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domingo, 4 de abril de 2010

DIRCURSO DO MÉTODO de René DESCARTES_ Partes 1,2 e 3

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DISCURSO DO MÉTODO




DISCURSO DO MÉTODO Tradução de: Enrico Corvisieri
- PARTES I, II e III
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PRIMEIRA PARTE
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INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem. 

E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas. 

Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam. 

Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que os dos outros; com freqüência desejei ter o pensamento tão rápido, ou a imaginação tão clara e diferente, ou a memória tão abrangente ou tão pronta, quanto alguns outros. 

E desconheço quaisquer outras qualidades, afora as que servem para o aperfeiçoamento do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso, posto que é a única coisa que nos torna homens e nos diferencia dos animais, acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinião geral dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie. 

Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita felicidade de me haver encontrado, a partir da juventude, em determinados caminhos, que me levaram a considerações e máximas, das quais formei um método, pelo qual me parece que eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento, e de elevá-lo, pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu espírito e a breve duração de minha vida lhe permitam alcançar. 

Pois já colhi dele tais frutos que, apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure inclinar-me mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, observando com um olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens existe alguma que seja solidamente boa e importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi. 

Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor. 

Mas apreciaria muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida como num quadro, para que cada um possa julgá -la e que, informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este uma nova forma de me instruir, que acrescentarei àquelas de que tenho o hábito de me utilizar. 

Portanto, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha. Os que se aventuram a fornecer normas devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. 

Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, encontrar-se-ão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser danoso a ninguém, e que todos me serão gratos por minha franqueza. 

Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver convencido de que, por intermédio delas, poder-se-ia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. 

Porém, assim que terminei esses estudos, ao cabo do qual costuma-se ser recebido na classe dos eruditos, mudei totalmente de opinião. 

Pois me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. 

E, contudo, estudara numa das mais célebres escolas da Europa, onde imaginava que devia haver homens sábios, se é que havia em algum lugar da Terra. 

Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo não havendo me contentado com ciências que nos ensinavam, lera todos os livros que tratam daquelas que são reputadas as mais curiosas e as mais raras, que vieram a cair em minhas mãos. 

Além disso, eu conhecia os juízos que os outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgassem inferior a meus colegas, apesar de entre eles haver alguns já destinados a ocupar os lugares de nossos mestres. 

E, enfim, o nosso século parecia-me tão luminoso e tão fértil em bons espíritos como qualquer um dos anteriores, O que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não havia doutrina no mundo que fosse tal como antes me haviam feito presumir. 

Apesar disso, não deixava de apreciar os exercícios com os quais se ocupam nas escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas estimula o espírito; que as realizações notáveis das histórias o fazem crescer, e que, sendo lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos; que a eloqüência possui forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras deveras encantadoras; que as matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes e reduzir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitos estímulos à virtude que são muito úteis; que a teologia ensina a ganhar o céu; que a filosofia ensina a falar com coerência de todas as coisas e de se fazer admirar pelos que possuem menos erudição; que a jurisprudência, a medicina e as outras ciências proporcionam honras e riquezas àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom havê-las examinado a todas, até mesmo as mais eivadas de superstição e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o exato valor e evitar ser por elas enganado. 

Mas eu julgava já ter gasto bastante tempo com as línguas, e também com a leitura dos livros antigos, com suas histórias e suas fábulas. 

Pois quase a mesma coisa que conversar com os homens de outros séculos é viajar. E bom saber alguma coisa dos hábitos de diferentes povos, para que julguemos os nossos mais justamente e não pensemos que tudo quanto é diferente dos nossos costumes é ridículo e contrário à razão, como soem fazer os que nada viram. 

Contudo, quando gastamos excessivo tempo em viajar, acabamos tornando-nos estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos das coisas que se realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito ignorantes das que se realizam no presente. 

Ademais, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que não o são, e até mesmo as histórias mais verossímeis, se não mudam nem alteram o valor das coisas para torná-las mais dignas de serem lidas, ao menos deixam de apresentar quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos insignes, de onde resulta que o resto não parece tal qual é, e que aqueles que norteiam seus hábitos pelos exemplos que deles tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos heróis de nossos romances e a conceber propósitos que superam suas forças. 

Eu estimava muito a eloquência e estava apaixonado pela poesia; mas acreditava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do estudo. 

Aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus pensamentos, com o intuito de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem somente o baixo bretão e nunca hajam aprendido retórica. 

E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem apresentar com o máximo de floreio e suavidade não deixariam de ser os melhores poetas, mesmo que a arte poética lhes fosse desconhecida. 

Deleitava-me principalmente com as matemáticas, devido à certeza e à evidência de suas razões; mas ainda não percebia sua verdadeira aplicação, e, julgando que só serviam às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão seguros e sólidos, não se houvesse construído sobre eles nada de mais elevado. 

Da mesma forma que, ao contrário, eu comparava os escritos dos antigos pagãos que tratam de hábitos a magníficos palácios erigidos apenas sobre a areia e a lama. 

Elevam muito alto as virtudes e as apresentam como as mais dignas de estima entre todas as coisas que existem no mundo; mas não ensinam bastante a conhecê-las, e freqüentemente o que chamam com um nome tão belo não passa de uma insensibilidade, ou de um orgulho, ou de um desespero, ou de um parricídio. 

Eu venerava a nossa teologia e pretendia, como qualquer um, ganhar o céu; porém, tendo aprendido, como algo muito certo, que o seu caminho não está menos franqueado aos mais ignorantes do que aos mais sábios e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão além de nossa inteligência, não me atreveria a submetê-las à debilidade de meus raciocínios, e pensava que, para empreender sua análise e obter êxito, era preciso receber alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem. 

Nada direi a respeito da filosofia, exceto que, vendo que foi cultivada pelos mais elevados espíritos que viveram desde muitos séculos e que, apesar disso, nela ainda não se encontra uma única coisa a respeito da qual não haja discussão, e consequentemente que não seja duvidosa, eu não alimentava esperança alguma de acertar mais que os outros; e que, ao considerar quantas opiniões distintas, defendidas por homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto, sem que possa haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso tudo quanto era apenas provável. 

A respeito das outras ciências, por tomarem seus princípios da filosofia, acreditava que nada de sólido se podia construir sobre alicerces tão pouco firmes. E nem a honra, nem o lucro que elas prometem, eram suficientes para me exortar a aprendê-las; pois graças a Deus não me sentia de maneira alguma numa condição que me obrigasse a converter a ciência num ofício, para o alívio de minha fortuna; e se bem que não desprezasse a glória como um cínico, fazia, contudo, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar obter com falsos títulos. 

Por fim, no que diz respeito às más doutrinas, julgava já conhecer suficientemente o que valiam, para não mais correr o risco de ser enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelas artimanhas ou arrogâncias dos que manifestam saber mais do que realmente sabem. 

Aqui está por que, apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras. E, decidindo-me a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia encontrar em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo, aproveitei o resto de minha juventude para viajar, para ver cortes e exércitos, para frequentar pessoas de diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências, para pôr a mim mesmo à prova nos reencontros que o destino me propunha e, por toda parte, para refletir a respeito das coisas que se me apresentavam, a fim de que eu pudesse tirar algum proveito delas. 

Pois acreditava poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada um forma no que se refere aos negócios que lhe interessam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve penalizá-lo logo em seguida, do que naqueles que um homem de letras forma em seu gabinete a respeito de especulações que não produzem efeito algum e que não lhe acarretam outra conseqüência salvo, talvez, a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais afastadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e artimanha que necessitou empregar no esforço de torná-las prováveis. 

E eu sempre tive um enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta vida. 

A verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes dos outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos. 

De forma que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma quantidade de coisas que, apesar de nos parecerem muito extravagantes e ridículas, são comumente recebidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não acreditar com demasiada convicção em nada do que me havia sido inculcado só pelo exemplo e pelo hábito; e, dessa maneira, pouco a pouco, livrei-me de muitos enganos que ofuscam a nossa razão e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. 

Porém, após dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que iria seguir. Isso, a meu ver,, trouxe-me muito melhor resultado do que se nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros.
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SEGUNDA PARTE -
NAQUELA ÉPOCA, encontrava-me na Alemanha, para onde me sentira atraído pelas guerras, que ainda não terminaram, e, ao regressar da coroação do imperador para o exército, o começo do inverno me obrigou a permanecer num quartel onde, por não encontrar convívio social algum que me distraísse, e, também, felizmente, por não ter quaisquer desejos ou paixões que me perturbassem, ficava o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido, onde dispunha de todo o tempo para me entreter com os meus pensamentos. 

Um dos primeiros entre eles foi lembrar-me de considerar que, freqüentemente, não existe tanta perfeição nas obras formadas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. 

Deste modo, nota-se que os edifícios projetados e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e mais bem estruturados do que aqueles que muitos quiseram reformar, utilizando-se de velhas paredes construídas para outras finalidades. 

Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no início pequenos burgos e havendo se transformado, ao longo do tempo, em grandes centros, são comumente tão mal calculadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um engenheiro a seu bel-prazer, que, mesmo considerando seus edifícios individualmente, se encontre neles com freqüência tanta ou mais arte que nos das outras, contudo, a ver como estão ordenados, aqui um grande, ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, poder-se-ia afirmar que foi mais por obra do acaso do que pela vontade de alguns homens usando da razão que assim os dispôs. 

E se se considerar que, não obstante tudo, sempre existiram funcionários com a função de fiscalizar as construções dos particulares para torná-las úteis ao ornamento do público, reconhecer-se-á realmente que é penoso, trabalhando apenas nas obras de outras pessoas, fazer coisas muito bem rematadas. 

Portanto, considerei que os povos que outrora haviam sido semiselvagens e só pouco a pouco foram se civilizando, elaboraram suas leis apenas à medida que o desconforto dos crimes e das querelas a tanto os coagiu, não poderiam ser tão bem policiados como aqueles que, desde o instante em que se reuniram, obedeceram às leis de algum prudente legislador. 

Tal como é justo que o estado da verdadeira religião, cujas ordenanças só Deus fez, deve ser incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros. 

E, para falar a respeito das coisas humanas, penso que, se Esparta foi na Antiguidade muito florescente, não o deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular, já que muitas eram bastante impróprias e até mesmo contrárias aos bons costumes, mas ao fato de que, havendo sido criadas por um único homem, tendiam todas ao mesmo fim. 

E assim pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações, pois foram compostas e avolumadas devagar com opiniões de muitas e diferentes pessoas, não se encontram, de forma alguma, tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente acerca das coisas que se lhe apresentam. 

E também pensei que, como todos nós fomos crianças antes de sermos adultos, e como por muito tempo foi necessário sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores, que eram com freqüência contrários uns aos outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhassem o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão firmes como seriam se pudéssemos utilizar totalmente a nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela. 

É verdade que não vemos em lugar algum demolirem todas os edifícios de uma cidade, com o exclusivo propósito de reconstruí-los de outra maneira, e de tornar assim suas ruas mais belas; mas vê-se na realidade que muitos derrubam suas casas para reconstruí-las, sendo ainda por vezes obrigados a fazê -lo, quando elas correm o risco de cair por si próprias, por seus alicerces não se encontrarem muito firmes. 

A exemplo disso, convenci-me de que não seria razoável que um particular tencionasse reformar um Estado, mudando-o em tudo desde os alicerces e derrubando-o para em seguida reerguê-lo; nem tampouco reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las; mas que, respeito de todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o melhor afazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa confiança, para substitui-las em seguida ou por outras melhores, ou então pelas mesmas, após havê-las ajustado ao nível da razão. 

E acreditei com firmeza em que, por este meio, conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se a construísse apenas sobre velhos alicerces e me apoiasse tão-somente sobre princípios a respeito dos quais me deixara convencer em minha juventude, sem ter nunca analisado se eram verdadeiros. 

Pois, embora percebesse nesse mister várias dificuldades, não eram contudo insuperáveis, nem comparáveis às que se encontram na reforma das menores coisas relativas ao público. 

Esses grandes corpos são demasiado difíceis de reerguer quando abatidos, ou mesmo de escorar quando abalados, e suas quedas não podem deixar de ser muito violentas. 

Pois, a respeito de suas imperfeições, se as possuem, como a simples diversidade que há entre eles basta para assegurar que as possuem em grande número, o uso sem dúvida as suavizou, e até mesmo evitou e corrigiu insensivelmente uma grande quantidade às quais não se poderia tão bem remediar por prudência. 

E, por fim, são quase sempre mais suportáveis do que o seria a sua mudança; da mesma forma que os grandes caminhos, que serpenteiam entre montanhas, se tornam pouco a pouco tão batidos e tão cômodos, a poder de serem frequentados, que é preferível segui-los a tentar ir mais reto, escalando os rochedos e descendo até o fundo dos precipícios.

Aqui está o motivo pelo qual eu não poderia de maneira alguma aprovar esses temperamentos perturbadores e inquietos que, não sendo chamados, nem pelo nascimento, nem pela fortuna, à administração dos negócios públicos, não deixam de neles realizar sempre, em teoria, alguma nova reforma. 

E se eu pensasse haver neste escrito a menor coisa que pudesse tornar-me suspeito de tal loucura, ficaria muito pesaroso de ter concordado em publicá-lo. Jamais o meu objetivo foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos e construir num terreno que é todo meu. 

De maneira que, se, tendo minha obra me agradado bastante, eu vos mostro aqui o seu modelo, nem por isso desejo aconselhar alguém a imitá-lo. Aqueles a quem Deus melhor distribuiu suas graças alimentarão talvez propósitos mais elevados; mas receio bastante que este já seja por demais temerário para muitos. 

A mera decisão de se desfazer de todas as opiniões a que se deu antes crédito não é um exemplo que cada um deva seguir; e o mundo compõe-se quase só de duas espécies de espíritos, aos quais ele não convém de maneira alguma. 

A saber, daqueles que, julgando-se mais hábeis do que realmente são, não podem impedir-se de precipitar seus juízos, nem ter suficiente paciência para conduzir ordenadamente todos os seus pensamentos: disso decorre que, se tivessem tomado uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que aceitaram e de se desviar do caminho comum, jamais poderiam ater-se à trilha que é necessário tomar para ir mais direito, e permaneceriam perdidos ao longo de toda a existência; depois, daqueles que, tendo bastante razão, ou modéstia, para considerar-se menos capazes de diferenciar o verdadeiro do falso do que alguns outros, pelos quais podem ser instruídos, devem antes ficar satisfeitos em seguir as opiniões desses outros, do que esforçar-se por achar por si mesmos outras melhores. 

No que me diz respeito, constaria sem dúvida do número destes últimos, se eu tivesse tido um único mestre, ou se nada soubesse das diferenças que existiram em todos os tempos entre as opiniões dos mais eruditos. 

Porém, havendo aprendido, desde a escola, que nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco acreditável que algum dos filósofos já não houvesse dito; e depois, ao viajar, tendo reconhecido que todos os que possuem sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos utilizam, tanto ou mais do que nós, a razão; e, havendo considerado quanto um mesmo homem, com o seu mesmo espírito, sendo criado desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria se vivesse sempre entre chineses ou canibais; e como, até nas modas de nossos trajes, a mesma coisa que nos agradou há dez anos, e que talvez nos agrade ainda antes de decorridos outros dez, nos parece agora extravagante e ridícula, de forma que são bem mais o costume e o exemplo que nos convencem do que qualquer conhecimento correto e que, apesar disso, a pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades um pouco difíceis de descobrir, por ser bastante mais provável que um único homem as tenha encontrado do que todo um povo: eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às de outros, e achava-me como coagido a tentar eu próprio dirigir-me. 

Porém, igual a um homem que caminha solitário e na absoluta escuridão, decidi ir tão lentamente, e usar de tanta ponderação em todas as coisas, que, mesmo se avançasse muito pouco, ao menos evitaria cair. 

Não quis de maneira alguma começar rejeitando inteiramente qualquer uma das opiniões que por acaso haviam se insinuado outrora em minha confiança, sem que aí fossem introduzidas pela razão, antes de gastar bastante tempo em elaborar o projeto da obra que iria empreender, e em procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz. 

Quando era mais jovem, eu estudara um pouco de filosofia, de lógica, e, das matemáticas, a analise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam poder contribuir com algo para o meu propósito. 

No entanto, analisando-as, percebi que, quanto à lógica, seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar aos outros as coisas já conhecidas, ou mesmo, como a arte de Lúlio,1 para falar, sem formar juízo, daquelas que são ignoradas, do que para aprendê-las. E apesar de ela conter, realmente, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, existem contudo tantos outros misturados no meio que são ou danosos, ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem ao menos está delineado. 

Depois, no que concerne à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a assuntos muito abstratos, e de não parecerem de utilidade alguma, a primeira permanece sempre tão ligada à consideração das figuras que não pode propiciar a compreensão sem cansar muito a imaginação; e, na segunda, esteve-se de tal maneira sujeito a determinadas regras e cifras que se fez dela uma arte confusa e obscura que atrapalha o espírito, em vez de uma ciência que o cultiva. 

Por este motivo, considerei ser necessário buscar algum outro método que, contendo as vantagens desses três, estivesse desembaraçado de seus defeitos. E, como a grande quantidade de leis fornece com frequência justificativas aos vícios, de forma que um Estado é mais bem dirigido quando, apesar de possuir muito poucas delas, são estritamente cumpridas; portanto, em lugar desse grande número de preceitos de que se compõe a lógica, achei que me seriam suficientes os quatro seguintes, uma vez que tornasse a firme e inalterável resolução de não deixar uma só vez de observá-los. 

1 Lúlio (bem -aventurado Raimundo), em catalão Ramón Llull, erudito, filósofo, teólogo e poeta catalão (Palma de Maiorca c. 1233 - Bugia ou Palma 1315). 

Seu proselitismo cristão o levou aos países mediterrâneos, onde organizou uma cruzada intelectual destinada a provocar encontros entre sábios de diferentes religiões, visando à unificação religiosa do mundo. (N. do T.) O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar dele. 

O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. 

E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir. Essas longas séries de razões, todas simples e fáceis, que os geômetras costumam utilizar para chegar às suas mais difíceis demonstrações, tinham-me dado a oportunidade de imaginar que todas as coisas com a possibilidade de serem conhecidas pelos homens seguem-se umas às outras do mesmo modo e que, uma vez que nos abstenhamos apenas de aceitar por verdadeira qualquer uma que não o seja, e que observemos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode existir nenhuma delas tão afastada a que não se chegue no final, nem tão escondida que não se descubra. 

E não me foi muito dificultoso procurar por quais deveria começar, pois já sabia que haveria de ser pelas mais simples e pelas mais fáceis de conhecer; e, considerando que, entre todos os que anteriormente procuraram a verdade nas ciências, apenas os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, ou seja, algumas razões certas e evidentes, não duvidei de modo algum que não fosse pelas mesmas que eles analisaram; apesar de não esperar disso nenhuma outra utilidade, salvo a de que habituariam meu espírito a se alimentar de verdades e a não se satisfazer com falsas razões. 

Mas não foi minha intenção, para tanto, tentar aprender todas essas ciências particulares que habitualmente se chamam matemáticas; e, vendo que, apesar de seus objetos serem distintos, não deixam de concordar todas, pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas ações ou proporções que neles se encontram, julguei que convinha mais analisar apenas estas proporções em geral, e presumindo-as somente nos suportes que servissem para me tornar seu conhecimento mais fácil; mesmo assim, sem restringi-las de modo algum a tais suportes, a fim de poder aplicá-las tão melhor, em seguida, a todos os outros objetos a que conviessem. 

Depois, havendo percebido que, a fim de conhecê-las, ser-me-ia algumas vezes necessário considerá- las cada qual em particular, e outras vezes apenas de reter, ou de compreender, várias em conjunto, julguei que, para melhor considerá-las em particular, deveria presumi-las em linhas, visto que não encontraria nada mais simples, nem que pudesse representar mais diferentemente à minha imaginação e aos meus sentidos; mas que, para reter, ou compreender, várias em conjunto, era necessário que eu as designasse por alguns signos, os mais breves possíveis, e que, por esse meio, tomaria de empréstimo o melhor da análise geométrica e da álgebra, e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra. 

E já que, com efeito, atrevo-me a dizer que a exata observação desses poucos preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de desenredar todas as questões às quais se estendem essas duas ciências que, nos dois ou três meses que levei para analisá-las, havendo iniciado pelas mais simples e mais gerais, e compondo cada verdade que eu encontrava uma regra que me servia depois para encontrar outras, não apenas consegui resolver muitas que antes considerava muito difíceis, como me pareceu também, próximo ao fim, que podia determinar, até mesmo naquelas que ignorava, por quais meios e até onde seria possível resolvê-las. 

No que, talvez, não vos afigurarei muito vaidoso, se considerardes que, existindo somente uma verdade de cada coisa, aquele que a encontrar conhece a seu respeito tanto quanto se pode conhecer; e que, por exemplo, uma criança instruída na aritmética, que haja realizado uma adição de acordo com as regras, pode ter certeza de haver encontrado, no que concerne à soma que analisava, tudo o que o espírito humano poderia encontrar. 

Pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo quanto dá certeza às regras da aritmética. No entanto, o que mais me satisfazia nesse método era o fato de que, por ele, tinha certeza de usar em tudo minha razão, se não à perfeição, ao menos o melhor que eu pudesse; ademais, sentia, ao utilizá-lo, que meu espírito se habituava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e que, não o havendo sujeitado a nenhuma matéria em especial, prometia a mim mesmo empregá-lo com a mesma utilidade a respeito das dificuldades das outras ciências como o fizera com as da álgebra. Não que me atrevesse a empreender primeiramente a análise de todas as que se me apresentassem, pois isso seria contrário à ordem que ele prescreve. 

Porém, havendo percebido que os seus princípios deviam ser todos tomados à filosofia, na qual até então não encontrava sequer um que fosse correto, pensei que seria preciso, em princípio, tentar ali estabelecê-los; e que, sendo isso a coisa mais importante do mundo, e em que a pressa e a prevenção eram mais de recear, não devia pôr em execução sua realização antes de atingir uma idade bem mais madura do que a dos 23 anos que eu tinha naquela época e antes de ter gasto muito tempo em preparar-me para isso, tanto extirpando de meu espírito todas as más opiniões que nele dera acolhida até então, como reunindo numerosas experiências para servirem logo depois de matéria aos meus processos racionais, e adestrando-me no método que me preceituara, com o propósito de me fixar sempre mais nele.

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TERCEIRA PARTE
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AFINAL, COMO não é suficiente, antes de dar início à reconstrução da casa onde residimos, demoli-la, ou munir-nos de materiais e contratar arquitetos, ou habilitar-nos na arquitetura, nem, além disso, termos efetuado com esmero o seu projeto, é preciso também havermos providenciado outra onde possamos nos acomodar confortavelmente ao longo do tempo em que nela se trabalha. 

Da mesma maneira, para não hesitar em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a fazê-lo, em meus juízos, e a fim de continuar a viver desde então de maneira mais feliz possível, concebi para mim mesmo uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos anunciar. 

A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo-me na religião na qual Deus me concedera a graça de ser instruído a partir da infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, de acordo com as opiniões mais moderadas e as mais distantes do excesso, que fossem comumente aceitas pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de conviver. Porquanto, começando desde então a não me valer para nada de minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter todas a análise, estava convencido de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos. 

E, a despeito de que talvez existam, entre os persas e chineses, homens tão sensatos como entre nós, afigurava-se-me que o mais útil seria orientar-me por aqueles entre os quais teria de viver; e que, para saber quais eram realmente as suas opiniões, devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que diziam; não apenas porque, na corrupção de nossos costumes, existem poucas pessoas que queiram dizer tudo o que pensam, mas também porque muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a ação do pensamento, pela qual se acredita numa coisa, distinta daquela pela qual se sabe que se acredita nela, repetidas vezes uma se apresenta sem a outra. 

E, entre várias opiniões igualmente aceitas, escolhia somente as moderadas: tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática, e provavelmente as melhores, já que todo excesso costuma ser mau, como também para me desviar menos do verdadeiro caminho, caso eu falhasse, do que, havendo escolhido um dos extremos, fosse o outro aquele que eu deveria ter seguido. 

E, em especial, punha entre os excessos todas as promessas pelas quais se restringe em algo a própria liberdade. Não que desaprovasse as leis que, para corrigir a inconstância dos espíritos fracos, permitem, quando se possui algum bom propósito, ou mesmo, para a segurança das relações sociais, alguma intenção que seja apenas indiferente, que se façam promessas solenes ou contratos que obriguem a persistir nela; mas porque não via no mundo nada que continuasse sempre no mesmo estado, e porque, no meu caso particular, como prometia a mim mesmo aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e de maneira alguma torná-los piores, pensaria cometer grande falta contra o bom senso, se, pelo fato de ter aprovado então alguma coisa, me sentisse na obrigação de tomá-la como boa ainda depois, quando deixasse talvez de sê-lo, ou quando eu parasse de considerá-la tal. 

Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitava nisso os viajantes que, estando perdidos numa floresta, não devem ficar dando voltas, ora para um lado, ora para outro, menos ainda permanecer num local, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por quaisquer motivos, ainda que no início só o acaso talvez haja definido sua escolha: pois, por este método, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão a algum lugar onde provavelmente estarão melhor do que no meio de uma floresta. 

E, assim como as ações da vida não suportam às vezes atraso algum, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o distinguir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo que não percebamos em umas mais probabilidades do que em outras, devemos, sem embargo, decidir-nos por algumas a considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verdadeiras e corretas, visto que a razão que a isso nos induziu se apresenta como tal. 

E isto me consentiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e hesitantes que se deixam levar a praticar, como boas, as coisas que em seguida consideram más. 

Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de habituar-me a acreditar que nada existe que esteja completamente em nosso poder, salvo os nossos pensamentos, de maneira que, após termos feito o melhor possível no que se refere às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. 

E somente isso me parecia suficiente para impossibilitar-me, no futuro, de desejar algo que eu não pudesse obter, e, assim, para me tornar contente. 

Pois, a nossa vontade, tendendo naturalmente para desejar apenas aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis, é certo que, se considerarmos igualmente afastados de nosso poder todos os bens que se encontram fora de nós, não deploraremos mais a falta daqueles que parecem dever-se ao nosso nascimento, quando deles formos privados sem termos culpa, do que deploramos não possuir os remos da China ou do México; e que fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos, estando doentes, ou estar livres, estando presos, do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou asas para voar como as aves. 

Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma meditação freqüentemente repetida para nos habituarmos a olhar todas as coisas por este ângulo; e acredito que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos, que puderam em outros tempos esquivar-se do império do destino e, apesar das dores e da pobreza, pleitear felicidade aos seus deuses. 

Pois, ocupando-se continuamente em considerar os limites que lhes eram impostos pela natureza, convenceram-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos, que só isso bastava para impossibilitá-los de sentir qualquer afeição por outras coisas; e os utilizavam tão absolutamente que tinham neste caso especial certa razão de se julgar mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens, os quais, não tendo esta filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pelo destino, nunca são senhores de tudo o que desejam. 


Por fim, para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as diferentes ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem pretender dizer nada a respeito das dos outros, achei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me encontrava, ou seja, utilizar toda a minha existência em cultivar minha razão, e progredir o máximo que pudesse no conhecimento da verdade, de acordo com o método que me determinara. 


Eu sentira tão grande felicidade, a partir do momento em que começara a servir-me deste método, que não acreditava que, nesta vida, se pudessem receber outros mais doces, nem mais inocentes; e, descobrindo todos os dias, por seu intermédio, algumas verdades que me pareciam deveras importantes e geralmente ignoradas pelos outros homens, a satisfação que isso me proporcionava preenchia de tal forma meu espírito que tudo o mais não me atingia. 

Além do que, as três máximas precedentes se baseavam apenas no meu intento de continuar a me instruir: pois, tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para diferenciar o verdadeiro do falso, não julgaria dever satisfazer-me um único instante com as opiniões dos outros, se não tencionasse utilizar o meu próprio juízo em analisá-las, quando fosse tempo; e não saberia dispensar-me de escrúpulos, ao segui-las, se não esperasse não perder com isso oportunidade alguma de encontrar outras melhores, caso existissem. 

E, enfim, não saberia cercear os meus desejos, nem estar contente, se não tivesse percorrido um caminho pelo qual, julgando estar seguro da aquisição de todos os conhecimentos de que fosse capaz, pensava estar também, pelo mesmo método, seguro da aquisição de todos os verdadeiros bens que em alguma ocasião se encontrassem ao meu alcance; tanto mais que, a nossa vontade não estando propensa a seguir ou fugir a qualquer coisa, a não ser se o nosso entendimento a represente como boa ou má, é suficiente bem julgar para bem agir, e julgar o melhor possível para também agir da melhor maneira, ou seja, para adquirir todas as virtudes e, ao mesmo tempo, todos os outros bens que se possam adquirir; e, quando se tem certeza de que é assim, não se pode deixar de ficar contente. 

Depois de haver-me assim assegurado destas máximas, e de tê-las separado, com as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença, julguei que, quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente procurar desfazer-me delas. 

E, como esperava chegar melhor ao fim dessa tarefa conversando com os homens, do que prosseguindo por mais tempo fechado no quarto aquecido onde me haviam surgido esses pensamentos, recomecei a viajar quando o inverno ainda não terminara. 

E, em todos os nove anos que se seguiram, não fiz outra coisa a não ser girar pelo mundo, daqui para ali, tentando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam; e, refletindo particularmente, em cada matéria, sobre o que podia torná-la suspeita e propiciar a oportunidade de nos enganarmos, ao mesmo tempo extirpava do meu espírito todos os equívocos que até então nele se houvessem instalado. 

Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam só por duvidar e fingem ser sempre indecisos: pois, ao contrário, todo o meu propósito propendia apenas a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila. 

O que consegui muito bem, quer me parecer, ainda mais que, procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que analisava, não por fracas conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não encontrava nenhuma tão duvidosa que dela não tirasse sempre alguma conclusão bastante correta, na pior da hipóteses a de que não continha nada de correto. 

E, da mesma maneira que ocorre ao demolir uma velha casa, conservam-se comumente os entulhos para serem utilizados na construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal alicerçadas, fazia diversas observações e adquiria muitas experiências, que me serviram mais tarde para estabelecer outras mais corretas. 

E, além disso, continuava a praticar no método que me preceituara; pois não apenas tomava o cuidado de, em geral, dirigir todos os meus pensamentos conforme as suas regras, como reservava, de tempos em tempos, algumas horas, que utilizava especialmente em aplicá-los nas dificuldades de matemática, ou também em algumas outras que eu podia tornar quase parecidas às das matemáticas, separando-as de todos os princípios das outras ciências, que eu não considerava suficientemente sólidos, como vereis que procedi com várias que são explicadas neste volume. 

E deste modo, aparentemente sem viver de maneira diferente daqueles que, não tendo outra ocupação exceto levar uma vida suave e inocente, procuram isolar os prazeres dos vícios, e que, para usufruir seus lazeres sem se aborrecer, usam todos os divertimentos que são honestos, não deixava de perseverar em meu intento e de progredir no conhecimento da verdade, mais talvez do que se me restringisse a ler livros ou frequentar homens de letras. 

Ainda assim, esses nove anos decorreram antes que eu tivesse tomado qualquer resolução no que concerne às dificuldades que costumam ser discutidas entre os eruditos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma filosofia mais correta do que a trivial. 

E o exemplo de numerosos espíritos elevados que, tendo se proposto anteriormente esse desígnio, não haviam conseguido, a meu ver, realizá-lo, levava-me a imaginar tantas dificuldades que não teria talvez me atrevido empreendê-lo tão cedo, se não tivesse conhecimento de que alguns já faziam correr a informação de que eu já o levara a cabo. 

Não saberia dizer em que baseavam esta opinião; e, se para isso contribuí em alguma coisa com meus discursos, deve ter sido por confessar neles aquilo que eu ignorava, com mais ingenuidade do que costumam fazer os que estudaram um pouco, e, e possível, também por mostrar os motivos que tinha de duvidar de muitas coisas que os outros julgam corretas, do que por me vangloriar de qualquer doutrina. 

Porém, tendo o coração bastante brioso para não desejar que me tomassem por alguém que eu não era, pensei que devia esforçar-me, por todos os meios, a fim de tornar-me merecedor da reputação que me conferiam; e faz exatamente oito anos que esse desejo me impeliu a distanciar-me de todos os lugares em que pudesse ter conhecidos, e a retirar-me para cá, para um país onde a longa duração da guerra levou a estabelecer tais ordens, que os exércitos nele mantidos parecem servir apenas para que os frutos da paz sejam usufruídos com tanto mais segurança, e onde, em meio a um grande povo muito ativo e mais zeloso de seus próprios assuntos, do que curioso com os dos outros, sem sentir necessidade de nenhuma das comodidades que existem nas cidades mais desenvolvidas, pude viver tão solitário e isolado como nos desertos mais longínquos.

Acesse aqui as partes 4, 5 e 6
(DISCURSO DO MÉTODO - R.DESCARTES)

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