentos, não haviam concordado com uma opinião de física, publicada pouco antes por alguém, opinião com a qual não afirmo que eu concordasse, mas que nada notara nela, antes de a criticarem, que pudesse considerar nociva à religião ou ao Estado, nem, consequentemente, que me impossibilitasse de escrevê-la, se a razão tivesse me convencido a fazê-lo, e isso me fez temer que se encontrasse, da mesma maneira, alguma entre as minhas, em que eu me tivesse equivocado, apesar do grande cuidado que sempre tomei em não dar acolhida a novas opiniões das quais não pudesse demonstrar com muita exatidão, e de não escrever nenhuma que pudesse acarretar prejuízo para qualquer pessoa. 

O que foi suficiente para me obrigar a mudar a decisão que eu tomara de publicá-las. Pois, apesar de as razões, pelas quais eu a tomara anteriormente, fossem muito fortes, minha inclinação, que sempre me levara a detestar o ofício de fazer livros, me guiara imediatamente a encontrar muitas outras para dispensá-la. 

E essas razões de uma parte e de outra são tais que não apenas tenho aqui algum interesse em expressá-las, como talvez o público também o tenha em conhecê-las. Jamais dei muita atenção às coisas que provinham de meu espírito, e, à medida que não colhi outros frutos do método que emprego, exceto que fiquei satisfeito em relação a algumas dificuldades que dizem respeito às ciências especulativas, ou então que tentei pautar meus hábitos pelas razões que ele me ensinava, não me considerei obrigado a nada escrever acerca dele. 

Pois, no que se refere aos hábitos, cada qual segue de tal maneira sua própria opinião que se poderia encontrar tantos reformadores quantas são as cabeças, se fosse permitido a outros, além dos que Deus estabeleceu como soberanos dos povos, ou então aos que concedeu suficiente graça e diligência para serem profetas, tentar mudá-los em algo; e, apesar de que minhas especulações me agradassem muito, pensei que os outros também tinham as suas que lhes agradariam talvez mais. 

Porém, apenas adquiri algumas noções gerais concernentes a física, e, começando a comprová-las em várias dificuldades particulares, percebi até onde podiam conduzir e quanto diferem dos princípios que haviam sido utilizados até o presente, considerei que não podia mantê-las escondidas sem transgredir a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens. 

Pois elas me mostraram que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, é possível encontrar-se uma outra prática mediante a qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão claramente como conhecemos os vários ofícios de nossos artífices, poderíamos utilizá-los da mesma forma em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como senhores e possuidores da natureza. 

O que é de desejar, não apenas para a invenção de uma infinidade de artifícios que permitiriam usufruir, sem custo algum, os frutos da terra e todas as comodidades que nela se encontram, mas também, e principalmente, para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e a base de todos os outros bens desta vida; pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até aqui, creio que é na medicina que se deve procurá -lo. 

É verdade que aquela que é agora empregada possui poucas coisas cuja utilidade seja tão notável; porém, sem que eu tenha intenção alguma de desprezá -la, tenho certeza de que não existe ninguém, mesmo entre os que a professam, que não confesse que tudo quanto nela se sabe é quase nada se comparado com o que falta saber, e que poderíamos pôr-nos a salvo de grande número de doenças, quer do espírito, quer do corpo, e talvez até mesmo da debilidade decorrente da velhice, se possuíssemos suficiente conhecimento de suas causas e de todos os remédios de que a natureza nos dotou. 

Ora, tendo a intenção de empregar toda a minha vida na pesquisa de uma ciência tão necessária, e havendo encontrado um caminho que se me afigura tal que se deve infalivelmente encontrá-la, se o seguirmos, exceto se disso sejamos impossibilitados, ou pela breve duração da vida, ou pela falta de experiências, julguei que não havia melhor remédio contra esses dois impedimentos a não ser comunicar com fidelidade ao público o pouco que já tivesse descoberto, e convidar os bons espíritos a empregarem todas as forças para ir além, contribuindo, cada qual de acordo com sua inclinação e sua capacidade, para as experiências que seria necessário realizar, e comunicando ao público todas as coisas que aprendesse, para que os últimos começassem onde os precedentes houvessem acabado, e assim, somando as vidas e os trabalhos de muitos, fôssemos, todos juntos, muito mais longe do que poderia ir cada um em particular. 

Percebera também, a respeito das experiências, que elas são tanto mais necessárias quanto mais avançados estivermos no conhecimento. 

Pois, no início, mais vale servir-se apenas das que se apresentam por si mesmas aos nossos sentidos, e que não poderíamos ignorar, desde que lhes dediquemos o pouco que seja de reflexão, em vez de procurar as mais raras e complicadas: a razão disso é que essas mais raras muitas vezes nos enganam, quando se conhecem ainda as causas das mais comuns, e que as circunstâncias das quais dependem são quase sempre tão específicas e tão pequenas que é muito penoso notá-las. 


Mas a ordem que guardei nisso foi a que segue. Em princípio, procurei encontrar os princípios, ou causas primeiras, de tudo quanto existe, ou pode existir, no mundo, sem nada considerar, para tal efeito, senão Deus, que o criou, nem tirá-las de outra parte, salvo de certas sementes de verdades que existem naturalmente em nossas almas. 

Em seguida, examinei quais são os primeiros e os mais comuns efeitos que se podem deduzir dessas causas: e parece-me que, por aí, encontrei céus, astros, uma Terra, e também acerca da terra, água, ar, fogo, minerais e algumas outras dessas coisas que são as mais triviais de todas e as mais simples, e, consequentemente, as mais fáceis de conhecer. Depois, quando quis descer às que eram mais específicas, apresentaram-se-me tão variadas que não acreditei que fosse possível ao espírito humano distinguir as formas ou espécies de corpos que existem sobre a Terra, de uma infinidade de outras que poderiam nela existir, se fosse a vontade de Deus aí colocá-las, nem, por conseguinte, torná-las de nosso uso, a não ser que se busquem as causas a partir dos efeitos e que se recorra a muitas experiências específicas. 

Como consequência disso, repassando meu espírito sobre todos os objetos que alguma vez se ofereceram aos meus sentidos, atrevo-me a dizer que não observei nenhum que eu não pudesse explicar muito comodamente por meio dos princípios que encontrara. 

Mas é necessário que eu confesse também que o poder da natureza é tão amplo e tão vasto e que esses princípios são tão simples e tão gerais que quase não percebi um único efeito específico que eu já não soubesse ser possível deduzi-lo daí de várias formas diferentes, e que a minha maior dificuldade é comumente descobrir de qual dessas formas o referido efeito depende. 

Pois, para tanto, não conheço outro meio, a não ser o de procurar novamente algumas experiências tais que seu resultado não seja o mesmo, se explicado de uma dessas maneiras e não de outra. 

Afinal de contas, encontro-me agora num ponto em que me parece ver muito bem qual o meio a que se deve recorrer para realizar a maioria das que podem servir para esse efeito; mas vejo também que são tais e em tão grande número que nem as minhas mãos, nem a minha renda, ainda que eu possuísse mil vezes mais do que possuo, bastariam para todas; de maneira que, à medida que de agora em diante tiver a comodidade de realizá-las em maior ou menor número, avançarei mais ou menos no conhecimento da natureza. 

Fato que prometia a mim mesmo tornar conhecido, pelo tratado que escrevera, e mostrar tão claramente a utilidade que daí podia resultar para o público, que obrigaria a todos aqueles que desejam o bem dos homens, ou seja, todos aqueles que são em verdade virtuosos, e não apenas por hipocrisia, nem apenas por princípio, tanto a comunicar-me as que já tivessem realizado como a me ajudar na pesquisa das que ainda há por fazer. 

A partir de então, porém, ocorreram outras razões que me fizeram mudar de opinião e pensar que devia continuar escrevendo todas as coisas que considerasse de alguma importância, conforme fosse descobrindo sua correção, e proporcionar-lhes o mesmo cuidado que se desejasse mandar publicá-las: quer para ter mais oportunidades de melhor analisá-las, porque não há dúvida de que se tem mais cuidado com o que pensamos que deva ser visto por muitos, do que com o que se faz apenas para si próprio, e, frequentemente, as coisas que se me afiguraram verdadeiras quando comecei a concebê-las pareceram-me falsas quando decidi colocá-las no papel; quer para não perder oportunidade alguma de beneficiar o público, se é que disso sou capaz, quer para que, se meus textos possuem algum valor, os que os tiverem em mãos depois da minha morte possam utilizá-los como for mais conveniente; mas que não devia de maneira alguma consentir que fossem publicados durante a minha vida, a fim de que nem as objeções e as controvérsias a que estariam talvez sujeitos, nem mesmo a reputação, qualquer que ela fosse, que me pudessem proporcionar, me dessem a menor ocasião de perder o tempo que pretendo empregar em instruir-me. 

Pois, apesar de ser verdade que cada homem deve procurar, no que depende dele, o bem dos outros, e que é propriamente nada valer o não ser útil a ninguém, é verdade também que os nossos cuidados devem estender-se para mais longe do tempo presente, e que convém omitir as coisas que talvez redundem em algum proveito aos que estão vivos, quando é com o propósito de fazer outras que serão mais úteis aos homens do futuro. 

Porque, realmente, quero que se saiba que o pouco que aprendi até agora não é quase nada em comparação com o que ignoro, e que não desanimo de poder aprender; pois acontece quase a mesma coisa aos que descobrem paulatinamente a verdade nas ciências, que àqueles que, começando a enriquecer, têm menos dificuldade em realizar grandes aquisições do que tiveram antes, quando mais pobres, em realizar outras muito menores. 

Ou então pode-se compará-los aos comandantes de exército, cujas forças costumam crescer na proporção de suas vitórias, e que necessitam de mais habilidade para se manter depois de haver perdido uma batalha, do que possuem, depois de vencê-la, para conquistar cidades e províncias. 

Pois é verdadeiramente dar batalhas o procurar vencer todas as dificuldades e os erros que nos impedem de chegar ao conhecimento da verdade, e é perder o dar acolhida a qualquer falsa opinião acerca de uma matéria um pouco geral e importante; em seguida, é necessário muito mais habilidade para retornar ao mesmo estado em que se encontrava antes do que para realizar grandes progressos, quando já se têm princípios que sejam seguros. 

No que me diz respeito, se deparei precedentemente com algumas verdades nas ciências (e espero que as coisas contidas neste volume levarão a julgar que descobri algumas), posso dizer que não passam de conseqüências e dependências de cinco ou seis dificuldades principais que superei, e que considero outras tantas batalhas em que a sorte esteve a meu lado. 

Não recearei afirmar que creio ter necessidade de ganhar somente mais duas ou três semelhantes para levar totalmente a termo meus projetos; e que minha idade não é tão avançada que, de acordo com o andamento normal da natureza, não possa ainda dispor de tempo suficiente para tal efeito. 

Mas creio estar tanto mais obrigado a economizar o tempo que me resta quanto maior a esperança de poder bem utilizá-lo; e teria, sem dúvida, muitas oportunidades de perdê-lo, se publicasse os fundamentos de minha física. 

Pois, apesar de serem quase todos tão evidentes que basta entendê-los para os aceitar, e não haver nenhum de que não acredite poder dar demonstração, é impossível que estejam concordes com todas as diferentes opiniões dos outros homens, suponho que seria muitas vezes desviado pelas oposições que originariam. 

Pode-se dizer que essas oposições seriam úteis, tanto para me fazerem conhecer os meus equívocos, como para que, se eu tivesse algo de bom, os outros pudessem, por esse meio, entendê-lo melhor, e, como muitos homens vêem melhor do que um só, para que, começando desde já a servir-se desse bem, eles me ajudassem também com suas invenções. 

Porém, apesar de reconhecer que sou muito sujeito a falhas, e que quase nunca me fio nas primeiras idéias que me ocorrem, a experiência que possuo acerca das objeções que me podem ser feitas impede-me de esperar delas qualquer proveito: pois muitas vezes já comprovei as opiniões tanto daqueles que considerava meus amigos quanto de alguns outros a quem achava que eu fosse indiferente, e até mesmo de alguns de quem eu sabia que a malignidade e a inveja se esforçariam bastante por revelar o que o afeto ocultaria a meus amigos; mas raramente aconteceu que alguém me objetasse algo que eu já não tivesse previsto, salvo se fosse coisa muito afastada de meu assunto; de maneira que quase nunca deparei com algum crítico de minhas opiniões que não me parecesse ou menos rigoroso ou menos equilibrado do que eu mesmo. E jamais percebi tampouco que, por meio das disputas que ocorrem nas escolas, alguém descobrisse alguma verdade até então ignorada, pois, na medida em que cada qual se esforça em vencer, empenha-se bem mais em fazer valer a verossimilhança do que em avaliar as razões de uma e de outra parte; e aqueles que foram durante muito tempo bons advogados nem por isso se tornam melhores juízes. 

A respeito da utilidade que os outros obteriam da divulgação de meus pensamentos, não poderia também ser muito grande, sendo que ainda não os levei tão longe que não seja necessário acrescentar-lhes muitas coisas antes de aplicá-los ao uso. 

E creio poder afirmar, sem presunção, que, se existe alguém que seja capaz disso, hei de ser eu mais do que outro qualquer: não que não possa haver no mundo muitos espíritos melhores que o meu, mas porque não se pode compreender tão bem uma coisa, e torná-la nossa, quando a aprendemos de outrem, como quando nós mesmos a criamos. 

O que é tão verdadeiro nesta matéria que, apesar de haver muitas vezes explicado alguns de meus conceitos a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las muito claramente, contudo, quando as repetiam, percebi que quase sempre as mudavam de tal maneira que não mais podia considerá-las minhas. 

Com essa intenção, prezo muito pedir aqui, às futuras gerações, que jamais acreditem nas coisas que lhes forem apresentadas como provindas de mim, se eu mesmo não as tiver divulgado. 

E não me surpreendem de maneira alguma as extravagâncias que se atribuem a todos esses antigos filósofos, cujos escritos não possuímos, nem julgo, por isso, que os seus pensamentos tenham sido muito disparatados, porquanto eram os melhores espíritos de seu tempo, mas apenas julgo que nos foram mal referidos. 

Porque se vê também que quase nunca ocorreu que algum de seus seguidores os tenha superado: e tenho certeza de que os mais apaixonados dos atuais partidários de Aristóteles sentir-se-iam felizes se tivessem tanto conhecimento da natureza quanto ele o teve, apesar de sob a condição de nunca o terem maior. São como a hera, que não sobe mais alto que as árvores que a sustentam, e que muitas vezes torna a descer, depois de haver alcançado o topo; pois tenho a impressão de que também voltam a descer, ou seja, tornam-se de certa maneira menos sábios do que se se abstivessem de estudar, aqueles que, não satisfeitos de saber tudo o que é inteligivelmente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar nele a solução de muitas dificuldades, acerca das quais nada declarou e nas quais talvez jamais pensou. 

Contudo, o modo de filosofar é muito cômodo para aqueles que possuem espíritos bastante medíocres; pois a falta de clareza das distin ções e dos princípios de que se utilizam é causa de que possam falar de todas as coisas tão ousadamente como se as conhecessem, e sustentar tudo o que dizem contra os mais perspicazes e os mais capazes sem que haja meio de persuadi-los. 

Nisso se me afiguram parecidos com um cego que, para lutar sem ficar em desvantagem com alguém que enxerga, preferisse fazê-lo no fundo de uma adega escura; e posso dizer que esses têm interesse que eu me abstenha de publicar os princípios da filosofia de que me utilizo: pois, por serem muito simples e muito evidentes como o são, faria quase o mesmo, ao publicá-los, que se abrisse algumas janelas e fizesse entrar a luz nessa mesma adega, para onde desceram para lutar. 

Mas até mesmo os melhores espíritos não devem desejar conhecê-los: pois, se almejam falar de todas as coisas com conhecimento e obter a fama de sábios, irão consegui-lo mais facilmente satisfazendo-se com a verossimilhança, que pode ser encontrada sem muito esforço em todas as espécies de matérias do que procurando a verdade, que só se descobre pouco a pouco em algumas, e que, quando se trata de falar das outras, obriga a confessar sinceramente que nós as ignoramos. 

Dado que preferem o conhecimento de um pouco de verdade à vaidade de darem a impressão de nada ignorar, como sem dúvida é preferível, e se pretendem seguir um desígnio parecido com o meu, não necessitam, para isso, que lhes diga nada além do que já disse neste discurso. 

Pois, se são capazes de avançar mais do que eu fui, com maior razão serão também capazes de encontrar por si próprios tudo o que penso ter encontrado. 

Ainda mais que, não havendo nunca analisado algo a não ser por ordem, certamente o que ainda me falta descobrir é em si mais difícil e mais obscuro do que aquilo que pude anteriormente encontrar, e lhes seria muito menos prazeroso aprendê-lo por mim do que por si mesmos; além do que, o hábito que adquirirão, procurando em princípio coisas fáceis e passando, gradualmente, a outras mais difíceis, ser-lhes-á mais proveitoso do que lhes poderiam ser todas as minhas instruções. 

Porque, quanto a mim, cheguei à conclusão de que, se a partir da juventude me tivessem ensinado todas as verdades cujas demonstrações procurei depois, e se eu não tivesse dificuldade alguma em aprendê-las, talvez nunca soubesse algumas outras, e ao menos nunca teria adquirido o hábito e a facilidade, que julgo possuir, para sempre descobrir outras novas, conforme me esforço em procurá-las. 

E se existe no mundo alguma obra que não possa ser tão bem executada por nenhum outro a não ser pela mesma pessoa que a iniciou, é naquela que eu trabalho. A verdade é que, no que diz respeito às experiências que podem servir para isso, um único homem não poderia ser suficiente para realizá-las todas; mas não poderia também utilizar com proveito outras mãos que não as suas, salvo as dos artesãos ou pessoas tais a quem pudesse pagar, e a quem o vislumbre do dinheiro, que é um meio muito eficiente, faria executar exatamente todas as coisas que ele lhes determinasse. 

Pois, no que diz respeito aos voluntários, que, por curiosidade ou vontade de aprender, pudesse se oferecer para o ajudar, além de geralmente apresentarem mais promessas do que resultados e de fazerem apenas belas propostas das quais nenhuma nunca obtém sucesso, desejariam inevitavelmente ser pagos pela explicação de algumas dificuldades, ou ao menos por cumprimentos e conversas estéreis, que lhe custariam sempre algum tempo, por pouco que fosse. 

E, a respeito das experiências já realizadas pelos outros, ainda que desejassem lhes comunicar o que aqueles que as chamam de segredos jamais o fariam, são, na maioria, compostas de tantas circunstâncias, ou ingredientes supérfluos, que lhe seria muito difícil decifrar-lhes a verdade; além de que as encontraria quase todas tão mal explicadas, ou mesmo tão errôneas, pois aqueles que as realizaram esforçaram-se por torná-las conformes com seus princípios que, se existissem algumas que lhe servissem, não poderiam valer outra vez o tempo que teria de gastar a fim de escolhê-las. 

De maneira que, se houvesse no mundo alguém de quem se soubesse que seria com certeza capaz de encontrar as maiores coisas e as mais úteis possíveis para o público, e a quem, por esse motivo, os demais homens se esforçassem, por todos os meios, em ajudar na realização de seus intentos, não vejo que pudessem fazer mais por ele além de financiar as despesas nas experiências de que precisasse e, de resto, impedir que seu tempo lhe fosse tomado por pessoas inoportunas. 

Mas, além de que não imagino tanto de mim mesmo, que queira prometer algo de extraordinário, nem me alimente de ilusões como imaginar que o público se deva interessar muito pelos meus projetos, não tenho também a alma tão baixa que vá aceitar de quem quer que seja qualquer favor que possam julgar que eu não mereça. 

Todas essas considerações juntas foram motivo, há três anos, de que eu me recusasse a divulgar o tratado que tinha em mãos, e mesmo que decidisse não elaborar outro qualquer, ao longo de minha existência, que fosse tão geral, nem do qual fosse possível conhecer os fundamentos da minha física. 

Mas em seguida houve novamente duas outras razões, que me obrigaram a apresentar aqui alguns ensaios particulares, e a prestar ao público alguma conta de minhas ações e de meus intentos. 

A primeira é que, se não o fizesse, muitos, que haviam sabido do projeto que eu alimentava anteriormente de mandar imprimir alguns escritos, poderiam imaginar que as causas pelas quais me abstivera disso fossem mais inconvenientes para mim do que na realidade o são. 

Pois, apesar de não apreciar a glória em excesso, ou mesmo, se me atrevo a dizê-lo, a odeie, na medida em que a julgo contrária ao repouso, que estimo acima de todas as coisas, contudo jamais procurei esconder minhas ações como se fossem criminosas, nem usei muitas precauções para ficar desconhecido; tanto por acreditar que isso me faria mal, como por saber que me provocaria uma espécie de inquietação, que seria mais uma vez contrária à perfeita paz de espírito que procuro. 

E sendo que, por haver-me sempre mantido assim indiferente entre o cuidado de ser conhecido e o de não sê-lo, não pude evitar de adquirir certa reputação, julgando que devia fazer o máximo para me livrar ao menos de tê-la má. 

A outra razão que me obrigou a escrever este livro é que, vendo todos os dias mais e mais o atraso que sofre meu propósito de me instruir, por causa de um sem-número de experiências de que preciso realizar, o que me e impossível sem o auxilio de outra pessoa, embora não me lisonjeie tanto a ponto de esperar que o público tome grande parte em meus interesses, não quero faltar tanto a mim próprio que dê motivo aos que me sobreviverão para me censurar um dia de que eu poderia ter-lhes legado muitas coisas bem melhores do que as que leguei, se não me tivesse descuidado tanto em fazê-los compreender em que poderiam contribuir para os meus projetos. 

E acreditei que me seria fácil escolher algumas matérias que, sem estarem expostas a muitas controvérsias, nem me obrigarem a expor mais do que desejo a respeito dos meus princípios, não deixariam de mostrar com bastante clareza o que posso ou não posso nas ciências. 

E quanto a isso eu não poderia dizer se fui bem-sucedido e não quero predispor os juízos de ninguém, falando eu próprio sobre meus escritos; mas apreciaria muito que fossem analisados e, para que haja tanto mais ocasião, suplico a todos aqueles que tiverem quaisquer objeções a fazer-lhes que se deem ao trabalho de enviá-las ao meu editor, para que, sendo advertido, procure acrescentar-lhes ao mesmo tempo a minha resposta; e por esse meio, os leitores, vendo em conjunto uma e outra, julgarão tanto mais facilmente a verdade. 

Pois prometo jamais lhes dar respostas longas, mas apenas confessar meus equívocos de maneira franca, se os admitir, ou então, caso não consiga percebê-los, dizer simplesmente o que julgar necessário para a defesa das coisas que escrevi, sem acrescentar a explicação de qualquer nova matéria, a fim de não me enredar inapelavelmente entre uma e outra. 

Se algumas daquelas explicações que apresentei, no começo de Dióptrica e de Meteoros, chocam de início por eu as denominar suposições, e por parecer que não pretendo prová-las, que se tenha a paciência de ler o todo com atenção, e espero que todos ficarão satisfeitos. 

Pois me parece que nelas as razões se seguem de tal modo que, como as últimas são demonstradas pelas primeiras, que são as suas causas, essas primeiras o são reciprocamente pelas últimas, que são seus efeitos. 

E não se deve imaginar que cometo com isso o erro que os lógicos chamam de círculo; pois, como a experiência torna a maioria desses efeitos muito correta, as causas das quais os deduzo não servem tanto para prová-los ou explicá-los, mas, ao contrário, são elas que são provadas por eles. 

E não as chamei suposições só para que se saiba que penso poder deduzi-las dessas primeiras verdades que expliquei mais acima, mas que deliberadamente não o quis fazer para impedir que certos espíritos, que imaginam aprender num dia tudo o que um outro pensou durante vinte anos, tão logo ele lhes diz duas ou três palavras a respeito, e que são tanto mais sujeitos a falhar e menos capazes da verdade quanto mais penetrantes e vivos são, não pudessem aproveitar a oportunidade para constituir alguma filosofia extravagante sobre o que acreditariam ser os meus princípios, e que depois me atribuíssem a culpa disso. 

Pois, a respeito das opiniões que são totalmente minhas, não as desculpo de serem novas, tanto mais que, se se considerarem bem as suas razões, tenho certeza de que serão julgadas tão simples e tão de acordo com o senso comum que parecerão menos extraordinárias e menos estranhas do que quaisquer outras que se possa ter acerca dos mesmos assuntos. 

E não me envaideço também de ser o primeiro criador de qualquer uma delas, mas antes de não as ter jamais aceito, nem pelo fato de terem sido proferidas por outrem, nem pelo que possam ter sido, mas unicamente porque a razão fez com que eu as aceitasse. 

Se os artesãos não puderem tão cedo executar a invenção que é explicada em Dióptrica, não acredito que por causa disso se possa afirmar que ela é má: pois, sendo que é necessário habilidade e experiência para construir e ajustar as máquinas que descrevi, sem que nelas falte componente algum, admirar-me-ia mais se eles conseguissem na primeira tentativa, da mesma forma se alguém conseguisse aprender, num dia, a tocar o alaúde excelentemente apenas porque lhe foi fornecida uma boa tablatura. 

E se escrevo em francês, que é o idioma de meu país, e não em latim, que é o de meus mestres, é porque espero que aqueles que se servem somente de sua razão natural totalmente pura julgarão melhor minhas opiniões do que aqueles que só acreditam nos livros antigos. 

E quanto aos que unem o bom senso ao estudo, os únicos que desejo para meus juízes, tenho certeza de que não serão de maneira alguma tão parciais em favor do latim que recusem ouvir minhas razões porque as explico em língua vulgar. 

Ademais, não pretendo falar aqui a respeito dos progressos que no futuro espero fazer nas ciências, nem me comprometer em relação ao público com qualquer promessa que eu não esteja seguro de cumprir: mas direi unicamente que decidi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa que não seja tentar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja de tal ordem que dele se possam extrair normas para a medicina, mais seguras do que as adotadas até agora; e que minha tendência me afasta tanto de qualquer tipo de outras intenções, especialmente das que não poderiam ser úteis a uns sem prejudicar a outros, que, se algumas circunstâncias me obrigassem a dedicar-me a eles, não acredito que fosse capaz de obter êxito. 

Faço, então, aqui uma declaração que, tenho plena consciência, não poderá servir para me tornar famoso no mundo, mas tampouco tenho o menor desejo de sê-lo; e ficarei sempre mais agradecido àqueles em virtude dos quais desfrutarei sem estorvo do meu tempo, do que o seria aos que me oferecessem os mais dignificantes empregos do mundo.


Versão eletrônica do livro “Discurso do Método”
Autor: Descartes
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/

Acesse aqui as partes 1, 2 e 3
(DISCURSO DO MÉTODO - R.DESCARTES)

Nenhum comentário: