Filosofia
Anthony Quinton
Tradução de Paulo Ruas
No Português de Portugal
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A maioria das definições de filosofia são razoavelmente controversas, em particular quando são interessantes ou profundas. Esta situação deve-se em parte ao facto de a filosofia ter alterado de forma radical o seu âmbito no decurso da história e de muitas das investigações nela originalmente incluídas terem sido mais tarde excluídas. Uma definição minimalista mas satisfatória é que a filosofia consiste em pensar sobre o pensamento. Isto permite-nos sublinhar o carácter de segunda ordem da disciplina e tratá-la como uma reflexão sobre géneros particulares de pensamento — formação de crenças e de conhecimento — sobre o mundo ou porções significativas do mundo.
Uma definição mais pormenorizada, mas ainda assim incontroversa e abrangente, é que a filosofia consiste em pensar racional e criticamente, de modo mais ou menos sistemático, sobre a natureza do mundo em geral (metafísica ou teoria da existência), da justificação de crenças (epistemologia ou teoria do conhecimento), e da conduta de vida a adoptar (ética ou teoria dos valores). Cada um dos três elementos listados possui uma contraparte não filosófica, da qual se distingue pelo seu modo de proceder explicitamente racional e crítico e pela sua natureza sistemática. Todos nós temos uma concepção geral sobre a natureza do mundo em que vivemos e do lugar que nele ocupamos. A metafísica interroga-se sobre os pressupostos que sustentam acriticamente estas concepções recorrendo a um conjunto organizado de crenças. Ocasionalmente, todos duvidamos e questionamos crenças, não só as nossas como as alheias, e fazemo-lo com mais ou menos sucesso sem possuirmos uma teoria acerca do que fazemos. O objectivo da epistemologia consiste em explicitar as regras que determinam a correcta formação de crenças e argumentar a seu favor. Também orientamos as acções com vista a objectivos e fins que valorizamos. A ética, ou filosofia moral, no sentido mais inclusivo, pretende articular, de uma forma racional e sistemática, as regras ou princípios subjacentes. (Na prática, a ética tem-se restringido aos aspectos morais da conduta e, em geral, tem tendência para ignorar a maioria das acções que praticamos em virtude de critérios de eficiência ou prudência, como se fossem demasiado básicos para justificarem um exame racional.)
As três partes principais da filosofia estão relacionadas de várias formas. Para que possamos orientar racionalmente a conduta é necessária uma concepção global do mundo onde esta se desenvolve e de nós próprios enquanto agentes nele integrados. A metafísica pressupõe a epistemologia para autenticar as formas especiais de raciocínio a que atribui confiança e também para assegurar a solidez das assunções que, em algumas variantes, é levada a fazer acerca da natureza das coisas, por exemplo, que nada provém do nada, que no mundo e na experiência que dele possuímos existe recorrência ou que a mente não se encontra no espaço.
Os primeiros filósofos reconhecidos, os pré-socráticos, eram sobretudo metafísicos preocupados em estabelecer as características essenciais da natureza no seu todo, como na críptica afirmação de Tales: “Tudo é água”. Parménides foi o primeiro metafísico cujos argumentos chegaram até nós. Baseado nas razões fornecidas pelos famosos paradoxos de Zenão, concluiu que o mundo estava privado de movimento e ocupava a totalidade do espaço. O cepticismo dos sofistas desafiou as assunções da moral convencional, facto que esteve na origem da ética, notavelmente com Sócrates. Platão e Aristóteles escreveram penetrantemente sobre metafísica e ética; Platão sobre o conhecimento; Aristóteles sobre lógica (dedutiva), a técnica mais rigorosa para justificar crenças; estabeleceu as suas regras de uma forma sistemática e manteve intacta a sua autoridade durante mais de 2000 anos.
Na Idade Média, ao serviço do cristianismo, a filosofia apoiou-se primeiramente na metafísica de Platão, e em seguida na de Aristóteles, com o propósito de defender crenças religiosas. No Renascimento, a liberdade de especulação metafísica ressurgiu; na sua fase tardia, com Bacon e, de um modo mais influente com Descartes e Locke, dirigiu-se para a epistemologia com o objectivo de ratificar e, tanto quanto possível, acomodar a religião e os novos desenvolvimentos das ciências naturais. Hume argumentou contra a possibilidade da sua compatibilização, bem como da metafísica em geral. Na Europa continental, Espinosa e Leibniz praticaram uma metafísica dedutiva ao estilo de Parménides com resultados comparativamente surpreendentes. Kant, formado nesta tradição, afastou-se dela na sequência da leitura de Hume, rejeitou a metafísica nas suas variantes tradicionais e atribuiu a ordem do mundo publicamente observável ao trabalho formativo da mente na experiência. Os seus herdeiros alemães, tirando partido de algumas inconsistências de Kant, retomaram a metafísica nos moldes pomposos tradicionais. Em Inglaterra, o empirismo de Locke e Hume prevaleceu, e a epistemologia manter-se-ia como disciplina filosófica central até meados deste século.
A metafísica dispõe de meios diversos para lidar com um tópico que, apesar de já formulado, de modo algum é claro: a natureza geral do mundo. O primeiro consiste em recorrer a demonstrações puramente racionais. Alcançamos, então, conclusões admiráveis baseadas no facto de a sua negação implicar uma autocontradição. Um exemplo notável é a demonstração ontológica da existência de Deus. Deus é definido como perfeito. Um deus que existe é mais perfeito que qualquer outra coisa que não exista. Portanto, Deus existe necessariamente. Adoptando um estilo semelhante, Leibniz demonstrou que a realidade, na sua constituição última, é mental; Bradley descobriu contradições escondidas no repertório de noções fundamentais do senso comum e da ciência (relação, espaço, tempo, pluralidade, o eu, e por aí adiante), e concluiu que a realidade é uma entidade única, indivisível no tecido da experiência, uma unidade espiritual que absorve a personalidade individual e a natureza.
O segundo procedimento metafísico consiste em partir da “aparência” (da superfície perceptível do mundo), e derivar conclusões a respeito da realidade última que transcende a aparência. Os argumentos que defendem a existência de Deus com base na necessidade de uma primeira causa ou nas marcas de um desígnio inteligente que descobrimos no mundo da percepção, são exemplos típicos neste domínio. Mais importante ainda para a história da filosofia é a teoria das Formas ou universais objectivos de Platão, segundo a qual estes se encontram não no espaço e no tempo mas num mundo próprio, que Platão utiliza para explicar o reconhecimento de propriedades recorrentes no fluxo contínuo das aparências e ainda para servirem de objectos das asserções eternamente verdadeiras do conhecimento matemático.
Hume atacou a metafísica demonstrativa em termos epistemológicos. Defendeu que os argumentos puramente racionais apenas permitem estabelecer as verdades formais da lógica e da matemática. A negação de um enunciado autocontraditório não é uma verdade factual substancial, mas algo meramente convencional que reflecte o modo como usamos as palavras. Kant combateu a metafísica transcendente, argumentando que as noções de substância e causa apenas produzem conhecimento se forem aplicadas à matéria bruta fornecida pelos sentidos, e não se forem utilizadas para lá dos limites da experiência. Os positivistas lógicos atacaram a metafísica transcendente de forma ainda mais veemente, baseados no princípio de verificabilidade, defendendo que as suas afirmações não têm sentido visto não serem verificáveis na experiência.
Kant opôs-se também a um tipo de metafísica caracterizado não tanto por ir além do mundo das aparências como pelas extrapolações em direcção ao infinito que construiu a partir delas, por exemplo, as teses de que o mundo é infinitamente grande, que é eterno, composto por partes infinitesimais, e por aí adiante. Kant formou pares de asserções deste género com as suas negações e argumentou, num aparente desafio à lógica, que ambos os membros de cada par são autocontraditórios. Este tipo de metafísica, que se ocupa do quantitativamente inacessível (e não com o qualitativamente inacessível), está aberta às mesmas objecções.
As teorias sobre o que foi designado por “categorias do ser” encontram-se entre as sobreviventes do longo combate que opôs a metafísica aos seus detractores. O dualismo psicofísico, argutamente tratado em Descartes, mas já defendido antes e também depois, é talvez o caso mais familiar. Esta forma de dualismo tem raízes epistemológicas. Uma é a distinção entre dois tipos de experiência: as sensações e a introspecção. Outra é a alegada infalibilidade das crenças acerca de conteúdos mentais em contraste com a falibilidade das crenças sobre o mundo material objectivo. Os materialistas, como Hobbes, argumentaram que a actividade mental é corpórea, ainda que apenas numa pequena escala. Os idealistas como Berkeley (e, de certo modo, os fenomenistas como Mill) defenderam que os corpos materiais são complexos de sensações, quer efectivas, quer existentes na mente de Deus ou hipotéticas.
O domínio platónico das ideias alberga um alegada terceira categoria, a das entidades abstractas, por exemplo, propriedades, relações, classes, números e proposições. Os valores foram aí incluídos de maneira a providenciar algo acerca do qual os juízos de valor sejam verdadeiros.
O monismo pode ser nem mental nem físico, mas neutral. Russell, William James, Mach e, até certo ponto, Hume, pensavam que os corpos e as mentes eram formados pelo mesmo tipo de sensações, possíveis e actuais, tal como as imagens que as copiam. Estas sensações combinam-se para constituir os corpos; as sensações e as imagens constituem as mentes.
Além dos tipos de metafísica consideradas até ao momento, cujo objectivo é construir uma concepção do mundo como um todo, há também uma metafísica de âmbito mais restrito que procura examinar a detalhada estrutura do mundo: os indivíduos, as suas propriedades, as relações que mantêm entre si, os acontecimentos que preenchem a sua história — a mudança, portanto — e também os acontecimentos que constituem as partes mais desinteressantes e as mais férteis dessa história; o facto de os indivíduos possuírem propriedades, e por aí adiante. A doutrina de Aristóteles transformou estes tópicos num tema de investigação organizada (ainda que as suas categorias fossem bastante diferentes das mencionadas atrás). Em certa medida, foram absorvidos pela lógica filosófica uma vez que esses aspectos mais subtis da estrutura do mundo correspondem às características formais da linguagem (do pensamento e do discurso), assumidas como distinções básicas da lógica formal.
A questão fundamental da epistemologia, mas talvez não a mais interessante, é a definição de conhecimento. Platão colocou-a no Teeteto e concluiu que o conhecimento é algo mais que crença verdadeira, ainda que a inclua. A ideia de que a justificação constitui o elemento remanescente enfrenta dificuldades sérias excepto, como muitos sustentam, se a regressão ao infinito a que parece dar origem puder ser evitada defendendo, por exemplo, que algumas crenças não são justificadas por outras crenças, mas pela experiência. Muitos filósofos consideram, no entanto, que este problema tem um interesse reduzido uma vez que o próprio conhecimento tem um interesse reduzido. Tudo quanto importa é a crença racional justificada. Contudo, foi também sugerido de forma persuasiva que o elemento em falta na definição não deverá ser acidental ou que deverá possuir como causa o facto que o torna verdadeiro.
Quase toda a epistemologia envolve duas distinções amplas: a primeira entre o que Leibniz chamou “verdades da razão” e “verdades de facto”, a segunda entre o que é conhecido directa ou imediatamente e o que é conhecido por inferência. As verdades da razão são verdades necessárias que podem ser descobertas a priori, isto é, sem a dependência dos sentidos e apenas pelo pensamento. As verdades de facto são contingentes, baseando-se a sua justificação na experiência. As duas distinções sobrepõem-se. Algumas verdades da razão devem ser imediatamente conhecidas para que as restantes possam ser inferidas. As primeiras são consideradas axiomas ou princípios da lógica e da matemática. A perspectiva convencional acerca de verdades de facto não imediatas sustenta que estas são realmente inferidas, mas não com base na lógica dedutiva. Neste caso é necessária a indução, um processo que consiste em derivar generalizações irrestritas com base num número limitado de instâncias. Peirce e, ainda com maior veemência, Popper, negaram ou marginalizaram a indução. Deste ponto de vista, os enunciados gerais são propostos como hipóteses dignas de serem investigadas e, em seguida, examinam-se as consequências deles deduzidas; são rejeitados caso estas se revelem falsas e preservados, com crescente confiança, quanto maior o número de testes a que sobrevivam. Esta concepção está mais próxima da prática científica que a teoria convencional da indução mas, aparentemente, permite-lhe entrar ainda pela porta do fundo.
Leibniz pensava que as verdades da razão decorrem do princípio de contradição; no entanto, não avançou o suficiente para concluir, como Hume e a maioria dos empiristas subsequentes, que por essa razão são analíticas, no sentido de serem meramente verbais e de se limitarem a reiterar no que afirmam algo já antes assumido. Kant considerou que o principal problema da filosofia consistia em determinar se existem, e de que modo, crenças em simultâneo sintéticas, com conteúdo substancial e a priori, que o pensamento fosse, por si só, capaz de descobrir. Concluiu que estas crenças existem: são as crenças da aritmética e da geometria, ou os “pressupostos das ciências naturais”, que afirmam a existência de uma quantidade permanente de matéria na natureza e que todos os acontecimentos têm uma causa. Foi ainda mais longe e atribuiu a verdade necessária destas crenças substanciais ao modo como a mente impõe a ordem no caos da experiência a que está submetida. Mas não foram muitos os que o seguiram. Mill sustentou que as verdades matemáticas são na realidade empíricas; Herbert Spencer que as verdades necessárias não vão além de crenças bem estabelecidas que herdamos dos nossos antepassados. Recentemente, Quine defendeu que não existe uma diferença de género entre verdades da razão e verdades de facto, mas apenas no grau de determinação com que aceitamos abandoná-las perante dados recalcitrantes.
A distinção entre conhecimento directo e conhecimento por inferência foi desafiada em diferentes momentos, incluindo na actualidade, por filósofos que não encontraram saída para o labirinto das crenças. Os defensores da teoria coerentista do conhecimento seguiram as pisadas dos idealistas hegelianos e dos positivista vienenses (até Tarski os ter libertado do labirinto). Parte das razões que sustentam esta distinção provém de um antigo princípio segundo o qual a nossa percepção dos objectos materiais externos não é directa devido à sua característica falibilidade, como revela o apreço que por vezes exibimos por algumas ilusões, devendo, portanto, ser inferida com base no conhecimento por hipótese infalível que possuímos das nossas impressões sensoriais. Mas, serão estas inferências válidas ou, no mínimo, defensáveis? Caso o não sejam, deveríamos suspender cepticamente as nossas crenças a respeito do mundo exterior? E, em caso de resposta afirmativa, qual o género de inferências que temos em vista: para a mesma categoria de coisas, impressões possíveis e actuais, ou para algo diferente, que transcende a experiência, nomeadamente a matéria? O padrão associado a este problema, tal como as várias modalidades de soluções possíveis que lhe correspondem, foram considerados recorrentes num grande número de casos. Por exemplo, os indícios que possuímos para sustentar crenças sobre o passado encontram-se no presente, em vestígios e memórias; mas, de que modo ultrapassar o abismo que dele nos separa, se é que isto é possível? As crenças acerca das outras mentes são baseadas no comportamento dos corpos que observamos e naquilo que nos dizem. Uma solução até agora não mencionada consiste em negar que estejamos confinados ao tipo de indícios especificados. Isto parece bastante atraente no caso da percepção uma vez que implica que percepcionamos os objectos materiais directamente, ainda que não de modo infalível, e no caso das crenças sobre o passado, que as nossas memórias constituem realmente essas crenças, não sendo, portanto, apenas um indício em que se sustentam; no caso das mentes alheias, contudo, algum tipo de telepatia seria indispensável para o efeito. A importância central destes três géneros de crenças dificilmente exige ser sublinhado, não apenas para a ciência, a história ou a psicologia, como para a nossa vida cognitiva considerada como um todo.
Uma característica curiosa acerca da epistemologia é a reduzida atenção prestada à fonte da grande maioria das nossas crenças, nomeadamente, o testemunho alheio: pais, professores, manuais didácticos, enciclopédias. Há aqui um problema interessante. Se dependemos deles quanto aos princípios que utilizamos para testar o carácter fidedigno do que nos dizem, como poderemos alguma vez alcançar uma verdadeira autonomia cognitiva e intelectual?
A lógica, que, como foi dito atrás, constitui o mais poderoso e coercivo instrumento de justificação de crenças, nunca foi considerada parte da epistemologia. A organização sistemática de que foi alvo teve lugar ainda antes de a epistemologia ser identificada como uma disciplina filosófica por direito próprio. Começou, e em parte permaneceu, como um corpo ordenado de regras de inferência aplicáveis a todos os géneros de pensamento e de discurso. Desde Aristóteles até meados do século XIX manteve-se em larga medida adormecida. Desde então, sofreu um amplo desenvolvimento e incluiu a lógica aristotélica com algumas alterações, tornando-se numa certa perspectiva um ramo da matemática. Os seus elementos foram desde sempre considerados um preâmbulo ao estudo da filosofia, algo que ainda hoje se verifica. Não constitui exactamente uma parte da filosofia, ainda que a reflexão crítica sobre as suas assunções, designada por lógica filosófica, o seja de modo inquestionável.
Há um número bastante vasto e, de facto, indeterminado, de disciplinas filosóficas especializadas; filosofias da mente, linguagem, matemática, das ciências (da natureza e sociais), da história, religião, direito, educação, e até do desporto e do sexo. Sempre que um campo de investigação particular, como é caso da ciência e da história, tem em vista o conhecimento, a filosofia correspondente é de natureza epistemológica. A metafísica da natureza é uma ideia destinada a deixar de fora os cientistas, ainda que o problema da realidade de certas entidades teóricas como as partículas elementares possa ser incluído nela. A metafísica ou filosofia especulativa da história, que se reduz à elaboração de esquemas e padrões gerais (cíclicos ou progressivos) da totalidade dos acontecimentos históricos é considerada com suspeição. O fundamento racional para esta suspeição é um tópico que pertence à crítica e epistemologia da história.
A filosofia da mente, tal como actualmente é praticada, teve início com o problema epistemológico que consiste em determinar como é possível saber o que se passa nas mentes alheias. Transformou-se, contudo, em metafísica. O velho problema da identidade pessoal pode ser colocado de duas maneiras: “Como sabemos que uma pessoa actualmente existente é a mesma pessoa que existiu num momento anterior?” ou “O que significa para uma pessoa actualmente existente ser idêntica à pessoa que existiu antes?”. Se o problema da identidade pessoal não é simplesmente irresolúvel, ambas as perguntas devem receber a mesma resposta.
Considera-se frequentemente que a filosofia da ciência envolve tópicos importantes para o pensamento pré-científico. Um deles refere-se à natureza da causalidade e ao modo de distinguir uma conexão entre acontecimentos determinada por uma lei de uma simples concomitância acidental. Outro tópico é o da justificação da indução e da interpretação de probabilidades, ou géneros de probabilidade, que a indução supostamente confere às suas conclusões. As relações causais, as crenças de âmbito geral e aquelas que consideramos não serem meramente prováveis, são características indispensáveis do pensamento típico do senso comum.
A terceira e última grande subdivisão da filosofia é a ética, ou teoria dos valores; o seu objectivo consiste no exame crítico e racional do pensamento acerca do modo como nos conduzimos na vida. A acção, em contraste com o comportamento, é entendida como o produto de uma escolha; a comparação entre diversas alternativas é empreendida à luz do seu carácter desejável, das suas consequências ou da possibilidade ou facilidade de as efectuar. Na acção encontram-se, assim, envolvidos dois tipos de crenças: crenças factuais acerca do que está em causa ao agir de determinada maneira e quais os seus resultados, e crenças a respeito do valor desses resultados ou ausência de valor do que é necessário fazer para os assegurar.
De facto, na ética posterior aos gregos, o tipo de acção que monopolizou a atenção foi a acção moral estritamente concebida. Eis, provavelmente, um resultado do entusiasmo religioso. O cristianismo iniciou-se como um religião milenarista, indiferente aos assuntos mundanos e preocupada com a salvação, em parte porque estava convencido da falta de valor do mundo e da carne mas, principalmente, devido à crença no fim do mundo. Qualquer que seja a causa desta concepção estrita, ela provocou um efeito de distorção. Em princípio, a ética deveria interessar-se pelos diferentes géneros de conduta deliberada e reflectida: a conduta prudencial e de interesse próprio com vista, respectivamente, à mínima perda e ao ganho máximo para o agente, a conduta técnica eficiente, a conduta económica, a conduta saudável, etc. O bem moral e a rectidão são apenas tipos particulares de rectidão. A lógica e a epistemologia, na medida em que se ocupam em distinguir o certo do errado no plano do raciocínio, podem ser descritas, não por liberdade metafórica, como éticas da inferência e da crença.
A influência da religião na moral fez esta última ser considerada os mandamentos de Deus à humanidade. Dado que esta situação conduziu a problemas de autentificação e de interpretação, a voz de Deus interiorizou-se, quer como uma espécie de sentido moral sob cuja influência a qualidade moral das acções e o carácter do agente é apreendido, quer como razão moral manifesta na apreensão da necessidade auto-evidente dos princípios morais. São duas as assunções que podemos questionar a propósito destes tipos de intuicionismo. A primeira é a de que as características morais são sui generis, sem relação lógica com as características naturais ou percepcionáveis dos agentes e das suas acções. A segunda é a de que as acções, ou certos tipos de acção, estão intrinsecamente certas ou erradas, quaisquer que sejam as suas consequências, reais ou esperadas. Estas características, se realmente distintivas da moralidade, torná-la-iam diferente dos restantes modos de acção.
Os utilitaristas rejeitam ambas as assunções. Derivam a rectidão ou a não rectidão das acções da bondade ou malignidade das suas consequências e, de forma plausível, das consequências que é razoável para o agente esperar, de preferência às consequências de facto resultantes. Em segundo lugar, consideram que o bem coincide com a felicidade e o prazer ou, mais exactamente, que reside na felicidade geral, na felicidade do maior número de indivíduos. Formulada negativamente, a doutrina utilitarista coincide com o sentimento moral irreflectido: um acção é má se implica o prejuízo de outros e é permissível caso esse prejuízo não se verifique; moralmente, uma acção merece ser creditada se alivia ou previne o sofrimento alheio.
Apesar das diferenças que os separam, intuicionistas e utilitaristas estão de acordo quanto à existência de verdades morais objectivas. A magnitude e intensidade das disputas morais fortalece o cepticismo, segundo o qual os juízos morais são apenas manifestações dos nossos gostos e repulsas e as disputas morais o resultado da colisão de sentimentos que não podem ser resolvidas através de meios racionais. A questão fundamental em ética, concebida simplesmente como filosofia moral, é a de saber se as nossas convicções morais possuem validade objectiva e, em caso afirmativo, de que tipo. Serão, como pretendem os intuicionistas, convicções de um tipo especial, ou mantêm ligações lógicas com o conjunto das nossas crenças? Será que as propriedades morais são intrínsecas à acção ou apenas dependem das suas consequências? Em que consiste o bem e a virtude moral? Será uma disposição para praticar acções rectas ou, de forma mais estrita, a disposição para praticar acções rectas porque são rectas? Em que condições um agente merece ser censurado (ou elogiado) em consequência de acções praticadas? Será que a responsabilidade pressupõe a liberdade da vontade, no sentido em que as que as escolhas livres não são causalmente influenciadas?
Outras duas formas estabelecidas da teoria dos valores são a filosofia política e a estética. A filosofia política é uma extensão da ética para o domínio das instituições sociais e, tal como a ética em geral, parece excessivamente moralizada. O problema fundamental da filosofia política é a base da obrigação dos cidadãos em obedecer ao estado e às suas leis e, visto do outro ângulo, o do estado em compelir os cidadãos a obedecer-lhe. (Seria interessante investigar em que consiste o que torna mais razoável para os cidadãos obedecerem.) Será que a obrigação de obedecer depende do conteúdo das leis ou da forma como o estado é formado e mantido? Será que os seres humanos possuem direitos que limitam a esfera de actuação do estado?
O valor estético é reconhecido como independente dos valores morais, apesar da ocorrência de elementos morais na crítica — por vezes relevantemente, outras de forma intrometida. A palavra “beleza” não o indica satisfatoriamente. Outras línguas conseguem fazer melhor. “Beau” e “schön” significam a propriedade dos objectos artísticos ou naturais que merecem ser contemplados por direito próprio, independentemente de considerações a respeito da sua eventual utilidade ou da informação que podemos obter pelo facto de os estudarmos.
As partes estabelecidas da filosofia foram já mencionadas, mas não existem limites evidentes para o seu campo de aplicação. Sempre que nos deparamos com uma ideia cujo significado é de algum modo indeterminado ou controverso, se os enunciados onde ocorre parecem dificilmente sustentáveis ou mantêm com outras crenças comparativamente mais claras relações lógicas obscuras, deparamo-nos ainda com uma oportunidade para reflectir filosoficamente.
Anthony Quinton
Oxford Companion to Philosophy, ed. Ted Honderich (Oxford University Press, 1995), pp. 666-670.
Publicado originalmente em:
Bibliografia
A. J. Ayer, The Central Questions of Philosophy (Londres, 1973)
Keith Campbell, Metaphysics (Encino, Calif., 1976)
Anthony O'Hear, What Philosophy Is (Harmondsworth, 1985)X
W. V. Quine e U. J. Ullian, The Web of Belief (Nova Iorque, 1970)
Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia (Arménio Amado, várias edições)
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