quinta-feira, 9 de abril de 2020

FILÓSOFOS/ENTREVISTA: Alain Badiou: “O marxismo pode salvar o mundo”



"O amor sem risco é uma impossibilidade, 
como a guerra sem morte."


Quem é Alain Badiou?
Alain Badiou nasceu em 17 de janeiro de 1937 em Rabat (Marrocos). Seu pai é professor associado de matemática, um combatente da resistência que se tornou prefeito de Toulouse (França) durante a Libertação, e sua mãe também é professora associada de letras. Alain Badiou estudou filosofia na École Normale Supérieure e formando-se em 1960. Foi na ENS que ele teve seus primeiros contatos com Louis Althusser (filósofo do Marxismo Estrutural de origem Francesa nascido na Argélia)Georges Canguilhem (filósofo e médico francês) Jacques-Marie Émile Lacan (psicanalista francês). Ele também fez campanha contra a guerra da Argélia (A Guerra de Independência Argelina, também conhecida como Revolução Argelina ou Guerra da Argélia foi um movimento de libertação nacional da Argélia do domínio francês, que tomou curso entre 1954 e 1962). Nomeado professor de filosofia em Reims, na Universidade Experimental Paris VIII (Vincennes), desde a sua criação, após 68 de maio, embarcou com determinação na aventura maoísta que o ocupará até os anos 80. Durante esse período, companheiro por estrada de Antoine Vitez, Alain Badiou está mais interessado na escrita dramática (entre outros, a peça L'Écharpe rouge). Em 1988, ele publicou uma obra filosófica O Ser e o Evento, em 2006 publica Logiques des mondes. Em 1999, foi nomeado professor na École Normale Supérieure, então professor emérito em 2004. Seu trabalho é abundante e diversificado, incluindo romances, peças teatrais, ensaios sobre filosofia (República de Platão em 2012), político (qual é o nome de Sarkozy em 2007) ou mesmo matemática (elogios da matemática em 2015). Alain Badiou é uma figura-chave no cenário intelectual francês e também goza de renome internacional.



Alain Badiou é um filósofo, dramaturgo e novelista francês nascido no Marrocos. É conhecido por sua militância maoísta (Maoísmo é o termo empregado para designar a linha de ação política do movimento revolucionário comunista chinês, que foi liderado por Mao Tsé-Tung (1893-1976), por sua defesa do comunismo e do trabalhadores estrangeiros em situação irregular na França.

O filósofo francês – um dos mais traduzidos e influentes do mundo – avalia que o neoliberalismo falhou. “O capitalismo é baseado na competição e é incapaz de formar um governo mundial. É globalizado, mas a política não é. Continua nacional. Os estados representam seus interesses e lutam pela hegemonia”, aponta, em entrevista ao jornal alemão ‘Frankfurter Allgemeine Zeitung’.

O filósofo francês Alain Badiou não considera a situação atual que o mundo vive excepcional. No ensaio “Sobre as situações épicas”, ele lista: “AIDS, gripe aviária, Ebola, Sars 1, gripes variadas, mas também sarampo e tuberculose, os os antibióticos se tornaram impotentes. Sabemos que o mercado globalizado (…) inevitavelmente cria epidemias severas e destrutivas. A Aids mata vários milhões de pessoas”. E afirma: A Covid-19 deve ser chamada de Sars 2. “Não há nada de novo sob o sol contemporâneo. Para mim, não havia mais nada a fazer além de tentar me trancar em casa. E nada mais a dizer. Faça da mesma maneira”.

Nascido em 1937, Alain Badiou foi um dos principais líderes do maoísmo. Ele agora é o intelectual francês contemporâneo mais traduzido. Escreveu romances e peças de teatro. Ficou famoso após a morte de Jean-Paul Sartre e Jacques Lacan e o internamento do teórico marxista Louis Althusser. Eles eram seus “mestres pensadores”.

A entrevista foi feita pelo jornalista Jürg Altwegg, que o entrevistou para o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung.

“Alain Badiou acaba de publicar um livro sobre o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, intitulado Trump (Presses Universitaires de France). Marcamos a entrevista por isso, explica Altwegg. O filósofo, retratado na imprensa como um dogmático sectário e incompreensível, acabou se revelando um interlocutor eloquente e amigável”, anota o repórter alemão. A seguir, os principais trechos da entrevista, publicada originalmente no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung.

Altwegg. Nas décadas de 1950 e 1960, os intelectuais franceses eram marxistas sem exceção e, como Sartre, companheiros dos comunistas. Você é o último?

Alain Badiou. Os “novos filósofos”, que eram exclusivamente renegados, desencadearam uma onda de autocrítica e um afastamento do comunismo. O marxismo, que depois de 1945 havia conquistado a hegemonia no espírito de Gramsci, foi empurrado para uma espécie de caverna. Foi substituído por uma ideologia que pode ser resumida como elogio à democracia parlamentar, liberdade e direitos humanos. Os intelectuais traíram suas crenças e sua função como corpos críticos. Desde então, estão comprometidos com o sistema político e propagam seus valores. Ao mesmo tempo, o fracasso dos primeiros experimentos históricos na China e na União Soviética tornou-se aparente. Esses dois fenômenos levaram ao desaparecimento do marxismo no Ocidente. Eu sou um sobrevivente, não o único.

A. E, ao mesmo tempo, você é o filósofo francês contemporâneo mais traduzido.

AB. Fico feliz em reivindicar o título honorário de “chefe sobrevivente”. A pequena celebridade que me tornou famoso data dos anos 80. Naquela época, me virei para a filosofia. Fiz isso para permanecer fiel ao marxismo e renová-lo. Lealdade tornou-se um conceito importante no meu pensamento. Às vezes me sentia um pouco sozinho. Mas agora cresce a esperança de que possamos mais uma vez enfrentar uma virada histórica.
   
A. Quando Nicolas Sarkozy foi presidente, você o analisou como um “sintoma” em um ensaio que se tornou um best-seller. O que significa?

AB. Depois de 1945, os comunistas e gaulistas dominavam o cenário. O colapso desta constelação foi selado com Sarkozy. Depois do comunismo, o gaulismo também chegou ao fim. Crenças e ideologias não importam mais. Este foi o começo da era do cinismo. Não se trata mais de melhorar o mundo, mas de manter a ordem predominante. Os intelectuais passaram a ser desprezados.

A. É isso que você vê como um cinismo na Macron?

AB. Inicialmente, ele se apresentou como um bom aluno de nossa tradição. Macron entrou no estágio político como uma pessoa civilizada – mas sua missão não é: é lidar com os compromissos feitos entre gaulistas e comunistas em 1945 e suas realizações sociais.

A. Você é conhecido como um crítico das eleições democráticas, que Sartre chamou de “armadilha idiota”.

AB. As eleições exigem um consenso de que nada muda no sistema. Esse desenvolvimento começou com Mitterrand, que prometeu romper com o capitalismo. Depois de dois anos, tudo acabou. Sua rendição tornou-se inovadora. Todas as alternativas ao capitalismo foram desacreditadas. Desde o colapso da União Soviética, não houve contrapeso que pudesse retardar o crescente crescimento do capitalismo. Ele é projetado para destruição e exploração.


O capitalismo é baseado na competição e é essencialmente guerreiro. 
Ele é incapaz de formar um governo mundial. 
É globalizado, mas a política não é. 
Continua nacional. 
Os estados representam seus interesses e lutam pela hegemonia. 
Os conflitos resultantes podem permanecer limitados. Mas degenerar em uma guerra mundial também.

A. O capitalismo necessariamente leva à guerra?

AB. O triunfo do imperialismo no final do século 19 e a rivalidade das grandes potências levaram à guerra. A hegemonia da democracia parlamentar surgiu de duas terríveis guerras mundiais. Atualmente, estamos enfrentando problemas difíceis de resolver. Em tais situações, a guerra sempre foi a única solução. O capitalismo é baseado na competição e é essencialmente guerreiro. Ele é incapaz de formar um governo mundial. É globalizado, mas a política não é. Continua nacional. Os estados representam seus interesses e lutam pela hegemonia. Os conflitos resultantes podem permanecer limitados. Mas degenerar em uma guerra mundial também.

A. Como você explica a ascensão dos populistas?

AB. A crise do parlamentarismo fortalece as forças nas extremidades da esquerda e da direita. Surgiu da contradição entre a economia globalizada e a política nacional. Ninguém sabe como resolver isso. Até agora, a extrema direita se beneficiou da crise em todos os lugares. Nada vem da extrema esquerda. Não há esperança revolucionária. A social-democracia está em processo de dissolução. Os partidos comunistas praticamente desapareceram. Somente na extrema direita surgiram movimentos um tanto estruturados. É extremamente preocupante que políticos como (Donald) Trump, (Matteo) Salvini e (Jair) Bolsonaro cheguem ao poder neste clima, assim como (Narendra) Modi na Índia, (Rodrigo) Duterte nas Filipinas. Temos uma galeria maravilhosa de monstros políticos lá.

A. Eles atestam a existência de um “fascismo democrático”?

AB. Eles foram eleitos e cumprem as regras do jogo: Trump quer ser reeleito. Se você equiparar democracia a eleições livres, elas são democráticas. Hitler e Mussolini também foram eleitos. A visão de mundo de Trump e Bolsonaro são de extrema direita. Eles são racistas e xenófobos, eles desprezam as mulheres. Eles representam um capitalismo brutal. Seu culto à própria pessoa, seus discursos, sua vulgaridade e principalmente sua hostilidade aos intelectuais são uma expressão do dogma fascista. Dada a desintegração ideológica da esquerda, é bastante questionável se existe um contramovimento nesse triunfo dos reacionários.


A social-democracia está em processo de dissolução. Os partidos comunistas praticamente desapareceram. Somente na extrema direita surgiram movimentos um tanto estruturados. É extremamente preocupante que políticos como (Donald) Trump, (Matteo) Salvini e (Jair) Bolsonaro cheguem ao poder neste clima, assim como (Narendra) Modi na Índia, (Rodrigo) Duterte nas Filipinas. Temos uma galeria maravilhosa de monstros políticos lá.


A. Seu declínio finalmente remonta a 68 de maio. Como isso foi possível?

AB. Na França, o Partido Comunista é responsável por isso. Naquela época, ela perdeu sua oportunidade histórica. Depois de 1968, os comunistas franceses estavam preocupados apenas em preservar seu acervo. Eles se converteram à democracia parlamentar e traíram a revolução. Por isso não voto desde então.

A. A superação do marxismo na França era sobre os crimes do comunismo. Os “novos filósofos” contaram Marx entre os “pensadores-mestre” e o tornaram responsável pelo totalitarismo stalinista?

AB. Isso não faz sentido: uma de suas demandas mais importantes é o declínio do Estado burguês. Isso não aconteceu. Os regimes comunistas falharam nessa questão. Centralização violenta e extrema burocracia não estão planejadas para Marx. Marx também não é responsável pelos crimes.

A. Então o comunismo não está desacreditado?

AB. A história ainda não acabou. O capitalismo começou quatrocentos anos atrás. O início da exploração também pode ser datado do neolítico, quando caçadores e coletores fizeram a transição para as culturas pastoril e camponesa. O marxismo ainda é um fenômeno muito jovem, foi desenvolvido no século 19 e experimentado no século 20. Ele dorme profundamente há três décadas. Precisamos combater o capitalismo contemporâneo, que tem um impacto negativo na maioria das pessoas e destrói o planeta. Não vejo outra teoria senão o marxismo. Minha “hipótese marxista” é sobre a percepção de que outro mundo é possível. Estou convencido de que o comunismo está diante de nós.


O marxismo ainda é um fenômeno muito jovem, foi desenvolvido no século 19 e experimentado no século 20. Ele dorme profundamente há três décadas. Precisamos combater o capitalismo contemporâneo, que tem um impacto negativo na maioria das pessoas e destrói o planeta. Não vejo outra teoria senão o marxismo.

A. Com migrantes e refugiados como um novo proletariado?

AB. O proletariado dos nômades sempre existiu. Eles costumavam vir do país e se mudar para a cidade. Hoje eles vêm da África. Sempre foram jogados contra os trabalhadores. A xenofobia dos comunistas franceses na década de 1970 também foi um elemento que contribuiu para seu declínio. Eles acusaram o capitalismo de enviar imigrantes para os subúrbios comunistas. O partido dos proletários resistiu à imigração dos proletários. Como se a imigração fosse o problema da França.
  
A. A Alemanha recebeu um milhão.

AB. Isso foi absolutamente correto e realista. Angela Merkel é uma das melhores chefes de Estado da Europa. Mas ela não foi perdoada. As lições que Macron lhe ensina são insuportáveis. Ela foi corajosa em acolher refugiados. É como estar em um exército quando você admira o general das tropas adversárias por suas realizações e ética.

Jürg Altwegg para o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung. Publicado originalmente em português no site do https://pt.org.br/



ALGUNS PENSAMENTOS DE
Alain BADIOU

Sem matemática, somos cegos.

Surpreende-me ver que hoje tudo o que não se rende ao capitalismo puro e simples ao capitalismo generalizado, digamos assim, é considerado arcaico ou antiquado, como se, de certo modo, não houvesse outra definição do que significa ser moderno do que, simplesmente, estar sempre preso às formas dominantes do momento.

No domínio político, privado de qualquer marco político coletivo, despojado de qualquer noção do "significado da História"; e, não sendo mais capazes de esperar ou esperar uma revolução social, muitos intelectuais, juntamente com grande parte da opinião pública, foram conquistados pela lógica de uma economia capitalista e de uma democracia parlamentar.

Se existe um grande poder imperial único que está sempre convencido de que seus interesses mais brutais coincidem com o Bem; se é verdade que todos os anos os EUA gastam mais em seu orçamento militar do que a Rússia, China, França, Inglaterra e Alemanha juntos; e se esse Estado-nação, dedicado ao excesso militar, não tiver outro ídolo público além da riqueza, aliados que não sejam servos e nenhuma visão de outros povos além de um indiferente, comercial e cínico; então a liberdade básica dos Estados, povos e indivíduos consiste em fazer tudo e pensar em tudo para escapar, tanto quanto possível, dos mandamentos, intervenções e interferência desse poder imperial.

A arte atesta o que é desumano no homem.

O cinema é um lugar de indiscernibilidade intrínseca entre arte e não arte. ”
  
De acordo com o modo como é geralmente usado hoje em dia, o termo "ética" refere-se, sobretudo, ao domínio dos direitos humanos, "os direitos do homem" - ou, por derivação, os direitos dos seres vivos. Devemos assumir a existência de um sujeito humano universalmente reconhecível, possuindo "direitos" que são, em certo sentido, naturais: o direito de viver, evitar abusos, desfrutar de liberdades "fundamentais" (de opinião, de expressão, de escolha democrática). eleição de governos etc.) Esses direitos ajudam a ser evidentes e são o resultado de um amplo consenso. 'Ética' é uma questão de nos ocuparmos com esses direitos, de garantir que eles sejam respeitados. ”



Toda resistência é uma ruptura com o que é. E toda ruptura começa, para os envolvidos nela, através de uma ruptura consigo mesmo.



A lição de felicidade de Alain Badiou


Entrevista por Nicolas Truong, via Le Monde, traduzida por Daniel Alves Teixeira.

Entrevista concedida por Alain Badiou para o Le Monde em 14.08.2015, em que o filósofo fala de algumas de suas experiências pessoais que levaram ao seu interesse pelo teatro e pela filosofia e também sobre suas atuais incursões no tema da felicidade.


Le Monde: Quais foram os encontros determinantes para a orientação da sua vida?

Alain Badiou: Antes do teatro e da filosofia, teve uma frase de meu pai. De fato, durante a segunda guerra mundial se constituiu uma lembrança formadora, determinante para a sequência da minha existência. À época, eu tinha seis anos. Meu pai, que estava na Resistência – ele foi nomeado em função disso prefeito de Toulouse na Liberação – afixou sobre o muro um grande mapa das operações militares e principalmente da evolução do fronte russo. A linha desse fronte estava marcada sobre o mapa por uma corda fina mantida por percevejos. Eu havia por diversas vezes observado as mudanças dos percevejos e da corda, sem fazer muitas perguntas: homem da clandestinidade, meu pai permanecia evasivo, ante as crianças, em relação a tudo que concernia a situação política e da guerra.

Nós estávamos na primavera de 1944. Um dia, era o momento da ofensiva soviética sobre a Criméia, eu vejo meu pai mudar a corda em direção à esquerda, em um sentido que indicava nitidamente que os Alemães refluíam em direção ao Oeste. Não somente seu avanço conquistador tinha sido impedido, mas eram eles que agora perdiam largas porções de território. Em um raio de compreensão, eu lhe disse: “Mas então, nós vamos talvez ganhar a guerra?”, e, por uma vez, sua resposta foi de uma grande clareza: “Mas com certeza Alain! É suficiente querê-lo!”.

Le Monde: Essa frase se tornou sua máxima?

 Alain Badiou: Essa resposta é uma verdadeira inscrição paternal. Eu herdei dela a convicção que quaisquer que sejam as circunstâncias, aquilo que nós queremos e decidimos tem uma importância capital. Desde então, eu quase sempre era rebelde às opiniões dominantes, porque elas são quase sempre conservadoras, e eu jamais renunciei a uma convicção unicamente porque ela não estava mais na moda.

Le Monde: Você dá grande importância à vontade. Ora, uma grande tradição filosófica, o estoicismo, aconselha aos homens de querer aquilo que acontece para ser feliz. Não há mais sabedoria em aceitar o mundo tal como ele é em vez do que querer mudá-lo?

Alain Badiou: Nosso destino, na década de 1940, era de ter perdido a guerra. Um estoico diria então que era razoável serem todos petonistas? Pétain fazia de suas visitas às províncias um grande triunfo, nós podíamos pensar que ela havia poupado o país do mais duro da guerra. Deveríamos aceitá-lo? Eu desconfio do estoicismo, de Sêneca que, rico e com ouro até o fundo de sua banheira, preconizava a aceitação do destino.

Existem também os materialistas rigorosos, os epicuristas, que consideram um absurdo se levantar contra as leis do mundo e assim arriscar inutilmente sua vida. Mas a o que resulta dessa doutrina? Aproveitar o dia que passa, o famoso Carpe Diem de Horácio? Não é algo extraordinário, existe entre as sabedorias antigas um elemento inato: o sujeito deve encontrar um lugar tranquilo no mundo tal como ele é, sem se preocupar que esse mundo possa arrasar a vida dos outros.

Le Monde: Qual é a origem dessas éticas egoístas?

Alain Badiou: Essas sabedorias prosperaram durante o Império Romano, onde a situação histórica parece bastante com a nossa: uma hegemonia mundial oferecendo pouca chance de definir e de praticar uma orientação absolutamente contrária aquela que exige o sistema econômico e político. Esse gênero de situação favorece em todos os lugares a ideia de que aquilo que precisamos é se adaptar a esse sistema para nele encontrar o melhor lugar possível.

Então, o filosofo realista deveria dizer: “Renunciemos a toda perspectiva de mudança do mundo: Nós instalemos”. Ou, na versão que Pascal Brunner dá desse conservadorismo inflexível: “ O modo de vida ocidental é não negociável”? Eu não me resolvo nisso. Eu quero outra coisa. É a minha fidelidade a máxima paternal.

Le Monde: Depois da guerra, houve um professor que o fez encontrar o teatro. Por que esse encontro foi determinante? Como o teatro se tornou um guia da vida?

Alain Badiou: Quando eu fiz meus estudos, qualquer um que chegasse à faculdade começava imediatamente por Racine, Corneille e Molière. Que isso nos agradasse ou não, nós devíamos estudá-los, até o fim, a razão de uma peça de cada um deles por ano: esse era o programa. Mas nós nos encontramos mais facilmente com uma pessoa do que com um programa. E foi isso que me aconteceu: no 4º ano, eu encontrei um professor de francês que tratou o teatro como uma maravilha da qual nós podíamos a tomar parte, pois o essencial não era estudá-lo, mas atuá-lo.

Ele criou uma companhia na qual cada voluntário podia encontrar seu lugar. E foi então que, progressivamente, eu e os outros nos tornamos atores. Que encontro! Foi um tipo de interrupção nas nossas vidas ordinárias de estudantes. Nós montávamos em cena, frente a um público, únicos responsáveis do que então acontecia. Isso também, como dizia meu pai, bastava querê-lo! Eu interpretei o papel principal de Fourberies de Scapin, o que me preparou para a astúcia e para réplicas. Eu me lembro da tremenda emoção no momento que me joguei na luz da cena, de minha primeira réplica: “O que é, senhor Octave, o que você tem, o que ele tem, que desordem é está?” que, pulando sobre a cena, eu devia projetar para uma plateia de desconhecidos. Sim, para fazer teatro, é preciso querê-lo e passar além da extrema dificuldade de estar lá, sozinho em plena luz em frente de todos, com o nervosismo, que é em você essa qualquer coisa que se revolta contra o risco.

Le Monde: Existe aí um conservadorismo subjetivo, uma disposição humana a conservação de si e do mundo tal como ele vai?

Alain Badiou: Sim, existe qualquer coisa no espírito humano de profundamente conservador e que vem da vida ela mesma. Antes de qualquer coisa, é preciso continuar a viver. É preciso se proteger, a fim, como escreve Spinoza, de “perseverar no seu ser”. Quando meu pai me explicou que a vontade pode bastar, ele deu a entender que é preciso prestar atenção nessa disposição em si mesmo.

O teatro, ele é também esse momento onde o corpo vivente serve uma ficção. Alguma coisa entre então em contradição com o puro e simples instinto de sobrevivência. No ato do cômico, existe a decisão miraculosa de assumir o risco de uma exposição integral de si mesmo. Graças ao meu professor do 4º ano, eu encontrei tudo isso. O teatro foi minha primeira vocação. E ele volta sempre.

Le Monde: No teatro, você encontrou então o encontro como a decisão….

Alain Badiou: Eu me encontrei, com efeito, antes de tudo, com alguém: meu professor de francês. Ele foi a mediação viva do encontro com o teatro. É exatamente isso o que explica Platão no Banquete, onde ele expõe que a filosofia ela mesma depende sempre do encontro com alguém. Esse é o sentido do maravilhoso conto que Alcebíades faz de seu encontro com Sócrates. Através desse encontro com alguém são colocadas as questões do querer, da decisão, da exposição e da relação com o outro. Tudo isso coloca você em uma situação de vida magnifica e perigosa.

Le Monde: Seu outro encontro foi com a filosofia e a leitura de Jean-Paul Sartre. Porque escolher a filosofia como orientação para a vida?

Alain Badiou: A filosofia, tal como eu a encontrei pela mediação de Sartre, prolonga ela também a máxima paternal. Eu continuo fiel a Sartre em um ponto essencial: nós não podemos argumentar através da situação para não fazer nada. É um ponto central de sua filosofia. A situação nunca é tal que seja justo parar de querer, de decidir, de agir. Para Sartre, é a consciência livre e ela somente que dá sentido a situação, e, por conseguinte, não se pode desembaraçar-se da responsabilidade própria, quaisquer que sejam as circunstâncias. Se a situação mesma parece tornar impossível aquilo que a nossa vontade quer, será preciso querer a mudança radical dessa situação. Eis a lição sartriana.

Le Monde: Em que a filosofia poderia nos ajudar a ser feliz?

Alain Badiou: A felicidade, é quando nós descobrimos que somos capazes de alguma coisa que nós não sabíamos capazes. Por exemplo, em um encontro amoroso, você descobre qualquer coisa que vai colocar em maus lençóis seu egoísmo conservador fundamental: você vai aceitar que sua existência depende inteiramente de uma outra pessoa. Antes de experimentá-lo, você não tinha a menor ideia disso.

Você aceita repentinamente que sua própria existência esteja na dependência de outra. E as precauções que você toma habitualmente para se proteger são minadas por esse outro que se instalou em sua existência. Em seguida, será preciso procurar tirar as consequências dessa felicidade, tentar mantê-la em seu apogeu, ou tentar reencontrá-la, reconstituí-la, para viver sobre o sinal dessa novidade primordial. É preciso aceitar que essa felicidade trabalha às vezes contra a satisfação.

Le Monde: Porque opor felicidade e satisfação?

Alain Badiou: Primeiramente, a felicidade é fundamentalmente igualitária, ela integra a questão do outro, enquanto que a satisfação, ligada ao egoísmo da sobrevivência, ignora a igualdade. Depois, a satisfação não é dependente do encontro ou da decisão. Ela ocorre quando nós encontramos um bom lugar no mundo, um bom trabalho, um carro bonito e belas férias no estrangeiro. A satisfação é o consumo das coisas pelas quais lutamos para obter. Afinal, é para gozar desses bens que nós tentamos ocupar um lugar adequado no mundo tal como ele é. Portanto a satisfação é, em relação à felicidade, uma figura restrita de subjetividade, a figura do sucesso segundo as normas do mundo.

O estoico pode dizer “Esteja satisfeito de estar satisfeito”. É uma posição ordinária que tudo mundo, eu inclusive, compartilha mais ou menos. No entanto, como filósofo, sou convocado a dizer que há algo de diferente que eu chamo de felicidade. E a filosofia sempre procurou orientar a humanidade do lado dessa felicidade real, aqui inclusive que essa não se obtém senão em detrimento da satisfação.

Le Monde: Se a felicidade consiste gozar a existência potente e criadora de uma coisa que parecia impossível, é preciso mudar o mundo para ser feliz?

Alain Badiou: A relação normal com o mundo é regida pela dialética entre satisfação e insatisfação. No fundo, é uma dialética de reivindicação, nós poderíamos chama-la de “visão sindical do mundo”. Mas a felicidade real não é uma categoria normal da vida social. Quando você faz uma demanda de felicidade e obtém um não como resposta, você tem duas possibilidades. A primeira consiste em mudar você mesmo e cessar de demandar essa coisa impossível. A felicidade lhe é interditada e é recomendado que você se contente com a satisfação. Você obedece. Tal é a raiz subjetiva do conservadorismo.

A segunda possibilidade é, como diz Lacan, de não ceder em seu desejo, ou como dizia meu pai, de não parar de querer aquilo que você quer. Então, existe um momento em que é preciso desejar mudar o mundo, para salvar a figura da humanidade que há em você, ao invés de ceder à proibição do impossível.

Le Monde: Então é sendo feliz que nós podemos mudar o mundo?

Alain Badiou: Sim! Sendo fiéis à ideia de ser feliz, e defendendo o fato que a felicidade não é idêntica à satisfação. Os mestres do mundo não gostam da mudança, então se você escolher manter contra os ventos e marés que qualquer coisa de outra é possível, eles vão fazer você saber de todos os meios que isso é falso. É exatamente o problema da Grécia hoje: o povo grego disse: “Nós não queremos mais sua tirania financeira. Nós queremos viver de outra forma.” As instituições europeias lhe responderam: “É preciso querer isso que nós queremos, mesmo contra seu próprio querer, e se vocês continuarem a não querer isso que vocês não querem, vocês vão ver o que lhes vai acontecer!”

Quando as pessoas recusam a servidão voluntária, eles as ameaçam. Então, os Gregos não estão pedindo-nos para continuar na dialética satisfação/insatisfação. Eles explicam que eles gostariam de poder decidir que alguma outra coisa é possível do que aquilo que lhe é imposto. Em especial, nós não estamos no registro da utopia: muitos economistas perfeitamente conservadores, explicam que nós podemos reestruturar a dívida grega, o que equivale a suprimi-la sem o dizer. Na realidade, o que os dirigentes europeus consideram como impossível, é deixar um povo decidir sobre esse ponto. Não é então uma sanção econômica racional, mas uma punição política. É um castigo ao desejo de felicidade, em nome da satisfação insatisfeita.

Le Monde: “Nós não vivemos nunca, mas nós esperamos viver, e nós temos sempre de ser felizes, é inevitável que não o sejamos nunca”, escreve Pascal. Uma felicidade verdadeira deve ser desesperada?

Alain Badiou: É uma frase sinistra. Mas se Pascal a escreve, é precisamente porque ele pensa que uma salvação no outro mundo o espera. Todos aqueles que argumentam a impossibilidade da felicidade na filosofia prometem uma outra, eles sabem que não podem entusiasmar o leitor expondo a ele a impossibilidade da felicidade. Eles tiram então de seu chapéu uma felicidade transcendente.

Eu sou absolutamente contra essa tese da felicidade sempre sonhada a qual não acedemos jamais. É falso, a felicidade é absolutamente possível, mas não na forma de uma satisfação conservadora. Ela é possível sobre a condição dos riscos assumidos nos encontros e decisões, os quais são colocados, em definitivo, em um momento ou outro, a toda vida humana.

Le Monde: Mas o que você faz das aflições: a doença, os acidentes da vida, os dramas, as rupturas e as separações conflituosas?

Alain Badiou: O fato de que há uma diferença entre felicidade e satisfação causa uma divisão da palavra aflição. Existem as aflições que se contentam em ser insatisfações profundas. Mas, mesmo nas situações de abismo mais profundo, a pista da felicidade raramente é integralmente fechada, pois a zona e a importância do possível são mudadas. Para alguém que tem duas pernas em bom estado, fazer uma terceira não é nada; para um paralisado em reeducação, é uma felicidade imensa.

Portanto, é preciso jamais declarar que a felicidade está suprimida: ela existe se modificando, em uma situação determinada, o limite entre o possível e o impossível. Ela consiste em não se deixar impor as impossibilidades abstratas e gerais.

Le Monde: O que é a aflição, então?

Alain Badiou: Nós poderíamos dar como primeira definição da aflição um estado de insatisfação grave e de extensão extrema da impossibilidade. Mas a aflição pode ser igualmente um fracasso da felicidade. A norma da fidelidade que eu introduzi, e que é sempre ligada a um encontro, e portanto a felicidade, propõe como imperativo a permanência dessa procura da felicidade. A fidelidade é o único imperativo ético, mas esse imperativo não é uma segurança de todo risco.

É preciso reconhecer que existem as catástrofes da felicidade. Essas últimas são de diferentes ordens: certas sobrevém por cansaço, por abandono, outras por infidelidade ou por traição. Na minha filosofia, o mal, é o fato de ser subjetivamente responsável por uma catástrofe da felicidade. Eu chamo isso de desastre. É uma experiência tão terrível quanto aquela da felicidade é intensa. Os conservadores gostam bastante dos desastres, pois disso eles tiram seu argumento principal para chamarem a se contentar com a satisfação.

Le Monde: No entanto, você diz que “mais vale um desastre que um desser”…

Alain Badiou: Ah sim. Mais vale correr o risco de um desastre, mas então também da felicidade real, que se proibir de imediato. Eu chamo de “desser” essa disposição conservadora do sujeito humano que o leva se reduzir à sobrevivência animal, a sua própria satisfação e seu lugar social. O “desser” é isso que interdita o sujeito de experimentar aquilo a que ele é verdadeiramente capaz.

Le Monde: As ligações de amizade de amor e amizade são alteradas por esse reino da satisfação das necessidades imediatas?

Alain Badiou: O mundo de hoje tem um modelo fundamental de alteridade e de troca, que é o paradigma comercial. Nós somos tentados a levar todas as relações com o outro como uma dimensão contratual de interesse recíprocos bem compreendidos. É a razão pela qual a separação é hoje muito mais ameaçadora do que era antes. Nós temos muito rapidamente o sentimento prematuro da obsolescência de qualquer coisa, sobre o modelo da obsolescência dos produtos. O conservadorismo de hoje é atormentado pela questão da mercadoria, que exige que você compre sempre o novo modelo e supõe então essa obsolescência rápida dos produtos.

O consumidor é a figura objetiva dominante, aquela que faz o mundo girar. Nossos mestres seguem com angustia o nível de compras de mercadoria pelas pessoas. Se, repentinamente, mais pessoas não compram, o sistema entraria em colapso como um castelo de cartas. Por isso nós estamos acorrentados a necessidade de comprar as coisas em seu surgimento, sua novidade, sua inutilidade funcional ou sua feiura criminal. Ora eu penso que isso não é sem contaminar a figura genérica das relações entre os homens, relações que agora valorizam oficialmente a concorrência.

Le Monde: Você faz um elogio da fidelidade?

Alain Badiou: De certo modo, porque essa obsessão da novidade mercantil, muitas vezes de modo disfarçado, é um fenômeno que prejudica a felicidade: a fidelidade sobre todas as suas formas é agora um valor ameaçado. Nós não temos o direito de ser indefinidamente fiel a seu velho carro, é preciso comprar outro, senão o sistema econômico está ameaçado!


Esse imperativo penetra o universo coletivo e pessoal e cria muitas separações. A essa lógica, é preciso opor a máxima herdada de meu pai: “Você pode querer continuar isso que você desejou, isso que você quis, e isso que então você é capaz. Você pode, então você deve.”


Para conhecer as obras do filósofo Alain BARDIOU eu recomendo essa dissertação de mestrado em Filosofia pela Faculdade de Letras UNIVERSIDADE DE LISBOA (Bruno M. F. P. Dias) intitulada: Acontecimento, Verdade e Sujeito:  A Política como Condição da Filosofia em Alain Badiou”DÊ CLIQUE AQUI PARA LER OU BAIXAR EM PDF

Filoparanavai 2020

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