sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

LEITURA DE TEXTO FILOSÓFICO: Filosofia, retórica e democracia (SOFISTAS)



Filosofia, retórica e democracia 
(Texto no Português de Portugal)
Álvaro Nunes 

A investigação racional que está na origem da filosofia e da ciência actuais começou com Tales de Mileto no século VI a. C. Mas tanto ele como a maior parte dos filósofos pré-socráticos que se lhe seguiram, quer fossem próximos, como os seus conterrâneos Anaximandro e Anaxímenes, ou geográfica e temporalmente mais distantes, como Heraclito de Éfeso, Anaxágoras de Clazómenas ou Demócrito de Abdera, faziam da realidade física o seu objecto principal de estudo. 

No entanto, ao mesmo tempo que estes pensadores desenvolviam as suas teorias em que a água, o ar, o fogo ou os átomos são a realidade última que explica os fenómenos tal como são percebidos pelos sentidos, o alargamento do contacto com outros povos por intermédio de viagens comerciais, a fundação de colónias e as transformações económicas, sociais e políticas por que o mundo grego passava (em particular, o nascimento da democracia em Atenas) chamaram a atenção para problemas como os seguintes: 

O estatuto, natural ou convencional, das normas e dos valores; A existência e natureza dos deuses; A legitimidade da distinção entre gregos e bárbaros, escravos e homens livres; A natureza da aretê (virtude política) e do seu ensino. No seu conjunto, estes problemas constituem uma viragem para problemas sobre o homem e embora estas questões, em larga medida de natureza moral e política, sejam ou impliquem, directa ou indirectamente, questões de carácter filosófico, foram os sofistas, e não os filósofos, os primeiros a dar-lhes a atenção que mereciam. 

Os sofistas
Os sofistas eram professores profissionais itinerantes que instruíam os jovens e faziam conferências em que mostravam a sua eloquência a troco de dinheiro. O seu surgimento está relacionado com o sistema político democrático que, depois de Atenas, passou a vigorar em muitas cidades-estado gregas. Enquanto a monarquia ou a oligarquia foi o sistema político preferido, o poder político estava nas mão de um pequeno número de indivíduos e a aprendizagem do seu exercício fazia-se sobretudo pelo convívio com os mais velhos. Mas, a partir do momento em que a democracia se tornou a forma de governo dominante na Grécia, esta educação tradicional deixou de ser eficaz. Como grande parte das decisões eram agora tomadas em assembleias de cidadãos, o domínio da palavra, a capacidade de persuasão, passou a ser decisiva para o acesso e o exercício do poder político. Na ausência de universidades e de um ensino para jovens adultos, foram os sofistas que forneceram a educação de agora em diante necessária para ser cidadão, isto é, para participar activamente na vida política da cidade. 

Não é, portanto, de admirar que os sofistas atraíssem os jovens gregos que aspiravam à vida política e possuíam as elevadas quantias que, segundo Platão ou Xenofonte, por exemplo, exigiam como honorários. As suas lições tanto eram dadas em círculos restritos de discípulos como em seminários ou em conferências públicas ou exibições, cujo fim era sobretudo dar mostras de saber e atrair alunos. Estas exibições tanto podiam consistir em convidar a audiência a pôr questões, como em declamações feitas com base em textos escritos, frequentemente sobre temas da mitologia. 

Conhecemos o nome de cerca de trinta sofistas, embora tenham sido certamente muitos mais. Os mais importantes foram, tanto quanto sabemos, Protágoras, Górgias, Pródico e Hípias. 

Principais sofistas
Protágoras
Protágoras (c. 490–c. 420 a. C.) era originário da cidade de Abdera e foi talvez o mais famoso dos sofistas. Foi o primeiro a chamar-se a si próprio sofista e a ser pago pelas suas lições. As suas obras principais, das quais sobreviveram apenas alguns fragmentos, tinham por título Sobre os Deuses e A Verdade. Visitou Atenas com frequência e tornou-se amigo do seu líder, Péricles. De acordo com alguns relatos, morreu com 62 anos num naufrágio ao deixar Atenas, depois de ter sido julgado e considerado culpado de impiedade.

Protágoras tinha uma posição agnóstica acerca dos deuses. Dizia ele:

Sobre os deuses, nada sei, nem sei se existem, nem se não existem, nem qual a sua forma. Efectivamente, numerosos são os obstáculos para o sabermos: o seu carácter obscuro e o facto de a vida do homem ser curta. (Fr. B 4)

No entanto, a sua afirmação mais famosa é:

O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são. (Fr. R 1)

Protágoras pretende afirmar desta forma que não há verdades objectivas nem qualquer critério absoluto que permita determinar o que é verdade. O único critério é o homem: o mundo é para cada pessoa aquilo que aparece a essa pessoa. Por exemplo, um bolo que aparece a uma pessoa como doce e a outra como amargo é doce para a pessoa a que sabe a doce e amargo para a pessoa a que sabe a amargo. E é tudo. Esta posição de Protágoras é ao mesmo tempo céptica e relativista1. É céptica porque recusa a possibilidade de um conhecimento objectivo e é relativista porque considera que o conhecimento é relativo a cada sujeito.

Protágoras defendia também que a respeito de tudo há dois discursos opostos e que é possível apresentar razões que se contrapõem e anulam mutuamente. Dizia ensinar a aretê política, isto é, a 

Boa gestão dos assuntos particulares — de modo a administrar com competência a própria casa — e dos assuntos da cidade — de modo a fazê-lo o melhor possível quer por acções quer por palavras. (Platão, Protágoras, 318 e–319 a)

Ensinava também aos jovens a capacidade de tornar o argumento mais fraco no mais forte. Este ensino, que outros sofistas também ministraram, justifica o sucesso que tiveram junto dos jovens que queriam dedicar-se à vida pública.

Górgias
Górgias (c. 485-c. 380 a. C.) nasceu na Sicília, na cidade de Leontinos, e viajou por toda a Grécia. Foi pela primeira vez a Atenas em 427 a. C. como embaixador da sua cidade natal e impressionou de tal modo os atenienses com a sua retórica que estes criaram para referir a forma de falar à maneira de Górgias o verbo gorgianizar. Dos seus escritos chegaram até nós vários fragmentos e duas obras completas: O Elogio de Helena, no qual procura provar a inocência de Helena de Tróia; e a Defesa de Palamedes, onde procura mostrar que é impossível condenar Palamedes por traição. Morreu na Tessália com a avançada idade de 105 anos.

O pensamento de Górgias pode ser resumido em três proposições que, embora de forma diferente, expressam o mesmo cepticismo e relativismo que já se encontra em Protágoras:

Nada existe; Se alguma coisa existe, não pode ser conhecida; Se alguma coisa existe e pode ser conhecida, não pode ser ensinada. Ao contrário de Protágoras, Górgias não afirmava ensinar a aretê, mas sim a arte que permite ser um orador eloquente, a retórica. Como a verdade não existe (ou se existe não podemos conhecê-la), os oradores que são capazes de mudar a opinião das pessoas têm um enorme poder.

Pródico
Pródico (século V a. C.) nasceu na ilha de Céos. Ignora-se a data exacta do seu nascimento, embora a conjectura mais aceite seja a de que nasceu por volta de 470–460 a. C. Foi um orador eloquente, tendo sido, por isso, enviado várias vezes pela sua cidade como embaixador a Atenas, onde deu lições e fez conferências com sucesso.

A técnica que usava na elaboração dos discursos baseava-se na sinonímia, isto é, no uso de sinónimos cujos significados eram cuidadosamente distinguidos. Tudo o que sabemos do seu pensamento é o conteúdo de uma lição sobre a “Escolha de Hércules”, que põe a opção entre os géneros de vida da virtude e do vício, e também que pensava que os homens faziam das coisas úteis deuses.

Hípias
Hípas era originário da cidade de Élis e, tal como no caso de Pródico, ignora-se a data exacta do seu nascimento, que deverá andar por volta de 430 a. C. Hípias foi ao mesmo tempo mestre e homem político. O seu talento de orador, como no caso de outros sofistas, levou-o a ser escolhido como embaixador e foi nessa qualidade que visitou várias cidades da Grécia. Escreveu bastante, mas desses escritos (que incluíam discursos de circunstância, obras eruditas e obras poéticas) chegaram até nós apenas uns quantos fragmentos. Sabe-se também que foi casado e teve três filhos.

Hípias é conhecido pelo seu saber enciclopédico e por ter desenvolvido e ensinado a mnemotécnica, um processo que permite memorizar discursos longos e complexos. Incluía no seu ensino, ao contrário de, por exemplo, Protágoras e Górgias, a matemática e as ciências da natureza. Como outros sofistas, distinguiu natureza e nomos, atribuindo à primeira o papel de norma moral universal que une os homens e rejeitando a segunda porque introduz discriminações sem sentido entre os homens, como as que dividem os homens de cidades diferentes ou dentro da mesma cidade. Parece ter sido, por isso, o pai do cosmopolitismo.

Doutrinas dos sofistas
Como professores, os sofistas competiam entre si por alunos, mas, apesar disso, partilhavam algumas características que permitem falar num movimento sofístico e que têm levado alguns especialistas a comparar este período da cultura grega antiga com o Iluminismo europeu dos séculos XVII e XVIII. Eis algumas dessas características:

Ensinavam a retórica, cujo domínio era essencial a quem quisesse fazer carreira política;

Ensinavam, com excepção de Górgias, a aretê política (virtude política);

Interessavam-se pela antropologia, pela evolução do homem, da sociedade e da civilização;

Interessavam-se pelas relações entre as leis e os costumes (nomos) e a natureza (physis).

Pretendiam ser capazes de dissertar sobre todos os temas e de responder a qualquer pergunta que lhes fizessem;

Recusavam a existência de uma realidade permanente que subjaz e justifica as aparências e adoptavam um ponto de vista fenomenista, relativista e subjectivista.

Tinham uma perspectiva empirista e céptica quanto à origem e possibilidade de conhecimento, com base na imperfeição e falibilidade das nossas faculdades e na inexistência de uma realidade estável que pudesse ser objecto de conhecimento.

Destes aspectos que os sofistas, em maior ou menor grau, partilhavam há dois para os quais é necessário chamar a atenção devido às implicações que têm. São eles o facto de todos os sofistas ensinarem a retórica e de todos partilharem um ponto de vista céptico, de acordo com o qual o conhecimento é relativo ao sujeito. Estas duas coisas estão ligadas, uma vez que a segunda fornece a justificação para a primeira: se a verdade é relativa e particular (isto é, se a verdade muda, como vimos atrás, consoante o homem que percebe o objecto), e não absoluta e universal (isto é, sempre a mesma para todas as pessoas), todo o conhecimento se reduz às crenças e às opiniões de que os homens podem ser persuadidos. Para os sofistas, é esse o papel e a vantagem da retórica.

Esta relação próxima entre cepticismo e retórica, juntamente com as pretensões pedagógicas dos sofistas a ensinarem a virtude política, foram objecto da forte oposição de filósofos como Sócrates e Platão, que defendiam que há uma realidade objectiva e que há verdades objectivas e universais, que podem ser descobertas por intermédio, não da retórica, mas da dialéctica. Platão dedicou mesmo algumas obras à discussão das ideias dos principais sofistas. É o caso dos diálogos Protágoras, Górgias e Hípias Maior, em que Sócrates, a personagem que representa a posição de Platão, analisa e procura refutar as ideias dos sofistas.

Álvaro Nunes
Publicado originalmente em:

Bibliografia
Aires Almeida (org.), Dicionário Escolar de Filosofia (Lisboa: Plátano, 2003).
Gilbert Romeyer-Dherbey, Os Sofistas (Lisboa: Edições 70, 1986).
Górgias, Testemunhos e Fragmentos (Lisboa: Edições Colibri, 1993)
Platão, Fedro (Lisboa: Edições 70, 1997)
Platão, Górgias (Lisboa: Edições 70, 1997).
Platão, Hípias Maior (Lisboa: Edições 70, 2000)
Platão, Protágoras (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999)
Sexto Empírico, “Górgias acerca do Não-ser”
Sexto Empírico, “Protágoras de Abdera”

Nota
Hoje chamaríamos subjetivista a esta posição, e não relativista. ↩︎

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