quinta-feira, 12 de maio de 2011

ÉTICA / Direitos Humanos implica em Lutas e Conquistas da Sociedade - TEORIA e PRÁXIS

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ÉTICA / FILOSOFIA MORAL / DIREITOS HUMANOS
Conforme abordagem temática disponível no site www.fpabramo.org.br/ a decisão do STF sobre casamentos entre homossexuais atende ao anseio de 97% dos gays e lésbicas e de grande parcela da sociedade brasileira. Na pesquisa "Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, Intolerância e respeito às diferenças sexuais", que a Fundação Perseu Abramo realizou em 2009 em parceria com a alemã Rosa Luxemburg Stiftung, o desrespeito aos direitos civis foi apontado como um dos principais entraves para garantir plena cidadania a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). Disponibilizamos aqui uma análise desta pesquisa de 2009 para adquirirmos maior conhecimento sobre esta temática, neste mês de maio, quando somos convidados a fazermos uma profunda reflexão sobre a Homofobia e buscar através do Conhecimento e de ações intervencionistas, combater este mal social e cultural a partir de suas raízes.

Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil
Intolerância e respeito às diferenças sexuais
Apresentação
Por Gustavo Venturi* Atualizado em filoparanavai em 12.05.2011 às 9h00

“Deus fez o homem e a mulher [com sexos diferentes] para que cumpram seu papel e tenham filhos”
(frase popular, anônima, que tem a concordância de 11 em cada 12 brasileiros/as)

No final de janeiro de 2009 foi apresentada no Fórum Social Mundial, em Belém, a primeira parte da pesquisa intitulada Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, Intolerância e respeito às diferenças sexuais – uma realização da Fundação Perseu Abramo, em parceria com a alemã Rosa Luxemburg Stiftung.

Com dados coletados em junho de 2008(1), a pesquisa percorreu processo de elaboração semelhante ao de estudos anteriores do NOP(2), tendo sido convidados pela FPA para definir quais seriam as prioridades a investigar, entidades e pesquisadores dedicados ao combate e ao estudo da estigmatização e da discriminação dos indivíduos e grupos com identidades ou comportamentos sexuais que não correspondem aos preceitos da heteronormatividade dominante – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).

Com o intuito de subsidiar ações para que as políticas públicas avancem em direção à eliminação da discriminação e do preconceito contra as populações LGBT, de forma a diminuir as violações de seus direitos e a promover o respeito à diversidade sexual, buscou-se investigar as percepções (indicadores subjetivos) sobre o fenômeno de práticas sociais discriminatórias em razão da orientação sexual e da identidade de gênero das pessoas, bem como manifestações diretas e indiretas de atitudes preconceituosas. A pesquisa cobriu assim um amplo espectro de temas, de modo que o relato que segue constitui uma leitura – entre muitas que certamente os dados obtidos permitem – sobre parte dos resultados que parecem mais relevantes.

O preconceito dos outros, o assumido e o velado

Indagados sobre a existência ou não de preconceito contra as pessoas LGBT no Brasil, quase a totalidade das pessoas entrevistadas respondeu afirmativamente: acreditam que existe preconceito contra travestis 93% (para 73% muito, para 16% um pouco), contra transexuais 91% (respectivamente 71% e 17%), contra gays 92% (70% e 18%), contra lésbicas 92% (69% e 20%) e, tão freqüente, mas um pouco menos intenso, 90% acham que no Brasil há preconceito contra bissexuais (para 64% muito, para 22% um pouco). Mas perguntados se são preconceituosos, apenas 29% admitiram ter preconceito contra travestis (e só 12% muito), 28% contra transexuais (11% muito), 27% contra lésbicas e bissexuais (10% muito para ambos) e 26% contra gays (9% muito).

O fenômeno de atribuir os preconceitos aos outros sem reconhecer o próprio é comum e esperado, posto que a atitude preconceituosa, considerada politicamente incorreta, tende a ser socialmente condenável. Assim, além do preconceito assumido, de antemão buscou-se cercar o preconceito velado, recorrendo-se a três tipos de questões. Primeiro, antes de falar em sexualidades ou em discriminação, através de um bloco de perguntas voltadas para captar a aversão a pessoas ou grupos sociais considerados ‘diferentes’, ‘estranhos’, ‘que não gostamos de encontrar’, que ‘podem nos fazer sentir antipatia por elas, às vezes até ódio’. Mais à frente, aferindo o grau de concordância ou discordância com frases “que costumam ser ditas sobre os homossexuais – coisas que algumas pessoas acreditam e outras não”. E, finalmente, testando a reação das pessoas entrevistadas a situações reais ou hipotéticas, de proximidade e contato social com gays e lésbicas: no espaço de trabalho, na vizinhança, em amizades, com médico ou médica em um tratamento, com o professor ou professora de filhos pequenos e na hipótese de que o próprio filho ou filha fosse homossexual.

Ao todo essas questões somaram 22 perguntas (26 variáveis), tendo-se atribuído às respostas de cada qual os valores zero, um ou dois – onde zero expressava não preconceito e dois a alternativa de resposta mais preconceituosa a cada pergunta. Por exemplo, diante da frase “a homossexualidade é uma doença que precisa ser tratada”, à concordância total atribuiu-se dois pontos, à discordância total zero ponto e às alternativas intermediárias (concordo em parte ou discordo em parte) um ponto. Ou ainda, “se soubesse que sua melhor amiga é lésbica” romperia a amizade recebeu dois pontos, não gostaria mas procuraria aceitar recebeu um ponto e não se importaria ou ficaria contente zero ponto.

Do total da amostra, 6% dos entrevistados (que por suas respostas somaram mais de 2/3 dos pontos possíveis) foram classificados como tendo forte preconceito contra LGBTs; 39% como portadores de um preconceito mediano (somaram entre 1/3 e 2/3 dos pontos) e 54% manifestaram um grau de preconceito que foi classificado como leve (ficaram abaixo de 1/3 da pontuação possível). A leitura negativa é que apenas 1% não expressou qualquer nível de preconceito.

A medição da homofobia e a comparação de preconceitos

Em que pese a tentação sensacionalista de ‘denúncia’ a partir da constatação de que 99% da população brasileira têm algum grau de preconceito contra LGBTs (na verdade um resultado ambivalente, já que também potencialmente paralisante), é importante cautela na leitura dos dados para não forçá-los a dizerem o que não sustentam. Antes de mais nada, como todo achado em pesquisa social, esse percentual é a expressão não de uma realidade objetiva, mas um dado construído. Outras perguntas, frases ou outras situações de proximidade com homossexuais que fossem sugeridas, ou ainda outra forma de classificar e pontuar as respostas obtidas poderiam levar a uma taxa global de preconceito diferente – com certeza a outra distribuição das frequências na escala de preconceitos leve, mediano e forte.

Por sua vez, é evidente que uma medida de preconceito assim construída, pontuando como preconceituosas não apenas as respostas extremas, mas também respostas intermediárias – por exemplo, quem disse ter ‘antipatia’ por travestis (mas não ‘ódio ou repulsa’), ou ainda que não gostaria mas procuraria aceitar vizinhos homossexuais (em vez de não aceitaria e mudaria de casa) – não pode ser lida como sinônimo de medida da homofobia. Uma análise mais apurada dos dados colhidos (ainda a ser feita) certamente permitirá que se chegue a uma estimativa aproximada de quantos são os homofóbicos no país – os 6% que disseram espontaneamente no início da entrevista não gostar de ver ou de encontrar L, G, B ou Ts, antes mesmo que a temática da diversidade sexual fosse aventada, ou os que são totalmente contra a união conjugal homossexual, são candidatos a compor esse contingente. É provável que quase todos os já classificados como portadores de forte preconceito também integrem tal grupo.

Mas para o combate à homofobia desde já interessa distinguir valores e comportamentos discriminatórios de valores e atitudes meramente que, embora preconceituosos, não exprimam claramente apoio a discriminações, alguns até com tendência à tolerância – de forma a que se possa identificar o perfil e o espaço social de seus respectivos adeptos (conscientes ou não), com vistas à elaboração de políticas públicas focadas. Tomar os 99% preconceituosos como indistintamente homofóbicos é tecnicamente incorreto, do ponto de vista da construção desse dado, e politicamente ineficiente, do ponto de vista da intervenção no problema.

A despeito dessas observações, os resultados encontrados nesta investigação chamam atenção quando comparados com os de estudos recentes semelhantes. O diagnóstico de que a sociedade brasileira é preconceituosa contra diferentes grupos parece variar pouco: na pesquisa Idosos no Brasil, em 2006, 85% dos não idosos (16 a 59 anos) tinham afirmado que no Brasil há preconceito contra os mais velhos; na pesquisa Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil, em 2003, 90% reconheciam que há racismo e 87% afirmavam que os brancos têm preconceito contra os negros; e agora, como vimos, cerca de 92% admitem que há preconceito contra LGBT no Brasil.

Mas tratando-se de preconceito assumido e velado o quadro comparativo é outro: se em 2006 apenas 4% dos não idosos admitiam ser preconceituosos em relação aos idosos, e se em 2003 também apenas 4% dos de cor não preta assumiam ser preconceituosos em relação aos negros (taxa que era de 10% em pesquisa do Datafolha, em 1995), agora encontramos em média 27% declarando ter preconceito contra LGBTT – sendo que 23% admitem ter preconceito contra os cinco grupos simultaneamente e 32% contra pelo menos um dos cinco. E com metodologia muito parecida, inclusive com perguntas análogas – por exemplo, como reagiria “se sua filha ou filho casasse com um/a negra/o”, feita para os de cor não preta – e ainda com algoritmo semelhante para montagem de umauma escala de preconceito racial velado, 74% manifestaram em algum grau de preconceito racial, em 2003 (87% em 1995), contra os 99% de preconceito potencialmente homofóbico, achados agora.

Isso significa que há mais preconceito contra LGBT que contra negros ou idosos no Brasil? Pode ser que sim, ou que não, mas não necessariamente. Ou talvez que as formas que o preconceito contra LGBT adquire são piores que as do preconceito racial ou etário, em termos de violência e outras expressões de discriminação? Tão pouco os dados permitem afirmar, negar ou buscaram investigar isso. Na verdade, essa ‘disputa’ é falaciosa, a começar pelo fato de que as identidades em jogo estão, para milhares de pessoas, indissoluvelmente entrecruzadas (pensemos em negras lésbicas idosas). Importa é não perder de vista que na investigação da opinião pública estamos sempre no campo nebuloso das percepções, e que, no terreno moral dos temas em pauta, a ‘realidade’ encontra-se ainda menos acessível, mediada pela disposição a confissões.

Ora, se é esse o limite desses materiais, é preciso aprofundar a análise de modo a compreender o fato - este sim, claramente sustentável pelos dados - de o
preconceito contra a população LGBT ser mais facilmente admitido que, por exemplo, o preconceito racial. Quatro hipóteses, não necessariamente excludentes, parecem concorrer para explicar esse contraste. Primeiro, tomando o dado em sua ‘literalidade’ (como em geral convém, até prova em contrário), a maior admissão de preconceito contra LGBT seria expressão de um preconceito efetivamente mais arraigado, mais assimilado e ainda pouco criticado socialmente. A alta disseminação de piadas sobre ‘bichas’, ‘veados’ ou ‘sapatonas’, por exemplo, e a presença cotidiana de personagens caricaturais em novelas e programas na TV, considerados humorísticos, seriam a um só tempo evidências dessa tolerância social e dispositivos de seu reforço e reprodução.

A segunda hipótese é que a maior admissão de preconceito contra LGBT tem a ver com a explicação da ‘natureza’ da orientação sexual, para muitos vista como uma opção ou preferência – em contraste com as identidades ‘raciais’ ou etárias que, de modo mais evidente, independem das escolhas individuais, sendo assim não sujeitas à crítica (como opções) e, conseqüentemente, mais condenável discriminá-las. De fato, 31% discordam (25% totalmente) que “ser homossexual não é uma escolha, mas uma tendência ou destino que já nasce com a pessoa”, e 18% concordam apenas em parte (só 37% concordam totalmente). Ora, é plausível supor que quem acredita que ser homo ou bissexual é uma escolha, possa considerar essa ‘opção’ um erro, passível de crítica, de gozação e de outras formas de punição (discriminações).

É sintomático a esse respeito que, diante de duas alternativas, se “os governos deveriam ter a obrigação de combater a discriminação contra homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais”, ou se “isso é um problema que as pessoas têm de resolver entre elas”, 70% concordem com a segunda alternativa, contra apenas 24% que entendem que o combate contra a discriminação da população LGBT deve ser objeto de políticas de governo. Em contraste, em 2003, 36% avaliaram que “os governos deveriam ter a obrigação de combater o racismo e a discriminação racial”, contra ‘apenas’ 49% que consideraram que “isso é um problema que as pessoas têm de resolver entre elas, sem a interferência do governo”.

Um terceiro fator, em parte derivado do primeiro, decorrente do ainda baixo nível de autocrítica social da cultura sexual machista e heteronormativa no país, é a ausência de uma legislação a punir criminalmente atos homofóbicos e transfóbicos. Nesse sentido, enquanto o PL 122 (ou lei semelhante), hoje parado no Senado, não for promulgado e enquanto não ocorrerem eventuais condenações exemplares por crimes de ofensa ou discriminação de pessoas por sua orientação sexual ou identidade de gênero, é pequena a chance que se reverta de forma expressiva ou que se acelere a reversão (provavelmente já em curso) no processo de reprodução de preconceitos de natureza homofóbica.

Por fim, há o peso legitimador dos discursos religiosos (especialmente cristãos, tratando-se de Brasil, e ainda particularmente católico, em que pese o crescimento recente acentuado das igrejas evangélicas) no reforço de concepções preconceituosas da homossexualidade: a concordância de 92% da opinião pública (sendo 84% totalmente) com a frase epígrafe, “Deus fez o homem e a mulher com sexos diferentes para que cumpram seu papel e tenham filhos”, contra apenas 5% que discordam; e de 66% (58% totalmente) com a frase “homossexualidade é um pecado contra as leis de Deus”, contra 22% que discordam (só 17% totalmente) – revelam o tamanho da colaboração religiosa para a intolerância com a diversidade sexual.

Em suma, a pesquisa dá números ao que já se suspeitava: por trás da imagem de liberalidade que o senso comum atribui ao povo brasileiro, particularmente em questões comportamentais e de sexualidade, há graus de intolerância com a diversidade sexual bastante elevados – coerentes, na verdade, com a provável liderança internacional do Brasil em crimes homofóbicos. O que indica que há muito por fazer, em termos de políticas públicas, para tornar realidade o nome do programa da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, criado 2004, Brasil sem Homofobia – ele mesmo, segundo a pesquisa, conhecido por apenas 10% da população (2% dizem conhecê-lo de fato e 8% já ouviram falar).

Outros temas foram abordados, inclusive de políticas contra a discriminação LGBT para as áreas de educação, saúde, emprego, justiça, cultura e direitos humanos, os quais comentaremos em breve. E até fim de março aqui estará disponível também a segunda parte do estudo, com 400 entrevistas com gays e lésbicas, residentes em nove regiões metropolitanas do país, com dados inéditos de percepção e vivências de discriminação.


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*Gustavo Venturi, doutor em Ciência Política e mestre em Sociologia pela USP, é professor de sociologia da FFLCH-USP.


Notas:
(1) Colaboraram Rita Dias e Vilma Bokany, analistas do Núcleo de Opinião Pública (NOP) da Fundação Perseu Abramo.

Levantamento quantitativo (survey) com amostragem probabilística nos primeiros estágios (sorteio de municípios, setores censitários e domicílios) e controle de cotas de sexo e idade (IBGE) para a seleção dos indivíduos (estágio final). Total de 2.014 entrevistas com população acima dos 15 anos de idade (todas as classes sociais), disper sa nas áreas urbanas de 150 municípios (pequenos, médios e grandes), em 25 UFs, nas cinco macrorregiões do país (Sudeste, Nordeste, Sul, Norte e Centro-Oeste). Abordagem domiciliar, com aplicação de questionários estruturados (versões A e B, aplicados a duas sub amostras espelhadas), somando 92 perguntas distintas (cerca de 250 variáveis), com duração média das entrevistas em torno de uma hora. Margens de erro de até ± 3 pontos percentuais, com intervalo de confiança de 95%. Coleta dos dados entre 7 e 22 de junho de 2008.

(2) Idosos no Brasil, Desafios e Expectativas na Terceira Idade (2006, em parceria com os Sesc-SP e Nacional), Perfil da Juventude Brasileira (2003, em parceira com o Instituto Cidadania), Discriminação Racial e Preconceito de Cor no Brasil (2003, em parceira com a Rosa Luxemburg Stiftung) e A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado (2001).





Safatle: Há um esforço de setores da sociedade em apagar a ditadura da história do país
publicado em filoparanavai em 15/04/2011 Por Gilberto Costa - Fonte Agência Brasil, 30/1/2011 Após a Segunda Guerra Mundial, os judeus sobreviventes revelaram que seus carrascos asseguravam que ninguém acreditaria no que havia ocorrido nos campos de concentração. A história, no entanto, não cumpriu o destino previsto pelos nazistas, muitos foram condenados e o episódio marca a pior lembrança da humanidade. Crimes cometidos em outros momentos de exceção também levaram violadores de direitos humanos a serem interrogados em comissões da verdade e punidos por tribunais, como na África do Sul, em Ruanda, na Argentina, no Uruguai e Paraguai. Para o filósofo Vladimir Safatle, professor da Universidade de São Paulo (USP), há um lugar que resiste à memória do horror e a fazer justiça às vítimas: o Brasil. Nenhum agente do Estado ditatorial (1964-1985), envolvido em crimes como sequestro, tortura, estupro e assassinato de dissidentes políticos, foi a julgamento e preso. Em março, será lançado o livro "O Que Resta da Ditadura" (editora Boitempo), organizado por Safatle e Edson Teles. A obra tenta entender como a impunidade se forma e se alimenta no Brasil. Para Safatle,o Brasil continua uma democracia imperfeita por resistir a uma reavaliação do período da ditadura militar (1964-1985) e por manter uma relação complicada entre os Três Poderes.
Agência Brasil: O Brasil tem alguma dificuldade com o seu passado?
Vladimir Safatle: Existe um esforço de vários setores da sociedade em apagar a ditadura, quase como se ela não tivesse existido. Há leituras que tentam reduzir o período à vigência do AI-5 [Ato Institucional nº 5], de 1968 a 1979. E o resto seria uma espécie de democracia imperfeita, que não se poderia tecnicamente chamar de ditadura. Ou seja, existe mesmo no Brasil um esforço muito diferente de outros países da América Latina, que passaram por situações semelhantes, que era a confrontação com os crimes do passado. É a ideia de anular simplesmente o caráter criminoso de um certo passado da nossa história. Há quem diga que o Brasil não teve de fato uma ditadura clássica depois de 1964, mas sim uma "ditabranda" se comparada à da Argentina e a do Uruguai, por exemplo. Essa leitura é do mais clássico cinismo. É inadmissível para qualquer pessoa que respeite um pouco a história nacional. Afirmar que uma ditadura se conta pela quantidade de mortes que consegue empilhar numa montanha é desconhecer de uma maneira fundamental o que significa uma ditadura para a vida nacional. A princípio, a quantidade de mortes no Brasil é muito menor do que na Argentina. Mas é preciso notar como a ditadura brasileira se perpetuou. O Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram após o regime militar. Tortura-se mais hoje do que durante aquele regime. Isso demostra uma perenidade dos hábitos herdados da ditadura militar, que é muito mais nociva do que a simples contagem de mortes. Ag. B.: Qual o reflexo disso? Safatle: Significa um bloqueio fundamental do desenvolvimento social e político do país. Por outro lado, existe um dado relevante: a ditadura de certa maneira é uma exceção. Ela inaugurou um regime extremamente perverso que consiste em utilizar a aparência da legalidade para encobrir o mais claro arbítrio. Tudo era feito de forma a dar a aparência de legalidade. Quando o regime queria de fato assassinar alguém, suspender a lei, embaralhava a distinção entre estar dentro e fora da lei. Fazia isso sem o menor problema. Todos viviam sob um arbítrio implacável que minava e corroía completamente a ideia de legalidade. É um dos defeitos mais perversos e nocivos que uma ditadura pode ter. Isso, de uma maneira muito peculiar, continua. Então, a semente da violência atual do aparato policial foi plantada na ditadura? Não é difícil fazer essa associação, pois nunca houve uma depuração da estrutura policial brasileira. É muito fácil encontrar delegados que tiveram participação ativa na ditadura militar, ainda em atividade. No estado de São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin indicou um delegado que era alguém que fez parte do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna]. Teve toda uma discussão, mas esse debate não serviu sequer para ele voltasse atrás na nomeação. Se você levar em conta esse tipo de perenidade dos próprios agentes que atuaram no processo repressivo, não é difícil entender por que as práticas não mudaram. Estamos atrás de outros países, como Argentina e África do Sul, na investigação e julgamento de crimes cometidos pelo Estado? Estamos aquém de todos os países da América Latina. Nosso problema não é só não ter constituído uma comissão de verdade e justiça, mas é o de que ninguém do regime militar foi preso. Não há nenhum processo. O único processo aceito foi o da família Teles contra o coronel [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que foi uma declaração simplesmente de crime. Ninguém está pedindo um julgamento e sim uma declaração de que houve um crime. Legalmente, sequer existiram casos de tortura, já que não há nenhum processo legal. E levando em conta o fato de que o Brasil tinha assinado na mesma época tratados internacionais, condenando a tortura, nossa situação é uma aberração não só em relação à Argentina e à África do Sul, mas em relação ao Chile, ao Paraguai e ao Uruguai. Que expectativa o senhor tem quanto ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), para apurar crimes da ditadura? Uma atitude como essa é a mais louvável que poderia ter acontecido e merece ser defendida custe o que custar. O trabalho feito pelo ministro Paulo Vannuchi [secretário dos Direitos Humanos, da Presidência da República] e pela Comissão de Direitos Humanos é da mais alta relevância nacional. Acho que é muito difícil falar o que vai acontecer. A gente está entrando numa dimensão onde a memória nacional, a política atual e o destino do nosso futuro se entrelaçam. Existe uma frase no livro 1984, de George Orwell, que diz: “Quem controla o passado controla o futuro”. Mexer com esse tipo de coisa é algo que não diz respeito só à maneira que o dever de memória vai ser institucionalizado na vida nacional, mas à maneira com que o nosso futuro vai ser decidido. Mas, antes mesmo da criação da Comissão da Verdade, os debates já estão muito acalorados. O melhor que poderia acontecer é que se acirrassem de fato as posições e cada um dissesse muito claramente de que lado está. O país está dividido desde o início. Veja a questão da Lei da Anistia. O programa do governo [PNDH 3] em momento algum sugeriu uma forma de revisão ou suspensão da lei. O que ele sugeriu foi que se abrisse espaço para a discussão sobre a interpretação da letra da lei. Porque a anistia não vale para crimes de sequestro e atentados pessoais. A confusão que se criou demonstra muito claramente como a sociedade brasileira precisa de um debate dessa natureza, o mais rápido possível. Não dá para suportar que certos segmentos da sociedade chamem pessoas foram ligadas a esses tipos de atividades de “terroristas”. É sempre bom lembrar que no interior da noção liberal de democracia, desde John Locke [filósofo inglês do século 17], se aceita que o cidadão tem um direito a se contrapor de forma violenta contra um Estado ilegal. Alguns estados nos Estados Unidos também preveem essa situação. O termo “terrorista” é usado por historiadores que não têm qualquer ligação com os militares e até mesmo por pessoas que participaram da luta armada. Usar a palavra é errado? Completamente. É inaceitável esse uso que visa a criminalizar profundamente esse tipo de atividade que aconteceu na época. A ditadura foi um estado ilegal que se impôs através da institucionalização de uma situação ilegal. Foi resultado de um golpe que suspendeu eleições, criou eleições de fachada com múltiplos casuísmos. Podemos contar as vezes que o Congresso Nacional foi fechado porque o Executivo não admitia certas leis. O fato de ter aparência de democracia porque tinham algumas eleições pontuais, marcadas por milhões de casuísmos, não significa nada. No Leste Europeu também existiam eleições que eram marcadas desta mesma maneira.Um Estado que entra numa posição ilegal não tem direito, em hipótese alguma, de criminalizar aqueles que lutam contra a ilegalidade. Por trás dessa discussão, existe a tentativa de desqualificar a distinção clara entre direito e Justiça. Em certas situações, as exigências de Justiça não encontram lugar nas estruturas do Direito tal como ele aparecia na ditadura militar. Agora, existem certos setores que tentam aproximar o que aconteceu no Brasil do que houve na mesma época na Europa, com os grupos armados na Itália e na Alemanha. As situações são totalmente diferentes porque nenhum desses países era um Estado ilegal. E não há casos no Brasil de atentado contra a população civil. Todos os alvos foram ligados ao governo. Os assaltos a banco não seriam atentados às pessoas comuns que estavam nas agências? Todos os que participaram a atentados a bancos não foram contemplados pela Lei da Anistia e continuaram presos depois de 1979. Pagaram pelo crime. Isso não pode ser utilizado para bloquear a discussão. Dentro de um processo de legalidade, de maneira alguma o Estado pode tentar esconder aquilo que foi feito por cidadãos contra eles, como se fossem todos crimes ordinários. Se um assalto a banco é um crime ordinário, eu diria que a luta armada, a luta contra o aparato do Estado ilegal, não é. Isso faz parte da nossa noção liberal de democracia. Que democracia é a nossa que tem dificuldades de olhar o passado? É uma democracia imperfeita ou, se quisermos, uma semidemocracia. O Brasil não pode ser considerado um país de democracia plena. Existe uma certa teoria política que consiste em pensar de maneira binária, como se existissem só duas categorias: ditadura ou democracia. É uma análise incorreta. Seria necessário acrescentar pelo menos uma terceira categoria: as democracias imperfeitas. O que isso significa? Consiste em dizer basicamente o seguinte: não há uma situação totalitária de estrutura, mas há bloqueios no processo de aperfeiçoamento democrático, bloqueios brutais e muito visíveis. Existe uma versão relativamente difundida de que a Nova República é um período de consolidação da democracia brasileira. Diria que não é verdade. É um período muito evidente que demonstra como a democracia brasileira repete os seus impasses a todo momento. O primeiro presidente eleito recebeu um impeachment, o segundo subornou o Congresso para poder passar um emenda de reeleição e seu procurador-geral da República era conhecido por todos como “engavetador-geral”, que levou a uma série de casos de corrupção que nunca foram relativizados. O terceiro presidente eleito muito provavelmente continuou processos de negociação com o Legislativo mais ou menos nas mesmas bases. Chamar isso de consolidação da estrutura democrática nacional é um absurdo. Os poderes mantêm uma relação problemática, uma interferência do poder econômico privado nas decisões de governo. Um sistema de financiamento de campanhas eleitorais que todos sabem que é totalmente ilegal e é utilizado por todos os partidos sem exceção.

filoparanavai 2011

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