PUBLICAÇÃO ORIGINAL: http://diplomatique.org.br/
Ao contrário do discurso liberal e das grandes corporações de mídia, a corrupção não é um desvio na política que possa ser corrigido pelo lado moral, mas forma essencial e necessária de funcionamento do Estado no capitalismo.
Quando, nos séculos XVII e XVIII, a burguesia europeia ansiava por ocupar seu espaço no poder monopolizado pela nobreza e o clero, os ideais democráticos e republicanos foram bandeiras empunhadas por seus representantes e estiveram, portanto, vinculados ao sistema capitalista em sua fase de afirmação como sistema hegemônico.
Porém, após as revoluções e guerras que a levaram à conquista do poder em diversos países e ao domínio do continente europeu e de suas colônias, a burguesia teve outra preocupação que substituiu o esforço de criação de Estados que concretizassem aqueles ideais. A grande questão passou a ser como gerir esses Estados sem que as ideias de poder popular, participação política, igualdade de direitos, vontade geral, coisa pública, etc. fossem estendidas aos trabalhadores.
Se a defesa da democracia fosse realmente levada às últimas consequências, os trabalhadores teriam tanto poder quanto os burgueses e, por constituírem a maioria na sociedade, acabariam por ditar os rumos da política – o que comprometeria a ordem capitalista.
Na democracia da Grécia antiga, para evitar problema semelhante, bastou aos gregos excluir os escravos do direito de cidadania sem lhes dar qualquer satisfação. A ordem escravagista foi mantida quando a democracia se restringiu à participação dos homens livres nas decisões.
Porém, o mesmo não poderia acontecer com relação aos trabalhadores na Europa moderna, pois eles também haviam participado das revoluções, lutaram com os burgueses contra a nobreza e o clero, tinham suas organizações e propostas a serem defendidas. Sua exclusão do processo democrático não seria tão simples e aproblemática como a dos escravos nas cidades gregas antigas e tampouco poderia ser defendida teoricamente de maneira tão explícita quanto o fizeram, por exemplo, Platão e Aristóteles. Era preciso mais sutileza para se manter o discurso da democracia e, ao mesmo tempo, afastar os riscos que ela poderia oferecer à ordem econômica.
Uma das maneiras de se lograr esse intento foi a redução da democracia à ideia de representação. Primeiro criou-se um Estado que seria, teoricamente, representante da totalidade da sociedade, um terceiro em relação às divisões econômicas de classes. Assim, o exercício do poder não estaria diretamente nas mãos de empresários, banqueiros, rentistas e proprietários de terras, mas de representantes escolhidos pela população em geral para a gestão de um Estado neutro, supostamente acima das disputas sociais.
Todos os princípios da democracia foram reduzidos à democracia representativa, limitando o poder político dos cidadãos ao direito de escolher representantes por meio do sufrágio. A ideia da representação, ou seja, a delegação temporária de poderes decisórios a terceiros, só faz sentido em sistemas democráticos se for concebida como um “elemento estranho”, um “mal necessário” para fazer uma ponte entre o ideal (a democracia direta pura) e o real (as dificuldades do processo decisório nas complexas sociedades modernas), criando, assim, o possível (o exercício da soberania popular por meio de representantes submetidos à vontade dos que os escolheram).
No entanto, nas democracias burguesas a instituição da representação adquiriu um fim em si mesma. Ao invés de se escolher representantes para servirem como meio para o exercício do poder de toda a sociedade, a democracia se diluiu na escolha de representantes e a eles foi dada a função de exercer o poder em sua totalidade. Ao final, não são os cidadãos que exercem a soberania, mas os eleitos (supostamente os mais capazes, os melhores = aristós), criando uma aristocracia com o nome de democracia.
Nesse modelo de sistema político, os setores sociais que conseguem controlar os representantes eleitos são os que realmente detêm a soberania. Uma vez que esse controle é exercido geralmente por quem tem mais dinheiro (para investir em campanhas, pautar a mídia, bancar propinas e mesadas para os eleitos, fazer lobby, etc.) a aristocracia se degenera em uma plutocracia (plutos = rico). Não raro, o controle sobre eleitos se exerce pelos que enriquecem e mantém seu status por meios ilícitos e criminosos, que vão desde as fraudes e favorecimentos em concorrências e licitações até o tráfico de drogas e armas, passando por grilagens de terras, exploração de trabalho escravo, etc., caso em que se estabelece uma cleptocracia (kleptós = ladrão).
Nas sociedades atuais, é praticamente impossível diferenciar esses dois termos, visto que no mundo das corporações os capitais oriundos da criminalidade, do narcotráfico, do contrabando de armas, da especulação financeira, da produção e dos serviços se mesclam e interagem, criando uma classe onde os criminosos de colarinho branco convivem com empresários, banqueiros, especuladores, latifundiários e rentistas – quando não são as mesmas pessoas a exercer esses diferentes papéis.
O problema é que controlar um poder concedido a terceiros com relativa autonomia traz mais exigências do que exercer diretamente o poder. Para se eleger as pessoas certas que ocuparão o Estado é preciso investir dinheiro em campanhas e na formação da consciência social, de maneira que o sufrágio não conduza ao poder os representantes dos trabalhadores. Isso exige doações legais e ilegais para partidos e candidatos, o que cria um sistema desigual e corrupto. Desigual por conceder a uns maiores condições de campanha e vitória, em função do dinheiro disponível, o que quebra o princípio da isonomia. Corrupto em função da ilegalidade e origem das doações de maior porte que resultam em maior poder de influência.
Além disso, é necessário manter o controle sobre os eleitos, para que as decisões administrativas tomadas e as leis aprovadas no espaço oficial da política reflitam o que é decidido nos espaços deliberativos do capital (as diversas entidades representativas das corporações e seus fóruns de discussão), sejam favoráveis ao sistema econômico e atenda suas exigências mesmo quando elas implicarem sacrifícios enormes para a maioria da população. A manutenção de tal controle implica gastos com lobistas e, dado o caráter dos que entram na política para esse tipo de serviço (geralmente pessoas de moral frouxa e bolso insaciável), exige propinas, presentes, vantagens e mesadas generosas.
A necessidade de manter o Estado a serviço apenas de uma classe institucionaliza a corrupção e a torna parte integrante do próprio sistema político no capitalismo, e não uma falha nas pessoas que possa ser corrigida por via moral. O controle dos representantes exercido pelos distintos setores do capitalismo em um espaço de relativa autonomia (o Estado) obriga o pagamento (ilegal) dos serviços políticos prestados pelos eleitos.
A corrupção, portanto, é uma questão de sobrevivência do capitalismo. Uma maneira de permitir a ilusão da democracia, enquanto os detentores do capital exercem o poder sem a participação dos trabalhadores.
Quando, porém, esse mecanismo falha, é necessário outro caminho, que inclui a suspensão da própria democracia. Mas isso é tema para um próximo artigo.
Maurício Abdalla é professor de filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo
Filoparanavaí 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário