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FILOPARANAVAÍ

terça-feira, 3 de março de 2020

Ser social, mundo do trabalho e sociedade



HOMEM E NATUREZA 

A inteligência animal é concreta, porque, de certa maneira, acha-se presa à experiência vivida. Por exemplo, se o macaco utilizar um bambu para alcançar a fruta, mesmo assim não existirá esforço de aperfeiçoamento que se assemelhe ao processo cultural humano. 

Recentemente, pesquisas realizadas no campo da etologia têm mostrado que alguns tipos de chimpanzés conseguem fazer utensílios, e criam complexas organizações sociais baseadas em formas elaboradas de comunicação. As conclusões dessas pesquisas tendem a atenuar a excessiva rigidez das antigas concepções sobre a distinção entre instinto e inteligência e entre inteligência animal e humana. Mas essas habilidades não levam os animais superiores a ultrapassar o mundo natural, caminho esse exclusivo da aventura humana. Só o homem é transformador da natureza, e o resultado dessa transformação se chama cultura. 

Eis aí a diferença fundamental entre o homem e os animais. Mas, para produzir cultura, o homem precisa da linguagem simbólica. Os símbolos são invenções humanas por meio das quais o homem pode lidar abstratamente com o mundo que o cerca. Depois de criados, entretanto, eles devem ser aceitos por todo o grupo e se tomam a convenção que permite o diálogo e o entendimento do discurso do outro.

Os símbolos permitem o distanciamento do mundo concreto e a elaboração de ideias abstratas: com o signo "casa", por exemplo, designamos não só determinada casa, mas qualquer casa. Além disso, com a linguagem simbólica o homem não está apenas presente no mundo, mas é capaz de representá-lo: isto é, o homem torna presente aquilo que está ausente. A linguagem introduz o homem no tempo, porque permite que ele relembre o passado e antecipe o futuro pelo pensamento. Ao fazer uso da linguagem simbólica, o homem torna possível o desenvolvimento da técnica e, portanto, do trabalho humano, enquanto forma sempre renovada de intervenção na natureza. Ao reproduzir as técnicas já utilizadas pelos ancestrais e ao inventar outras novas — lembrando o passado e projetando o futuro -o homem trabalha. 

Chamamos trabalho humano a ação dirigida por finalidades conscientes e pela qual o homem se torna capaz de transformar a realidade em que vive. 

TORNAR-SE HOMEM 

O homem não nasce homem, pois precisa da educação para se humanizar. Muitos são os exemplos dados por antropólogos e psicólogos a respeito de crianças que, ao crescerem longe do contato com seus semelhantes, permaneceram como se fossem animais. 

Na Alemanha, no século passado, foi encontrado um rapaz que crescera absolutamente isolado de todos. Kaspar Hauser, como ficou conhecido, permaneceu escondido por razões não esclarecidas. Como ninguém o ensinara a falar, só se tornou propriamente humano quando sua educação teve início. Nessa ocasião ficou constatado que possuía inteligência excepcional, até então obscurecida pelo abandono a que fora relegado. O caso da americana Helen Keller é similar, embora as circunstâncias sejam diferentes. Nascida cega, surda e muda, mesmo vivendo entre seus familiares a menina permaneceu afastada do mundo humano até os sete anos de idade, quando a professora Anne Sullivan lhe tornou possível a compreensão dos símbolos, introduzindo-a no mundo propriamente humano. 

Esses casos extremos servem para ilustrar o processo comum pelo qual cada criança recebe a tradição cultural, sempre mediada pelos outros homens, com os quais aprende os símbolos e torna-se capaz de agir e compreender a própria experiência. 

A linguagem simbólica e o trabalho constituem, assim, os parâmetros mais importantes para distinguir o homem dos animais. Vamos, então, reforçar algumas características desse "estar no mundo" tão típico do ser humano. 

Não se pode dizer que o homem tem instintos como os dos animais, pois a consciência que tem de si próprio o orienta, por exemplo, para o controle da sexualidade e da agressividade, submetidas de início a normas e sanções da coletividade e posteriormente assumidas pelo próprio indivíduo. O homem foi "expulso do paraíso" a partir do momento em que deixou de se instalar na natureza da mesma forma que os animais ou as coisas. Assim, o comportamento humano passa a ser avaliado pela ética, pela estética, pela religião ou pelo mito. Isso significa que os atos referentes à vida humana são avaliados como bons ou maus, belos ou não, pecaminosos ou abençoados por Deus, e assim por diante. 

Essa análise é válida para qualquer outra ação humana: andar, dormir, alimentar-se não são atividades puramente naturais, pois estão marcadas pelas soluções dadas pela cultura e, posteriormente, pela crítica que o homem faz à cultura. 

Ao definir o trabalho humano, assinalamos um binômio inseparável: o pensar e o agir. Toda ação humana procede do pensamento, e todo pensamento é construído a partir da ação. A capacidade de alterar a natureza por meio da ação consciente torna a situação humana muito específica, por estar marcada pela ambiguidade e instabilidade. 

A condição humana é de ambiguidade porque o ser do homem não pode ser reduzido a uma compreensão simples, como aquela que temos dos animais, sempre acomodados ao mundo natural e, portanto, idênticos a si mesmos. O homem é o que a tradição cultural quer que ele seja e também a constante tentativa de ruptura da tradição. Assim, a sociedade humana surge porque o homem é um ser capaz de criar interdições, isto é, proibições, normas que definem o que pode e o que não pode ser feito. No entanto, o homem é também um ser capaz de transgressão. Transgredir é desobedecer. Não nos referimos apenas à desobediência comum, mas àquela que rejeita as fórmulas antigas e ultrapassadas para instalar novas normas, mais adequadas às necessidades humanas diante dos problemas colocados pelo existir. A capacidade inventiva do homem tende a desalojá-lo do "já feito", em busca daquilo que "ainda não é". Portanto, o homem é um ser da ambiguidade em constante busca de si mesmo.

E é por isso que o homem é também um ser histórico, capaz de compreender o passado e projetar o futuro. Saber aliar tradição e mudança, continuidade e ruptura, interdição e transgressão é um desafio constante na construção de uma sociedade sadia.

O TRABALHO E O SER SOCIAL

Ao longo do tempo, o trabalho foi considerado uma categoria fundante do ser social por haver transformado a relação do homem com a natureza por meio do desenvolvimento de forças produtivas em um processo coletivo, que ocorre dentro de um movimento em que o homem produz a sociedade e é também produzido por ela, tendo o trabalho importante papel na organização de toda a vida social, como indica Gorz: a característica mais importante desse trabalho – aquele que ‘temos’, ‘procuramos’, ‘oferecemos’ – é ser uma atividade que se realiza na esfera pública, solicitada, definida e reconhecida útil por outros além de nós e, a este título, remunerada. É pelo trabalho remunerado (mais particularmente, pelo trabalho assalariado) que pertencemos à esfera pública, adquirimos uma existência e uma identidade sociais (isto é, uma “profissão”), inserimo-nos em uma rede de relações e de intercâmbios, onde a outros somos equiparados e sobre os quais vemos conferidos certos direitos, em troca de certos deveres. O trabalho socialmente remunerado e determinado – mesmo para aqueles e aquelas que o procuram, para aqueles que a ele se preparam ou para aqueles a quem falta trabalho – é, de longe, o fator mais importante da socialização. Por isso, a sociedade industrial pode perceber a si mesma como uma ‘sociedade de trabalhadores’, distinta de todas as demais que a precederam. (GORZ, 2003, p. 21). 

Entretanto, a fragmentação do trabalho e da articulação da classe trabalhadora, além da flexibilização do trabalho na sociedade contemporânea, são importantes questões a serem consideradas no que diz respeito ao sentido que o trabalho adquire para o sujeito nesta sociedade. Também vale pensar quem é o sujeito neste novo cenário do mundo do trabalho, em que as relações estão se modificando, bem como os paradigmas relacionados à centralidade do trabalho. Surge, então, o questionamento sobre o trabalho como categoria chave na sociedade.

Para Offe (1994), a identidade coletiva, bem como a divisão social e política, não são mais baseadas somente no trabalho assalariado e na dependência do sujeito em relação a ele. O autor aponta ainda a fragilização da ideia do trabalho como dever, ou seja, elemento essencial de uma vida correta e de um sujeito moralmente bom, ou como necessidade, de maneira que o trabalho se apresente simplesmente como condição para a sobrevivência. Assim, o trabalho como dever humano ético e seu poder coercitivo podem estar se desintegrando.

Porém, de acordo com Antunes (2006), as lutas sociais persistem e, ainda que presenciando uma redução quantitativa (com repercussões qualitativas) no mundo produtivo, o trabalho abstrato cumpre papel decisivo na criação de valores de troca. As mercadorias geradas no mundo do capital resultam da atividade (manual e/ou intelectual) que decorre do trabalho humano em interação com os meios de produção. (ANTUNES, 2006, p. 83).

O autor esclarece que, para admitir ou não a existência de uma crise na sociedade do trabalho abstrato, é preciso pensar sobre a lógica do capital e sobre o sistema produtor de mercadorias como motor da sociedade econômica, e conclui que “as mudanças em curso no processo de trabalho, apesar de algumas alterações epidérmicas, não eliminam os condicionantes básicos desse fenômeno social”.

Diante das análises dos autores, podemos perceber o quanto os temas em relação ao trabalho e suas representações para o sujeito e para a sociedade são cercados de controvérsias e diferentes possibilidades de construção devido à complexidade dos valores e dos significados que atribuem sentido e edificam as estruturas da vida em sociedade.

O constante movimento e o fluxo da realidade social exigem permanente reflexão e reavaliação sobre os aspectos do trabalho e seu lugar na sociedade.

CONCLUSÃO 

Estudamos aqui o caráter fundante do trabalho no mundo dos homens. Vimos que o homem, ao trabalhar, enquanto um agir de forma intencionalizada e consciente sobre a natureza, com a finalidade de transformá-la, se diferencia radicalmente dos animais. Ao planejarem o ato de trabalho, isto é a transformação da natureza para atender as necessidades materiais de sobrevivência, os indivíduos conseguem, por intermédio da consciência, se distinguir dos animais que realizam instintivamente sempre a mesma coisa, orientados mediante uma consciência epifenomênica. Confrontando-se com as novas necessidades desembocadas no trabalho, mas que, tendencialmente remetem-se para além dele mesmo, o desenvolvimento da sociedade impõe aos homens novas situações e suscita novas maneiras de satisfazê-las, de modo que se afastam da satisfação puramente biológica, por meio de um processo estruturalmente social, sem dela romper totalmente. Por meio desse processo, a base biológica da vida é cada vez mais sociabilizada, ao passo em que o desenvolvimento da sociedade vai moldando características qualitativamente diferenciadas no ser social, constituindo este como uma esfera ontológica cada vez mais distinta da natureza. Em suma, o caminho aqui percorrido nos leva a defesa, com base nos autores estudados, de que o trabalho é, de forma genérica, em sentido ontológico, o modo pelo qual os seres humanos produzem a sua humanidade, ou seja, produzem e reproduzem a sua existência. Por via dele, tem-se início o processo de humanização do homem enquanto um processo histórico-social que se complexifica ao longo do desenvolvimento das diferentes formações sociais. É por mediação desse processo que o gênero sai da sua mudez, afastando-se das determinações filogenéticas. A sociedade passa a se constituir, portanto, a partir de uma cadeia de mediações, enquanto “médium ineludível da mediação entre homem e natureza” (LUKÁCS, 1981b, p. 39). 

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. Qual a Crise da Sociedade do Trabalho? In: _________. Adeus ao Trabalho?11 ed. São Paulo, Cortez; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. 

GORZ, André. Primeira Parte. In: _________. Metamorfoses do Trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo, Annablume, 2003.

OFFE, Claus. Trabalho: categoria sociológica chave? In: _________. Capitalismo desorganizado. 2 ed. São Paulo, Brasiliense, 1994.

LUKÁCS, György. L’ Riproduzione, Ontologia dell’essere sociale. Vol. II, versão italiana de Alberto Scarponi. Roma, Riuniti, 1981b. Tradução de Sérgio Lessa. 

A condição humana (Homem e Natureza p. 27-29) ARANHA Maria Lúcia de Arruda, MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. 2.ed. São Paulo: Moderna, s.d.

O trabalho e o ser social. Disponível em https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/administracao/o-trabalho-e-o-ser-social/49082. Acesso: 16 Fev. 2020.

TRABALHO E SER SOCIAL: UMA RELAÇÃO GENÉTICA Fernando de Araújo Bezerra. Disponível em https://seminarioservicosocial2017.ufsc.br/files/2017/04/Eixo_1_198_2.pdf. Acesso: 16 Fev. 2020.

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