ACESSE O ARQUIVO DO BLOG
FILOPARANAVAÍ

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Nietzsche afirmou que 'Deus está morto' e eu pergunto: Deus ainda está vivo?

"Dieu est mort", dit Nietzsche. 
"Nietzsche vit!" Dieu dit.
  [Lucio Lopes] 

Essa imagem é da atriz Viviany Beleboni, uma transexual em performance na 19ª Parada Gay, no ano de 2015, que acirrou os ânimos dos religiosos ultra-conservadores - que se colocaram a polemizar nas redes sociais contra a atriz que chegou a ser vítima de violência - incapazes de compreenderem a mensagem que buscava transmitir através de sua obra de arte. Difícil uma sociedade onde você precisa explicar obra de arte.
Nietzsche afirmou que 'Deus está morto' 
e eu pergunto: Deus ainda está vivo?
Por Lucio LOPES

Hoje é feriado no Brasil. Um daqueles tantos feriados religiosos mais católico do que cristão e que ainda persiste cravado em nosso calendário civil, mesmo depois de 100 anos de laicidade do Estado.

Os católicos têm por preceito religioso a abstinência de carne no dia de hoje. Eu não sou católico e nem cristão e, portanto, estou livre deste preceito. Mas hoje, aqui em casa, como minha mãe é católica, repeitarei esse preceito. Porém, penso que mais importante do que essa abstinência é pensar a situação de  milhões de brasileiros/as que são por consequência da pobreza e miséria privados da ingesta desta fonte de proteínas o ano inteiro. Como nos mobilizarmos, como homens e mulheres do Deus da vida, pela ética e pela política, para combatermos as desigualdades sociais?

Em uma sociedade, como a brasileira, marcada por uma realidade de morte, é uma oportunidade-convite para pensarmos muitas situações que perpetuam os fenômenos da morte e atrasam a vida no meio do povo.

Como ousar chamar de cristã uma sociedade como a brasileira que tem uma  concentração de renda escandalosa? Os 10% mais ricos da população brasileira respondem por 51,5% da desigualdade de renda total do país, uma das mais altas do mundo (elpais.com). Um sinal evidente de que o 'compartilhar o pão', ensinado pelo Mestre Jesus, jamais foi uma lição compreendida pela totalidade dos  'cristãos' brasileiros.

Não sei o porquê, mas Friedrich Nietzsche com sua ideia de que "Deus está morto" e Jean-Paul Sartre com seu "Deus não existe", ou ainda karl Marx com sua ideia de que a "religião é o ópio do povo", passando ainda por Ludwig Feuerbach com sua ideia de que a "religião e Deus são criações das necessidades humanas e criados pelos humanos"; esses filósofos sempre me cativaram e me levaram a refletir o avesso da realidade. 

Mesmo quando estudante iniciante da Filosofia, na Universidade Federal do Paraná, eu nunca fui pela senda do ateísmo como costumam geralmente tomar os opositores desses maravilhosos filósofos. Nunca vi esses e outros filósofos que se ocuparam das temáticas Deus e religião, como negadores de Deus ou da própria religião, senão que muito ao contrário. 

Sempre fui da opinião que as leituras desses filósofos podem nos auxiliar a purificar nossa ideia de Deus que anda muito distorcida pela cultura hedonista da atualidade. Se na Idade Média, Deus e Religião serviram aos interesses da Igreja Católica centralizadora dos poderes compartilhados com senhores feudais e reis; hoje serve exclusivamente à burguesia financeira.

É mais fácil as pessoas recorrerem ao mágico, ao mistico, ao sobrenatural, acorrendo aos templos religiosos, com suas demandas materiais e afetivas; que acorrerem aos sindicatos, às assembleias de trabalhadores, às ruas para exigirem seus direitos atacados ou aniquilados, que acorrerem aos especialistas da psicologia ou da psiquiatria. A insegurança social, causada pelo desemprego, pobreza e miséria, violência, tende a fragilizar as pessoas, a aumentar o medo, e assim, tornam-se presas fáceis de pastores e padres, dentre outros líderes religiosos, no famoso mercado das 'mercadorias religiosas'. Tem para todos os gostos.

A religião cristã aqui entendida como todo o seu conjunto de denominações diversas, tem mais negado a Deus que o revelado ao povo. As contradições da sociedade demonstram isso.

O Deus cristão, revelado plenamente na pessoa de Jesus, é um Deus perigoso. Muito longe daquela imagem do Deus da história dos judeus relatada no Velho Testamento, o Deus de Jesus é um Deus com um projeto de sociedade revolucionário. 

Aliás, foi esse o motivo da morte de Jesus, um motivo fundamentalmente político. Ele era uma ameaça aos interesses dos poderosos da Palestina e do Império Romano. 

Jesus era um contestador das estruturas sociais de seu tempo. Dos valores aprisionadores. Da alienação. Jesus flagrantemente nos textos dos quatro evangelhos que chegaram até nós - Marcos, Lucas, João e Mateus - é adepto da racionalidade, da militância política, da ética no trato com o diverso. Um amante da humanidade. Um apologista nato do amor ao próximo ao ponto de indicar que não existe amor maior do que o daquele que dá a vida pelo irmão. Do amor humano ao ponto da loucura de perdoar e amar o inimigo - muito diferente daquilo que pregam os reacionários fascistas de nossa tempo e que se acomodam nas fileiras de igrejas. 

Ainda hoje, quando um dado cristão busca uma vida inspirada no verdadeiro projeto de sociedade ou de humanidade, orientado pelos ensinamentos de Jesus, logo cai na sina de perseguições desencadeadas pelos protetores do poder a todo custo. 

Convencionou-se chamar na mídia e no meio do povo, os defensores de Direitos Humanos e da natureza, os apologistas da igualdade social e da preservação da natureza, de esquerdistas, de comunistas. 

É o velho discurso, que apesar de desgastado pelo tempo, ainda sobrevive naqueles que se aconchegam no ninho da extrema-direita e que encontra nos interiores das igrejas cristãs, verdadeiras legiões de pessoas dispostas a reforçar a atualidade de antigos valores morais. 

O Brasil, por exemplo, vive seu dilema histórico com a eleição de um presidente de extrema-direita. Na política nega liberalismo social e abraça o neoliberalismo colocando o estado a serviço dos ricos (governo plutocrata) onde os pobres e a natureza são desprezados. No campo de ataques à ética laica ocorre um movimento de regressão no tempo em favor de velhos valores morais - influenciado por forças religiosas - capaz de atrapalhar a liberdade na diversidade em suas mais variadas dimensões, como na educação, por exemplo. 

É assustador pensar que pessoas e comunidades religiosas tenham se posicionado publicamente a favor de um candidato claramente tido como misógino, machista, homofóbico e racista,  intolerante religioso, apologista de torturadores e da tortura, com discurso de eliminar inimigos,  sendo apologista público da violência pela defesa de posse e porte de armas como justificativa de defesa.

Para pensar isso tudo, parto de uma ideia de K. Marx, que para mim é muito salutar para nossa compreensão. A ideia de que "a abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real." 

Deus está morto! 

Muitas pessoas que hoje acorrem aos templos religiosos não estão em busca do conhecimento de um Deus mais próximo de nossa natureza e da simplicidade do mundo, querem um Deus sobrenatural. Não estão em busca de conhecer e compartilhar estratégias de colocar o amor ao próximo em prática. De construir um mundo melhor onde concretamente a justiça e outros valores éticos possam tornar-se concretos nos comportamentos das pessoas e da sociedade como um todo.

Estão em busca de satisfazer necessidades pessoais. De fazer mais uma troca do que aprender a ser. Inclusive os líderes religiosos, em sua maioria, satisfazem esses fetiches.

Precisamos entender que para resgatarmos a essência da mensagem de Jesus, o revolucionário, é necessário partir da ideia de que Deus está morto. 

Mas qual Deus? 

Eu diria que o Deus cultuado pela maioria dos cristãos na atualidade. O 'Deus feito à imagem e semelhança do homem' - como especulava Feuerbach em sua Filosofia. 

Eu sempre defendi que a ruptura com o projeto revolucionário de Jesus inicia-se com o apóstolo Paulo que buscou vender a imagem de um Deus morno para os ainda não crentes. 

Um Deus que agradasse 'gregos e troianos'. Um Deus que não provocasse conflitos. Um Deus à imagem do próprio Paulo, que também era Saulo quando lhe era conveniente para superar os conflitos. Por fim, um Deus mais distante do chão dos problemas humanos. Um Deus mais espiritualizado. 

Talvez foi inspirado nessa imagem de um Deus  nem tão perigoso como imaginava-se antes, que inspirou-se o Imperador Constantino que pôs fim à sua caça aos cristãos, tornando o cristianismo religião oficial do Império. 

Justamente aquela imagem de Deus na qual se inspiram os movimentos conservadores neo-pentecostais dentro e fora da igreja Católica atual. Justamente aquela corrente mais ligada à extrema-direita na política. Aquela corrente que elege deputados e senadores para as bancadas da Bíblia no Congresso. Essa bancada negocia interesses políticos em detrimento dos interesses do povo e muitas vezes como moeda de troca busca retrocessos no valores humanos da diversidade já consolidados na sociedade. 

Sem contar o fato de que o presidente Jair Bolsonaro, reivindica para si o livre trânsito entre Católicos da Canção Nova (movimento espiritualista e que se aproxima do programa da extrema-direita), de setores das igrejas protestantes tradicionais, das novas igrejas evangélicas de linha neo como a Universal e/ou ainda que flerta com o ministro de extrema-direita de Israel, ou seja, com setores conservadores do judaísmo. Não podemos esquecer que levou o nome de Deus em seu slogan de governo. Que Deus? 

Para essa gente até o admirável Papa Francisco - com um papado marcado pela aproximação aos pobres e defesa dos direitos humanos e da natureza - tornou-se um inimigo. 

Basta lembrar que o ideólogo de extrema direita e ex-estrategista chefe do presidente dos EUA Donald Trump, Steve Bannon, aconselhou o ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, a atacar o papa sobre a questão da migração (theguardian.com). 

O Papa é apenas um exemplo que Deus vive no meio de seu povo sofredor. Luiz inácio Lula da Silva é outro grande exemplo de que aqueles que ousam ocupar-se da luta por melhores dias para o povo, especialmente para as parcelas mais sofridas, pode torna-se vítima do ódio implacável daqueles que detêm o poder por meio da alienação das massas.

Esse Deus deles é tido como um grande ditador divino que exige obediência de seus servos, que dita leis e é responsável pela verdade absoluta e unificadora. Que premia os 'bons' e vinga-se dos 'maus'. 

Inclusive isso me inspira aqui um pensamento muito oportuno: "No Inferno não haverá mais pessoas BOAS que no Céu?" 

Assim é que penso, em linhas gerais, que o Deus que está morto e que deve morrer é o Deus dominador e adestrador da Religião. O Deus da autoridade para alienar. O Deus da infantilização do homem. O Deus mercadoria do capitalismo - curandeiro e prestador de serviços para resolver problemas da vida humana. O Deus dualista que vive apartado da realidade humana em seu trono em uma dimensão sobrenatural. O Deus vingador dos pecadores. O Deus que fez opção preferencial pelos ricos. O Deus que justifica o poder dos poderosos. O Deus insensível com a morte dos pobres de seu povo. O Deus condutor das guerras contra os inimigos. O Deus justificador dos preconceitos e discriminações. O Deus subserviente e que se limita a ser compreendido a partir de uma Bíblia escrita há milhares de anos. 

Em outras palavras, Nietzsche vive justamente porque o Deus que também vive e não aquele morto, é justamente aquele que deu ao homem o Livre Arbítrio, condição para ser imagem e semelhança dele, e por isso deseja um homem com plena autonomia no pensar: nas escolhas, nas responsabilidades assumidas diante das consequências advindas das mesmas. 

Enfim, um homem plenamente livre, capaz de exercer sua liberdade sem qualquer tipo de coação social, ou seja, a sua condição de super-homem. Um homem capaz de exercer a solidariedade junto à humanidade agindo na perspectiva da construção de um mundo de liberdade, justiça e equidade. Um homem capaz de ser humano sem deixá-lo de ser. Um homem capaz de irar-se contra as injustiças desse mundo. Um homem capaz de negar a religião e o Deus desse mundo. Um homem que seja capaz de uma relação com a natureza sem estranhar sua própria condição de natureza inata. 

Um homem que seja capaz de viver uma relação de gratuidade com seu Criador. Que seja capaz de vivenciar plenamente valores éticos universais como do diálogo, do respeito, da tolerância à diversidade, da compaixão, da solidariedade, da partilha, da paz, da justiça social, da igualdade e da equidade. 

Esse Deus e esse homem são perigosos! São revolucionários! É esse Deus e esse homem que sempre temeram os poderosos de ontem e os de hoje! É o Deus dos poderosos que sempre foi decretado como morto e inexistente pelos filósofos para que pudéssemos justamente conhecer o verdadeiro Deus e o homem que deve espelhar-se na imagem desse Deus buscando a Ele assemelhar-se. 

Para nossa sorte, Deus - aquele revelado por Jesus Cristo - não está acima de tudo, Ele quis estar em meio ao povo, especialmente aos oprimidos que sofrem sob o 'poder dos opressores e de seus cúmplices', como lembrava Simone de Beauvoir. Ele continua vivo, muito vivo, entre os pobres, entre os trabalhadores, entre aqueles que são cúmplices na luta por uma sociedade mais justa, mais igual, para todos/as!

Esse Deus e esse homem são perigosos! 

Filoparanavaí 2019

Nenhum comentário: