O que é a epistemologia?
Michael Williams
Universidade de Johns Hopkins
Tradução de Vítor João Oliveira
Michael Williams
Universidade de Johns Hopkins
Tradução de Vítor João Oliveira
O que é a epistemologia? A resposta é: o ramo da filosofia que se ocupa do conhecimento humano, pelo que também é designada de “teoria do conhecimento”. Só que isto diz-nos quase nada. Por que temos necessidade de uma teoria do conhecimento? E ela é uma teoria acerca de quê, e como é que a defendemos (ou contestamos)? Aliás, o que implica dizer que a epistemologia é um ramo da filosofia? O que há de especial nas investigações filosóficas do conhecimento? Em que diferem da discussão psicológica ou sociológica acerca do “conhecimento” ou da “cognição”?
Muitos filósofos nos dias de hoje negam que as questões filosóficas acerca do conhecimento tenham um carácter especial. Defendem que a epistemologia precisa de ser “naturalizada”: quer dizer, aproximá-la de uma ou mais ciências, talvez da psicologia cognitiva. Outros filósofos defendem que a epistemologia está morta. Estas perspectivas são dificilmente separáveis: a distinção entre a transformação radical e a abolição imediata não é nítida. Contudo, penso que o naturalismo está enganado e que os obituários da epistemologia são prematuros.
Cinco problemas
Para perceber o que há de diferente numa determinada área teórica, a melhor forma de começar é perguntar que problema (ou problemas) aborda. No que diz respeito à epistemologia, sugiro que se distinga, cinco tipos de problemas […]. São eles:
1. O problema analítico: O que é o conhecimento? (Ou se preferirmos, o que entendemos ou devemos entender por “conhecimento”? Por exemplo, como se distingue (ou se deve distinguir) o conhecimento da simples crença ou opinião? O que aqui se pretende, idealmente, é uma explicação precisa ou “análise” do “conceito” de conhecimento.
2. O problema da demarcação: Este divide-se em dois problemas: a) O problema “externo” pergunta: sabendo-se de algum modo o que é o conhecimento, poderemos determinar à partida que coisas podemos razoavelmente esperar conhecer? Ou como se refere amiúde, poderemos determinar o âmbito e os limites do conhecimento humano? Será que há assuntos acerca dos quais podemos ter conhecimento, enquanto há outros acerca dos quais não podemos ter mais do que opinião (ou fé)? Será que há uma quantidade significativa de formas de discurso que ficam simultaneamente fora do domínio do “factual” ou do que “tem sentido”? O objectivo é traçar uma fronteira que separe a província do conhecimento de outros domínios cognitivos (ou talvez o cognitivo do não cognitivo). b) O problema “interno” pergunta se há fronteiras significativas no interior do domínio do conhecimento. Por exemplo, muitos filósofos têm defendido que há uma distinção fundamental entre o conhecimento a posteriori ou “empírico” e o conhecimento a priori ou “não empírico”. O conhecimento empírico depende (de uma forma ou de outra) da experiência ou observação, ao passo que o conhecimento a priori é independente da experiência, fornecendo a matemática o exemplo mais claro. Contudo, outros filósofos negam que se possa fazer tal distinção.
3. O problema do método: Este relaciona-se com o modo como obtemos ou procuramos conhecimento. Sugiro que distingamos três subproblemas. a) O problema da “unidade” coloca a questão seguinte: Há só uma forma para adquirir conhecimento, ou há várias, dependendo do tipo de conhecimento em questão? Por exemplo, alguns filósofos têm defendido que há diferenças fundamentais entre as ciências naturais e as sociais ou humanas. b) O problema do desenvolvimento (progresso) coloca a questão seguinte: Podemos melhorar as nossas formas de investigação? No séc. XVII este era um problema de importância capital para os filósofos que defendiam os avanços científicos contra o que consideravam ser o dogmatismo estéril da escolástica (a versão semi-oficial das posições filosóficas e científicas de Aristóteles ensinada nas universidade e “escolas”). c) Finalmente, o problema da “razão” ou da “racionalidade”. A preocupação aqui é saber se há métodos de investigação, ou de fixação de crenças, que sejam claramente racionais e, se há, quais são.
4. O problema do cepticismo: Será de facto possível obter algum conhecimento? Este problema é difícil porque há argumentos poderosos, alguns bastante antigos, a favor da resposta negativa. Por exemplo, embora o conhecimento não possa assentar em pressupostos brutos, todos os argumentos têm de acabar por chegar ao fim. Parece que, em última análise, as opiniões das pessoas assentam em indícios que elas não podem justificar e não podemos considerar conhecimento genuíno. O problema que aqui se coloca, então, é o de conhecer os argumentos do cepticismo filosófico, a tese que defende a impossibilidade do conhecimento. Uma vez que há uma ligação forte entre conhecimento e justificação, o problema do cepticismo está intimamente ligado ao problema da justificação.
5. O problema do valor: Os problemas esboçados são significativos somente se faz sentido possuir conhecimento. Mas será faz, e se sim porquê? Supondo que sim, para que o queremos? Queremo-lo de qualquer forma, ou por causa de determinados objectivos e em determinadas situações? O conhecimento é o único objectivo da investigação, ou há outros com igual (ou maior) importância?
Obviamente que estes problemas não são independentes. O modo como lidamos com um impõe constrangimentos ao modo como lidamos com os outros. Mas o modo como um dado filósofo ajuíza a sua importância relativa determinará o sentido que uma dada teoria do conhecimento necessita alcançar e como pode ser defendida. Isto é típico na filosofia, porquanto se verificam profundos desacordos não apenas em relação à correcção das respostas a um conjunto determinado de perguntas mas também às próprias questões.
Muitos filósofos atribuem um estatuto privilegiado ao problema do cepticismo na teoria do conhecimento. Com efeito, identificam praticamente o problema do conhecimento com este problema. The Problem of Knowledge, de Ayer (1956), é um exemplo cabal disto.
Há muito a favor desta perspectiva. Há um consenso generalizado relativamente ao facto de a idade moderna da filosofia começar com Descartes (1596-1650), e que o seu contributo fundamental foi ter induzido a filosofia a realizar uma viragem enfaticamente epistemológica.
Descartes escreveu durante um período de grande produção intelectual quando (entre outras coisas) a visão medieval do mundo, uma síntese de algum modo instável entre a filosofia aristotélica e a teologia cristã, começou a ser crescentemente pressionada por novas ideias científicas emergentes. Insatisfeito com o ensino do seu tempo e sedento de promoção da nova ciência, Descartes defende um corte radical com o passado. Pretende construir uma visão do mundo e o nosso conhecimento dele a partir dos alicerces. Ao promover esta reconstrução, afirma que aceita como princípios básicos apenas aqueles que, logicamente falando, não podem ser colocados em dúvida. Com efeito, utiliza o argumento céptico como um filtro para eliminar todas as opiniões duvidosas: devemos aceitar apenas as proposições que resistam ao mais determinado assalto céptico. Por confiar no facto de ter encontrado tais proposições, Descartes não é realmente um céptico. Não obstante, a sua “dúvida metódica” coloca os problemas do cepticismo no centro da reflexão.
Conjuntamente com estas considerações históricas, há razões teóricas fortíssimas a favor da posição que afirma que os problemas cépticos são a força motriz por detrás das teorias filosóficas do conhecimento. Uma das formas mais esclarecedoras para compreender a diferença entre as teorias tradicionais do conhecimento é considerá-las tentativas de descolagem de ideias concorrentes sobre os erros dos argumentos cépticos. […]
Colocar as preocupações com o cepticismo no centro da epistemologia torna muito claro o que distingue a reflexão filosófica acerca do conhecimento. Tal reflexão responde a preocupações profundas sobre se de facto o conhecimento é possível. Isto não pode ser considerado uma matéria científica estrita na medida em que o cepticismo questiona todo o alegado conhecimento, incluindo o científico.
[…] [A] ameaça do cepticismo não foi nunca o verdadeiro motivo da reflexão filosófica sobre o conhecimento humano. Uma distinção útil aqui é a que se pode estabelecer entre o objectivo do filósofo e a sua tarefa: isto é, entre o que ele espera alcançar e o modo como pensa que deve prosseguir (devo esta terminologia útil a RobertFogelin). O cepticismo tem sido o problema epistemológico dominante na idade moderna não porque “refutar o céptico” seja sempre o objectivo da reflexão epistemológica mas porque eliminar a argumentação céptica é quase invariavelmente uma das suas tarefas fundamentais. Por exemplo, se suspeitamos que certo tipo de afirmações são mais vulneráveis aos ataques cépticos do que outras, explorar os limites do cepticismo oferecerá uma via para definir demarcações significativas. Ou, dito de outro modo, se pudermos mostrar onde erram os argumentos cépticos, é de esperar aprender importantes lições sobre conhecimento e justificação. Não é necessário estar no espaço das conclusões cépticas para nos interessarmos pelos argumentos cépticos.
[…] [E]mbora a epistemologia moderna tenha mostrado uma tendência definitiva para seguir o paradigma cartesiano, colocando o cepticismo em primeiro lugar, a minha caracterização da epistemologia no que diz respeito à listagem dos problemas, deixa em aberto a possibilidade de desenvolver outras abordagens. Este aspecto da minha abordagem da epistemologia será importante quando discutirmos se o tema se esgotou.
Epistemologia e a “tradição ocidental”
Dos meus cinco problemas, o do valor é o menos discutido pelos filósofos contemporâneos. Mas todos os outros problemas dependem deste. Se o conhecimento não tivesse importância, não perderíamos tempo a imaginar como o definir, como o obter, nem a traçar linhas à sua volta. Nem nos interessaria refutar o céptico. Se não víssemos valor no conhecimento, o cepticismo seria provavelmente ainda um puzzle mas não um problema. Contudo, parece-me que o conhecimento tem importância (para a maioria de nós, pelo menos algumas vezes); se não o conhecimento de acordo com alguns critérios muito estritos, pelo menos outros conceitos epistemológicos, tais como justificação ou racionalidade. Porquê?
Uma resposta é que a preocupação com o conhecimento (ou com realidades afins) está de tal modo enraizada na nossa tradição ocidental que não é opcional. Esta tradição, que nos seus aspectos filosóficos e científicos, tem as suas origens na Grécia clássica, é globalmente e no seu sentido mais lato uma tradição racionalista e crítica. A ciência e a filosofia começam quando as ideias acerca da origem e natureza do universo se separam do mito e da religião e são tratadas como teorias que se podem discutir: isto é, comparadas com (e porventura superadas por) teorias concorrentes. Como observou Karl Popper, esta abordagem globalmente racionalista para compreender o mundo pode ser considerada como um tipo de tradição de “segunda ordem”: o que conta não são crenças particulares — encaradas como sagradas, ancestrais, e desse modo mais ou menos inquestionáveis — mas a prática do exame crítico das ideias correntes para que se possa reter apenas o que fica depois da inspecção. Ter herdado esta tradição explica a nossa tendência para contrastar conhecimento com preconceito ou com a (simples) tradição. A distinção é invejosa, o que é uma outra forma de dizer que o conhecimento importa. E isto não é apenas uma preconceito local. Uma vez desperto para o facto de mesmo as nossas mais compartilhadas posições poderem ser desafiadas, não há retorno para um estádio pré-crítico, para uma perspectiva tradicionalista. É por isso que a preocupação com o conhecimento já não é opcional.
A perspectiva racionalista pode aplicar-se a ela própria. Quando o é temos a epistemologia: um estudo de terceira ordem, segundo uma tradição de reflexão metacrítica sobre os nossos objectivos e procedimentos epistemológicos. Temos uma tradição de investigação centrada no tipo de questões que iniciamos.
Dada esta perspectiva de epistemologia, é fácil ver por que razão o cepticismo é especialmente difícil de ignorar. O cepticismo é o gato com o rabo de fora do racionalismo ocidental: um ataque argumentativamente sofisticado à própria argumentação racionalista. Representa o caso extremo da tradição da investigação crítica reflexivamente aplicada. Desde os primórdios da filosofia ocidental, tem havido uma contra-tradição que defende que os limites da razão são muito mais estreitos do que os epistemólogos optimistas gostam de pensar, que a própria ideia de razão é uma armadilha e uma ilusão e que, mesmo que não o fosse, o conhecimento científico e filosófico acaba por não ser o que se pensa que é. Se o cepticismo não pode ser refutado, a perspectiva racional destrói-se a si própria.
Texto retirado de Michael Williams, Problems of Knowledge: A Critical Introduction to Epistemology (Oxford: Oxford University Press, 2001), pp. 1-5. A presente tradução está disponível no site www.criticanarede.com.
filoparanavai 2012
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