Fim da obrigatoriedade de filosofia e sociologia gera ensino mutilado
Na semana passada, o relator da medida provisória sobre as modificações
do ensino médio, editada por aquilo que alguns chamam de "governo", fez
algumas considerações a respeito de suas preferências. Dentre elas, ele
sugere que as disciplinas de filosofia e sociologia deixem de ser
disciplinas de fato e se transformem em "conteúdos transversais"
lecionados em aulas de história. Ou seja, mesmo que seus filhos escolham
seguir uma concentração em ciências humanas, tais conteúdos não seriam
mais oferecidos como disciplinas autônomas, o que vai contra todo o
discurso a respeito de oferecer mais condições para os alunos
aprofundarem seus interesses efetivos.
Essa consideração do
senhor relator nos leva, no entanto, a colocar questões a respeito da
importância do ensino de filosofia e sociologia para adolescentes.
Afinal, devem nossos adolescentes aprender filosofia e sociologia? Pois é
claro que a proposta de reduzi-las a "conteúdos transversais" é apenas
uma maneira um pouco mais cínica de retirá-las. Um professor de
história, embora possa e deva conhecer questões de filosofia e
sociologia que são pertinentes a seu objeto de estudo, não teria
condições de tratar de tais conteúdos com a profundidade devida à
docência.
Na verdade, o que procura se colocar é que filosofia e
sociologia não são tão relevantes assim e poderiam muito bem ser
eliminadas como disciplinas. Seus filhos poderiam muito bem viver sem
elas. Mas coloquemos a questão implícita neste debate na sua forma
correta, a saber: por que há setores da sociedade brasileira que se
incomodam tanto com seus filhos aprendendo filosofia e sociologia?
Poderíamos contra-argumentar dizendo não se tratar de incômodo, mas de
uma simples análise de prioridades. A prioridade na formação seria
garantir a empregabilidade e a qualificação técnica. Nesse sentido, há
de se cortar o que é supérfluo. Por outro lado, os estudantes
brasileiros são sempre mal avaliados em disciplinas básicas, como
línguas e matemática. Melhor então focar o essencial.
No entanto,
tais argumentos não se sustentam. Limitar nossos alunos ao básico não é
o melhor caminho para levá-los a lidar com realidades complexas e em
mutação, como são nossas sociedades contemporâneas. Eles não conseguirão
tomar melhores decisões com uma formação mais limitada. Por outro lado,
se seus conhecimentos de línguas e matemática são deficitários, não é
por alguma forma de "excesso" de disciplinas, mas pela péssima qualidade
de nossas escolas, pela precarização de nossos professores (só o Estado
de São Paulo perdeu 44.500 professores apenas nos últimos dois anos) e
pela ausência de cultura literária de muitas famílias.
Nesse
sentido, há de se lembrar o que significa aprender filosofia e
sociologia. O ensino da filosofia, por exemplo, pressupõe o
desenvolvimento de algumas habilidades fundamentais. Lembremos de ao
menos três: a capacidade de constituir problemas a partir da crítica a
pressupostos aparentemente naturalizados, a capacidade de articular
problemas em campos aparentemente dispersos, desenvolvendo assim um
forte pensamento de relações e quebrando a tendência atual em isolar o
pensamento em especialidades incomunicáveis. Isto significa ser capaz,
por exemplo, de compreender como questões éticas têm relações com
questões de teoria do conhecimento, de estética, de política e de
lógica, entre outras.
Por fim, e esta é sua característica mais
impressionante, o aprendizado da filosofia pressupõe a capacidade de
pensar como um outro. Lembro-me de um professor que, ao ver muita pressa
em "refutar" Descartes, olhou para mim com sua sabedoria costumeira e
disse: "Veja, não é possível ler um filósofo com luvas de boxe". Ou
seja, é necessário saber, por um momento, pensar como um outro, até para
poder se contrapor com mais propriedade.
Bem, é isto que alguns
querem que seus filhos não aprendam. Eles sabem muito bem por que querem
isso. Temo que o verdadeiro objetivo não tenha relação alguma com o
futuro profissional de seus filhos. Temo que, no fundo, queira-se calar,
de uma vez por todas, o projeto de alguns de nossos maiores filósofos,
como Condorcet, quem dizia: "A função da educação pública é tornar o
povo indócil e difícil de governar".
Artigo do Filósofo Vladimir Safatle*
Fonte: CONVERSA AFIADA
Se na sua discussão política a preocupação pelos pobres não está presente,não importa seus argumentos,não compartilho a sua posição. [Jung Mo Sung]
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