Hildegard Angel é filha de Zuzu Angel e jornalista social e
de moda. Iniciou sua carreira no jornal O Globo, e colaborou com revistas como
Vogue e Manchete. Fundou em 1993 o Instituto Zuzu Angel e em 1995 a Academia
Brasileira de Moda. Leia mais sobre H. Angel aqui
Em artigo publicado no site Brasil247, a jornalista Hildegard Angel compara
o momento atual do Brasil ao golpe de 1964, que "dilacerou" sua
família; "Há cheiro de 1964 no ar. Não apenas no Brasil, mas também nas
vizinhanças. Acho então que é chegada a hora de dar o meu depoimento. Dizer a
vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.
Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência
Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu
não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas,
que jamais pararam de sangrar", escreve Hildegard.
Abaixo a íntegra do artigo.
É MEU DEVER DIZER AOS JOVENS O QUE É UM GOLPE DE ESTADO
Há cheiro de 1964 no ar. Não apenas no Brasil, mas também
nas vizinhanças. Acho então que é chegada a hora de dar o meu depoimento.
Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o
que é de fato uma ditadura.
Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como
são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade
em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão
raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.
Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que
sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.
Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por
vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem
razões...
Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a
minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse
durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como
cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela
brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria
cegueira.
Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais
tivemos.
Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele.
Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em
casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou
não, ouvi: "Ah, mas se soubessem como éramos felizes... Dormíamos de mãos
dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes". E se
olharam, um ao outro, completamente felizes.
Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram,
éramos e somos completamente infelizes!
A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um
colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe
média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que
antevia uma "invasão vermelha", quando o que, de fato, hoje se sabe,
navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.
Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de
esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas,
tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo
acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para
o índex nacional engendrado pela prepotência.
As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas,
papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o
sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma
denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais
serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e
pronto.
E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são
as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte.
Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As
torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou
deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados,
mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.
Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar
nas de ontem. Quando cochichavam sobre "as malas do Golbery" ou
"as comissões das turbinas", "as compras de armamento".
Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava,
pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade,
uma Justiça de verdade, um país de verdade.
E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir
se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer
patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso
não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som
da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.
Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto,
corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só
desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregori, com a
instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando
Henrique Cardoso.
Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele,
estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em
Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil
roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos seus pai
e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado por
membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.
Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados
Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua sala de aula, no curso de
Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos
seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.
Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em
volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista
social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma
insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por
ter sobrevivido.
Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e
apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar
de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para tal e já ter então alcançado
o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma
contagem regressiva para meu próprio fim.
Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como
acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando
me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar de tudo, e promover nessa
plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar os meus mártires e
tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na
política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações
produtivas, efetivas e criativas que eu consiga multiplicar.
E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar
modificou minha vida!
Fonte: https://www.brasil247.com/
BIOGRAFIA DE ZUZU ANGEL
Filoparanavaí 2020
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