A definição de conhecimento no Teeteto
O Teeteto começa ao estilo de um diálogo do primeiro período [dos diálogos platônicos]. A
questão proposta é "O que é o conhecimento?", e Sócrates oferece-se
para fazer de parteira de modo a permitir que o jovem e brilhante
matemático Teeteto dê à luz a resposta.
A primeira sugestão é a de que o
conhecimento consiste em coisas como a geometria e a carpintaria; mas
isto não serve como definição, pois a própria palavra "conhecimento"
teria de ser usada se tentássemos dar definições de geometria e de
carpintaria. Aquilo de que Sócrates está à procura é aquilo que é comum a
todos estes tipos de conhecimento.
A segunda proposta de Teeteto é a de que o conhecimento é a
percepção: conhecer algo é tomar contato com ela por meio dos sentidos.
Sócrates observa que os sentidos de pessoas diferentes são
diferentemente afetados: a mesma rajada de vento pode ser sentida por
um pessoa como quente e por outra como fria. "É sentida como fria"
significa "parece fria", de modo que apreender através dos sentidos é o
mesmo que parecer. Apenas o que é verdadeiro pode ser conhecido; assim,
se o conhecimento é a percepção sensorial, teremos de aceitar a doutrina
de Protágoras segundo a qual aquilo que parece é verdadeiro, ou pelo
menos aquilo que parece a uma pessoa específica é verdadeiro para essa
pessoa.
Por detrás de Protágoras está Heráclito. Se é verdade que tudo, no
mundo, está constantemente a sofrer mudanças, então as cores que vemos e
as qualidades que sentimos não podem ser realidades objetivas e
estáveis. Cada uma é, pelo contrário, o produto do encontro momentâneo
entre um dos nossos sentidos e algum elemento transitório no fluxo
universal que lhe corresponda. Quando um olho, por exemplo, entra em
contato com um seu correspondente visível, começa a ver a brancura, e o
objeto começa a parecer branco. A brancura propriamente dita é gerada
pela relação entre estes dois progenitores, o olho e o objeto. O olho e
o objeto, do mesmo modo que a brancura a que dão origem, fazem eles
próprios parte do fluxo universal; não são imóveis, embora o seu
movimento seja lento por comparação com a velocidade com que as
impressões dos sentidos vão e vêm. A visão que o olho tem do objeto
branco e a brancura do próprio objeto são dois gêmeos que nascem e
morrem um com o outro. Uma descrição semelhante pode ser feita para os
outros sentidos; e assim podemos ver, pelo menos no que diz respeito ao
reino dos sentidos, a razão porque Protágoras dizia que aquilo que
parece, é; pois a existência de uma qualidade e a sua aparição ao
sentido apropriado são inseparáveis uma da outra.
Mas a vida não é toda feita de sensações. Nós temos sonhos, nos quais
aparecemos com asas e voamos; os loucos sofrem delírios, nos quais
acham que são deuses. Certamente que estas são aparências que não estão
de acordo com a realidade! Metade da nossa vida é passada a dormir; e
talvez nunca possamos ter a certeza se estamos acordados ou a sonhar;
portanto, como pode qualquer de nós dizer que aquilo que lhe parece num
dado momento é verdade?
Para responder a isto, Protágoras pode apelar de novo a Heráclito.
Suponhamos que Sócrates fica doente e que o vinho doce lhe sabe a
amargo. Segundo a descrição dada antes, a amargura nasce de dois
progenitores, o vinho e aquele que saboreia. Mas o Sócrates doente é um
saboreador diferente do Sócrates saudável, e de um progenitor diferente
nascerá naturalmente um filho diferente. Como cada pessoa que tem
sensações está constantemente a mudar, cada sensação é uma experiência
única e irrepetível. Pode não ser verdade que o vinho é amargo, mas é
verdade que é amargo para Sócrates. Nenhuma outra pessoa está em
condições de corrigir o Sócrates doente quanto a isto, de modo que
também aqui Protágoras é corroborado: aquilo que me parece a mim, é verdadeiro para mim. Teeteto pode continuar a defender que a percepção é conhecimento.
Mas será que todo o conhecimento é percepção? Saber uma língua, por
exemplo, é mais do que simplesmente ouvir os sons pronunciados, coisa
que podemos fazer com uma língua que não conheçamos. É verdade,
evidentemente, que muitas vezes aprendo algo - por exemplo, que o
Parténon fica na Acrópole - vendo-o com os meus olhos. Mas, mesmo depois
de fechar os olhos, ou de me ir embora, continuo a saber que o Parténon
é na Acrópole. Portanto, a memória é um exemplo de conhecimento sem
percepção. Mas talvez Teeteto ainda não tenha sido derrotado: Protágoras
pode vir em seu auxílio replicando que é possível saber e não saber
algo ao mesmo tempo, como quando pomos uma mão à frente de um dos olhos:
tanto podemos ver como não ver a mesma coisa ao mesmo tempo.
Sócrates parece ficar reduzido a uma reação ad hominem. Como
pode Protágoras ser professor e levar dinheiro por isso se ninguém está
em melhor posição do que qualquer outra pessoa no que diz respeito ao
conhecimento, visto que o que parece a cada homem é verdadeiro para ele?
Protágoras replicaria que, ao passo que não é possível ensinar alguém
de modo a que substitua os pensamentos falsos por verdadeiros, um
professor pode fazer-nos substituir maus pensamentos por bons
pensamentos, pois, apesar de todas as aparências serem igualmente
verdadeiras, nem todas são igualmente boas. Um sofista como Protágoras
pode levar um aluno a ficar em melhor estado, tal como um médico poderia
curar Sócrates da doença que lhe afetava o paladar, fazendo com que o
vinho lhe soubesse de novo a doce.
Em resposta a isto, Sócrates apoia-se no argumento de Demócrito para
mostrar que a doutrina de Protágoras se derrota a si mesma. Parece
verdade a todos os homens que alguns deles conhecem melhor do que outros
diversas áreas de especialidade; nesse caso, tal deve ser verdade para
todos os homens. Parece à maior parte das pessoas que a tese de
Protágoras é falsa; nesse caso, a sua tese tem de ser mais falsa do que
verdadeira, pois os que nela não acreditam são mais do que os que nela
acreditam. A teoria de Protágoras pode parecer estar assente em
alicerces sólidos quando aplicada à percepção sensorial, mas é deveras
implausível se for aplicada aos diagnósticos médicos ou às previsões
políticas. Cada homem pode ser a medida do que é, mas mesmo no caso das sensações ele não é a medida do que será: um
médico sabe melhor do que o doente se ele terá febre e um comerciante
de vinhos saberá melhor do que um consumidor se um vinho ficará doce ou
seco.
Mas mesmo onde é mais forte, no domínio da sensação, a tese de
Protágoras é vulnerável, argumenta Sócrates, pois depende da tese do
fluxo universal, que é, ela própria, inconsistente. De acordo com os
heracliteanos, tudo está constantemente a mudar, quer no que diz
respeito ao movimento local (o movimento de lugar para lugar), quer no
que diz respeito à alteração qualitativa (como, por exemplo, a mudança
de branco para preto). Ora, se uma coisa permanecesse no mesmo sítio,
poderíamos descrever o modo como mudaria qualitativamente, e, se
tivéssemos uma porção de cor constante, poderíamos descrever o modo como
ela se moveria de lugar para lugar. Mas se ambos os tipos de mudança
tiverem lugar simultaneamente, ficamos reduzidos ao silêncio; não somos
capazes de dizer que coisa está a mover-se, nem que coisa
está a sofrer uma alteração. A própria percepção sensorial estará em
fluxo: um episódio de visão transformar-se-á de repente num episódio de
não-visão; a audição e a não-audição seguir-se-ão uma à outra
incessantemente. Isto é tão diferente daquilo que tomamos como
conhecimento que se o conhecimento for idêntico à percepção, será tanto
conhecimento como não conhecimento.
Sócrates prepara-se então para dar a estocada final examinando os
órgãos corpóreos dos sentidos: os olhos e os ouvidos, os meios por meio
dos quais vemos as cores e ouvimos os sons. Aquilo que é objeto de um
dos sentidos não pode ser percepcionado por outro sentido: não podemos
ouvir as cores ou ver os sons. Mas, nesse caso, o pensamento de que um
som e uma cor não são uma e a mesma coisa, mas duas coisas diferentes,
não pode ser o produto nem da vista nem do ouvido. Teeteto tem de
conceder que não há órgãos para a percepção da mesmidade e da diferença
nem da unidade e da multiplicidade; é a própria alma que contempla os
termos comuns que se aplicam a tudo. Mas a verdade acerca das
propriedades corpóreas mais tangíveis só pode ser alcançada por meio do
recurso a estes termos comuns, que pertencem não aos sentidos mas à
alma. O conhecimento não reside nas impressões sensoriais, mas na
reflexão que a alma faz sobre elas.
Por fim, Teeteto abandona a tese de que o conhecimento é a percepção;
propõe que, em vez disso, consiste nos juízos da alma que reflete.
Sócrates aprova esta mudança de rumo. Quando a alma pensa, diz ele, é
como se estivesse a falar para si própria, fazendo perguntas e
respondendo-lhes, dizendo sim e não. Quando conclui a sua discussão
interna consigo própria e produz silenciosamente uma resposta, isso é um
juízo.
O conhecimento não pode ser identificado sem mais nem menos com a
capacidade de produzir juízos, pois tanto há juízos falsos como
verdadeiros. Não é fácil explicar o que é o juízo falso: como posso eu
produzir o juízo de que A = B se não souber o que é A nem o que é B?
Mas, nesse caso, como é possível que me engane no juízo que fiz? A
possibilidade dos juízos falsos parece ameaçar-nos com a necessidade de
admitirmos que alguém pode saber e não saber a mesma coisa ao mesmo
tempo.
Suponhamos, sugere agora Sócrates, que a alma é uma tábua de cera.
Quando queremos memorizar qualquer coisa, inscrevemos uma impressão ou
uma ideia nesta tábua; e, enquanto a inscrição se mantiver, nós
lembramo-nos. Os juízos falsos podem originar-se do seguinte modo:
Sócrates conhece Teeteto e o seu professor Teodoro e tem imagens de cada
um deles inscritas na sua memória; mas, vendo Teeteto ao longe,
identifica-o erradamente não com a sua imagem, mas com a de Teodoro.
Quanto mais indistintas se tornam as imagens na cera, mais se torna
possível que tais erros sejam cometidos. Os juízos falsos têm origem,
portanto, numa discrepância entre a percepção e o pensamento.
Mas não há casos em que fazemos juízos falsos quando não está em
causa qualquer percepção? Um exemplo é quando cometemos um erro ao fazer
uma soma aritmética. De modo a dar conta destes casos, Sócrates diz que
é possível possuir conhecimento sem o ter na alma numa ocasião
específica, tal como se pode possuir um casaco e não o vestir. Tomemos a
alma, agora, não como uma tábua de cera, mas como um aviário. Nascemos
com uma alma que é um aviário vazio; à medida que aprendemos coisas
novas, adquirimos novos pássaros, e saber algo é possuir o pássaro
correspondente na nossa coleção. Mas, se quisermos usar algum
conhecimento, temos de apanhar o pássaro apropriado e segurá-lo na nossa
mão antes de o libertar de novo. Assim se explicam os erros
aritméticos: alguém que não saiba aritmética não tem quaisquer pássaros
relativos aos números no seu aviário; uma pessoa que julgue que 7 + 5 =
11 tem todos os pássaros apropriados esvoaçando à sua volta, mas em vez
de apanhar o décimo segundo apanha o décimo primeiro.
Quer estes símiles sejam suficientes para clarificar a natureza dos
juízos falsos quer não, há uma dificuldade, aponta Sócrates, na tese de
que o conhecimento é o juízo verdadeiro. Se um júri for persuadido por
um causídico inteligente a produzir um certo veredicto, então, mesmo que
o veredicto esteja de acordo com os fatos, os jurados não possuem o
conhecimento que uma testemunha ocular possuiria. Teeteto modifica então
a sua definição de modo a que o conhecimento seja um juízo ou crença
que seja não apenas verdadeiro mas também articulado.
Sócrates explora então três maneiras diferentes segundo as quais se
poderia dizer que uma crença poderia ser articulada. A mais óbvia de
todas é quando alguém tem uma crença que é capaz de exprimir por meio de
palavras; mas toda a gente que tenha uma crença verdadeira e que não
seja surdo ou mudo é capaz de fazer isto, de modo que este dificilmente
contaria como um critério para distinguir entre a crença verdadeira e o
conhecimento.
A segunda maneira é a que Sócrates leva mais a sério: ter uma crença
articulada acerca de um objeto é ser capaz de proporcionar uma análise
dela. O conhecimento de algo é adquirido ao reduzi-lo aos seus
elementos. Mas, nesse caso, não pode haver conhecimento dos elementos
básicos, que não são analisáveis. Os elementos que formam as substâncias
do mundo são como as letras que formam as palavras de uma língua; e
analisar uma substância pode ser comparado a soletrar uma palavra. Mas,
ao passo que se pode soletrar "Sócrates", não se pode soletrar a letra "S".
Assim como uma letra não pode ser soletrada, também os elementos
básicos do mundo não podem ser analisados e, portanto, não podem ser
conhecidos. Mas, se os elementos não podem ser conhecidos, como podem os
complexos formados por eles ser conhecidos? Além disso, apesar de o
conhecimento dos elementos ser necessário ao conhecimento dos complexos,
não é suficiente; uma criança pode saber todas as letras e, mesmo
assim, não ser capaz de soletrar proficientemente.
Segundo a terceira interpretação, uma pessoa tem uma crença
articulada acerca de um objeto se for capaz de produzir uma descrição
que só se aplique a esse objeto. Assim, podemos descrever o Sol como o
mais brilhante dos corpos celestes. Mas, deste ponto de vista, como pode
alguém ter qualquer ideia que seja acerca do que quer que seja sem ter
uma crença articulada acerca disso? Eu não posso estar realmente a
pensar em Teeteto se tudo o que eu for capaz de incluir na descrição
forem coisas que ele tem em comum com as outras pessoas, como ter nariz,
olhos e boca.
Sócrates conclui, um pouco precipitadamente, que a terceira definição
que Teeteto faz de conhecimento não é melhor do que as duas anteriores.
O diálogo termina numa atmosfera de perplexidade, como os diálogos
socráticos do primeiro período. Mas, de fato, chegou bastante longe. A
explicação que dá da percepção sensorial, modificada depois por
Aristóteles, viria a ser moeda corrente até ao fim da Idade Média. A
definição de conhecimento como crença verdadeira articulada,
interpretada como significando crença verdadeira justificada, foi ainda
aceite por muitos filósofos do nosso século. Mas aquilo que Platão
provavelmente via como o maior feito do Teeteto foi a cura que
proporcionou para o ceticismo de Heráclito, ao mostrar que a doutrina
do fluxo universal se derrotava a si mesma.
Retirado de História Concisa da Filosofia Ocidental,
de Anthony Kenny. Trad. Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José
Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral (Temas e Debates, 1999). [fonte:http://criticanarede.com/]
Filoparanavai 2015
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