sexta-feira, 15 de maio de 2015

ÉTICA: Problematizando o conceito de "Eudemonia"



Estritamente falando, o termo "eudemonia" é uma transliteração da palavra grega para prosperidade, boa fortuna, riqueza ou felicidade. Em contextos filosóficos a palavra grega "eudaimonia" tem sido tradicionalmente traduzida simplesmente por "felicidade", mas muitos estudiosos e tradutores contemporâneos tentaram evitar esta interpretação por poder sugerir conotações que nada ajudam no espírito do leitor acrítico. (Por exemplo, não se refere a um estado emotivo, nem é coextensional com a concepção utilitarista de felicidade, apesar de ambas as noções poderem, em alguns pensadores, contar como aspectos da eudemonia.) Dado que a palavra é composta pelo prefixo eu- (bem) e pelo substantivo "daimon" (espírito), tem-se proposto em alternativa expressões como "viver bem" ou "florescimento". Mas o consenso aparente é que "felicidade" é adequado se o termo for apropriadamente compreendido no contexto filosófico da antiguidade.

Aristóteles escreveu que todos concordam que a eudemonia é o bem principal para os seres humanos, mas que há diferenças consideráveis de opinião quanto ao que consiste a eudemonia (Ética a Nicômaco I.2, 1095a15-30). Na imagem de Sócrates apresentada por Platão nos primeiros diálogos socráticos, o protagonista adota a perspectiva de que a eudemonia consiste em viver uma vida justa, o que exige conhecimento, na forma de uma espécie de previdência (especialmente no Górgias). Nas obras posteriores (por exemplo, na República), Platão continuou a argumentar que a virtude é suficiente para a felicidade, e que os bens amorais não trazem eudemonia (a chamada tese da suficiência).

Como é bem sabido, Aristóteles concordava que a virtude é uma condição necessária para a eudemonia, mas sustentava que não é suficiente (a chamada tese da necessidade). Do seu ponto de vista, a "eudemonia" aplica-se mais apropriadamente não a qualquer momento particular da vida de uma pessoa, mas a uma vida inteira que tenha sido bem vivida. Apesar de a virtude ser necessária para uma vida dessas, Aristóteles argumentou que certos bens amorais podem contribuir para a eudemonia ou impedi-la pela sua ausência. Há alguma controvérsia entre os estudiosos quanto a saber como acabou Aristóteles por caracterizar a vida feliz, a vida marcada pela eudemonia. Ao longo dos primeiros nove livros da Ética a Nicômaco, Aristóteles parece pensar que uma vida feliz é a que envolve centralmente a atividade cívica. As virtudes que caracterizam a pessoa feliz são em si definidas como estados da alma que resultam de certas interações que têm lugar nas relações sociais. Mas no livro X, o argumento de Aristóteles é aparentemente que uma vida de contemplação do teórico (theoria) é o gênero mais feliz de vida, podendo até a vida cívica impedir este gênero de atividade (apesar de a vida privada de contemplação parecer pressupor a vida pública, dado que sem a vida pública para produzir bens e serviços, o filósofo é incapaz de viver em isolamento).

 
Onde Sócrates, Platão e Aristóteles concordam é na natureza objetiva da eudemonia, o que os afasta nitidamente da moralidade popular do seu tempo. Numa famosa passagem do Górgias (468e-467a), Sócrates choca Pólo argumentando que quem pratica o mal fica na verdade a perder relativamente a quem ele prejudicou, e que quem pratica o mal está condenado a ser infeliz até ser punido. A vítima do mal, em contraste, pode ser feliz ainda que seja vítima do maior sofrimento físico às mãos de quem pratica o mal. O Górgias conclui com um mito sobre o destino da alma humana depois da morte que torna claro que só o estado da alma, e não o estado físico do corpo, determina se alguém é feliz ou infeliz.

Apesar de Aristóteles não concordar que a felicidade não poderia diminuir de modo algum em virtude do sofrimento físico, não era por pensar que os sentires são decisivos para a felicidade. Pelo contrário, Aristóteles argumentou a favor de um padrão objetivo da felicidade humana, com base no seu realismo metafísico. Na Ética a Nicômaco (I.7), Aristóteles argumentou que a excelência humana deve ser interpretada em termos do que comumente caracteriza a vida humana (o chamado argumento funcional ou ergon). Este argumento funda-se claramente na sua doutrina da causalidade, segundo a qual qualquer membro de uma categoria natural se caracteriza por quatro causas: formal, material, eficiente e final. A causa final é inseparável da formal: ser uma certa categoria de coisa é apenas funcionar de um certo modo, e ter um certo gênero de função é apenas ser uma certa categoria de coisa. A função humana (ergon) encontra-se na atividade das nossas faculdades racionais, em particular a sabedoria prática (phronesis) e a ilustração (sofia). Dado que a atividade destas duas faculdades não é regulada por considerações subjetivas mas pelas restrições formais da própria razão, a excelência humana está determinada objetivamente: viver bem é viver uma vida caracterizada pelo uso excelente das nossas faculdades racionais, e esta excelência caracteriza-se pela aplicação bem-sucedida de regras gerais da vida virtuosa a situações particulares que exigem deliberação moral.

Aristóteles rejeitou perspectivas alternativas da felicidade por não estarem à altura do seu ideal (Ética a Nicômaco I.5, 1095b14-1096a10). A vida de honra política, por exemplo, reduz a felicidade ao grau de estima que os outros têm por nós, desligando assim a felicidade da operação da nossa própria função apropriada. Uma perspectiva mais popular equacionava a felicidade com o prazer, uma perspectiva que Aristóteles excluiu rapidamente por não distinguir a categoria natural dos seres humanos de outros animais que também sentem prazer e que nele se baseiam como força motivadora na sua luta diária pela sobrevivência. Para Aristóteles, como antes para Platão, a perspectiva hedonista negligencia a função essencial da racionalidade humana: regular e controlar os apetites e desejos humanos, canalizando-os para atividades que, a longo prazo, melhor assegurem o florescimento humano. Na verdade, é precisamente esta regulação e controle que distinguem a sociedade humana de todas as outras formas de vida, de modo que há uma conexão íntima entre a excelência humana e a vida política. Esta conexão está sujeita a uma certa tensão, contudo, dado que tanto Platão, na República, como Aristóteles, na sua vida de contemplação teórica, tornam a ordem social uma condição necessária da excelência humana ao mesmo tempo que argumentam que a felicidade pessoal envolve num certo sentido que nos desliguemos da comunidade em geral.

Os estóicos concordavam que a felicidade é o nosso fim último, pelo qual fazemos tudo o resto, e definiam-na como uma vida consistentemente vivida de acordo com a natureza. Não queriam dizer apenas com isto a natureza humana, mas a natureza do universo inteiro, do qual somos parte, e a ordem racional que ambos exibem. A razão prática exige assim uma compreensão do mundo e do nosso lugar nele, juntamente com a nossa aceitação resoluta desse papel. Seguir a natureza desta maneira é uma vida de virtude e tem como resultado um "bom fluir da vida", com paz e tranquilidade.

Os epicuristas também tomavam a eudemonia como o fim para os seres humanos, mas definiam-na em termos de prazer. Contudo, muitas das coisas que nos dão prazer têm consequências desagradáveis, que no cômputo geral perturbam a nossa vida, não nos fornecendo portanto a libertação das preocupações (ataraxia) nem a ausência de dor física (aponia) que caracterizam a verdadeira felicidade. Estes traços, pensavam, têm de ser assegurados pelo exercício da moderação, prudência e outras virtudes, que contudo não são valorizadas por si, mas apenas como meios instrumentais para uma vida de prazer e felicidade.

Esta forma de eudemonismo hedonista contrasta com o hedonismo dos cirenaicos, a principal exceção à afirmação de Aristóteles de que todos concordam que o mais elevado bem é a eudemonia. Versões incompletas do Aristipo tardio sugerem que o seu hedonismo envolvia dar livre vazão aos desejos sensuais (Xenofonte, Memorabilia 11.1.1-34), de modo a ser sempre capaz de desfrutar do momento, deitando mão ao que estava à mão (Diógenes Laércio 11.66). Mais tarde, os cirenaicos aperfeiçoaram esta posição de modo a procurar desfrutar por completo do prazer sensual sem sacrificar a autonomia nem a racionalidade. A sua concepção de prazer salientava os prazeres corporais, entendidos como um tipo de movimento (kinesis) ou o estado sobreveniente da alma (pathos). Por encararem tais estados transitórios como o mais elevado bem, os cirenaicos recusavam a perspectiva de que a eudemonia, um tipo de realização alargado e de longa duração, fosse o fim que devesse reger todas as nossas escolhas.

Texto de Scott Carson
Tradução de Desidério Murcho
Publicado em Encyclopedia of Philosophy, 2.ª ed., org. Donald M. Borchert (Macmillan Library Reference, 2005)

Publicado originalmente em: http://criticanarede.com/ 
 
Filoparanavai 2015

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