domingo, 28 de fevereiro de 2010

Obra FEDÃO_ Platão


Fédon (ou Fedão) o título de uma obra filosófica escrita por Platão que, através de diálogos, relata os últimos ensinamentos do filósofo Sócrates, antes de tomar a cicuta (pois fora condenado à morte pelo Estado). 

Na obra, Equécrates ao encontrar Fédon pergunta a este quais foram as últimas palavras e ensinamentos do mestre Sócrates antes de morrer e pede que os relate, com a maior exatidão possível. 

Sócrates fala sobre a morte, a ideia, o destino da alma, dentre outros assuntos. Na ocasião de sua morte, segundo Fédon, estavam Apolodoro, Critobulo e seu pai, Hermógenes, Epígenes, Ésquines, Antístenes, Ctesipo de Peânia, Menexeno, Símias o Tebano, Cebes, Fedondes, Euclides e Terpsião, além de outros. 

Segundo Fédon, Platão se encontrava doente. O mais importante a se lembrar, antes de iniciar a leitura do diálogo, é que este é um diálogo que não pertence à "fase socrática" de Platão, (divisão utilizada por alguns Filósofos). 

Sendo assim, ele estaria apenas usando a imagem do mestre para "divulgar" seu próprio projeto filosófico. Isto pode ser confirmado em determinadas passagens, como por exemplo, naquela onde Cebes comenta: "(...) Como o que costumas dizer amiúde: lembrar nada mais é que recordar." Este trecho mostra claramente a ideia de Platão acerca do mundo das idéias, sua máxima teoria. Platão recebeu uma influência muito forte da religião Órfica, que cria na alma e reencarnação. 

O diálogo Fédon é uma máxima desta influência, onde Platão faz o primeiro postulado acerca da alma.
FEDÃO 

I – Estiveste tu mesmo, Fedão, junto de Sócrates no dia em que ele tomou veneno na
prisão, ou ouviste de alguém?


Fedão – Não, eu mesmo, Equécrates.


Equécrates – Então, que disse o homem antes de morrer? E como foi a sua morte?Gostaria de saber tudo o que se passou. Recentemente, nenhum cidadão de Fliunte tem ido a Atenas, e há muito não nos vêm de lá forasteiros capazes de dar-nos informações seguras, salvo dizerem que morreu depois de tomar o veneno. Quanto ao mais, nada informam de particular.


Fedão – E também não ouviste contar como foi o julgamento?
Equécrates – Ouvimos, sim; alguém nos falou nisso. Surpreendeu- nos, justamente,
ter sido bem antes o julgamento e ele só vir a morrer muito depois. Que aconteceu, Fedão?
Fedão – Foi tudo obra do acaso, Equécrates, o que se passou com ele. Precisamente
na véspera do julgamento coroaram a popa do navio que os Atenienses enviam a Delo.
Equécrates – Que é isso?
Fedão – Segundo os Atenienses, é o navio em que outrora Teseu levou para Creta as
duas septenas de jovens, moços e moças, que ele salvou, salvando-se também. Nessa
ocasião, segundo contam, prometeram a Apolo enviar anualmente uma deputação a Delo,
no caso de se salvarem, e até hoje todos os anos vão em romaria à divindade. Desde o início
dos preparativos da viagem, determina a lei que se proceda à purificação do burgo, não
sendo permitido executar ninguém por crime público antes de chegar a Delo o navio e
retornar de lá. Por vezes esse prazo fica muito dilatado, quando os ventos são adversos. O
início da peregrinação é contado a partir do momento em que o sacerdote de Apolo coroa a
popa do navio, o que se deu, conforme disse, na véspera do julgamento. Esse o motivo de
ter estado Sócrates tanto tempo na prisão, desde o julgamento até à morte.
II – Equécrates – E as condições em que morreu, Fedão? Quais foram suas palavras?
Como se houve em tudo? Quais dos seus familiares se encontravam ao seu lado? Ou as
autoridades não permitiram que entrassem, vindo ele a morrer privado de assistência dos
amigos?
Fedão – De forma alguma; vários estiveram presentes; em grande número, mesmo.
Equécrates – Então, procura contar-nos com a maior exatidão possível como tudo se
passou, no caso de dispores de folga.
Fedão – Disponho, sim, e vou tentar expor-vos o que se deu. Para mim, nada é tão
agradável como recordar-me de Sócrates, ou seja quando falo nele, ou quando ouço alguém
falar a seu respeito.
Equécrates – Pois podes ter a certeza, Fedão, de que teus ouvintes estão nessas
mesmas condições. Esforça-te, portanto, para contar o caso com todas as minúcias.
Fedão – Era por demais estranho o que eu sentia junto dele. Não podia lastimá-lo,
como o faria perto de um ente querido no transe derradeiro. O homem me parecia
felicíssimo, Equécrates, tanto nos gestos como nas palavras, reflexo exato da intrepidez e
da nobreza com que se despedia da vida. Minha impressão naquele instante foi que sua
passagem para o Hades não se dava sem disposição divina, e que, uma vez lá chegando,
sentir-se-ia tão venturoso com os que mais o foram. Por isso mesmo, não me dominou
nenhum sentimento de piedade, o que seria natural na presença de um moribundo. Também
não me sentia alegre, como costumava ficar em nossa práticas sobre filosofia. Sim, porque
toda nossa conversa girou em torno de temas filosóficos. Era um estado difícil de definir,
misto insólito de alegria e tristeza, por lembrar-me de que ele iria morrer dentro de pouco.
As mais pessoas presentes se encontravam em condições quase idênticas, umas rindo,
outras chorando, principalmente Apolodoro. Conheces o homem e sabes como ele é.
Equécrates – Sem dúvida.
Fedão – Pois desse jeito se comportou o tempo todo. Eu também, fiquei muito
abalado, a mesma coisa passando-se com os outros.
Equécrates – E quem se achava lá, Fedão?
Fedão – Além do mencionado Apolodoro, seus conterrâneos Critobulo e o pai,
Hermógenes, Epígenes, Ésquines e Antístenes. Ctesipo de Peânia também esteve presente,
Menéxeno e mais alguns da mesma região. Se não me engano, Platão se achava doente.
Equécrates – E havia também estrangeiros?
Fedão – Sim, os Tebanos Símias, Cebete e Fedondes; e de Mégara, Euclides e
Térpsio.
Equécrates – Nesse caso, Aristipo e Cleômbroto também estiveram com ele?
Fedão – Não; falaram que se encontravam em Egina.
Equécrates – Havia mais alguém?
Fedão – Creio que eram só esses.
Equécrates – E depois? Quais foram os discursos a que te referiste?
III – Fedão – Vou esforçar-me para contar tudo do começo. Tal como na véspera,
todos os dias visitávamos Sócrates, e desde a manhãzinha íamos encontrar-nos no tribunal
em que se deu o julgamento. Fica perto da cadeia. Ali esperávamos conversando até que a
cadeia abrisse, pois não costumam abri-la muito cedo. Porém logo que isso se dava,
corríamos para junto de Sócrates e quase sempre passávamos com ele o dia todo. Nessa
manhã reunimo-nos mais cedo, porque na tarde anterior, ao nos retirarmos da prisão,
soubemos que o navio chegara de Delo. Por isso, combinamos encontrar-nos o mais cedo
possível no lugar habitual. Ao chegarmos, o porteiro que costumava receber-nos veio ao
nosso encontro para dizer que esperássemos fora e não entrássemos sem que ele nos
avisasse. Neste momento, nos disse, os Onze estão tirando os ferros de Sócrates e lhe
comunicam que hoje ele terá de morrer. Depois de algum tempo, voltou para dizer que
entrássemos. Ao penetrarmos no recinto, encontramos Sócrates, que acabava de ser aliviado
dos ferros, e Xantipa – conhece-la decerto – com o filho pequeno, sentada junto do marido.
Ao ver-nos, começou Xantipa a lastimar-se e clamar como de hábito nas mulheres,
dizendo: Pela última vez, Sócrates, teus amigos conversarão contigo, e tu com eles.
Virando-se para Critão, Sócrates lhe disse: Critão, leva-a para casa. A isso, alguns dos
homens de Critão a retiraram, não cessando ela de gritar e debater-se. Sócrates, de seu lado,
sentado no catre, dobrou a perna sobre a coxa e começou a friccioná-la duro com a mão, ao
mesmo tempo que dizia: Como é extraordinário, senhores, o que os homens denominam
prazer, e como se associa admiravelmente com o sofrimento, que passa, aliás, por ser o seu
contrário. Não gostam de ficar juntos no homem; mal alguém persegue e alcança um deles,
de regra é obrigado a apanhar o outro, como se ambos, com serem dois, estivessem ligados
pela cabeça. Quer parecer-me, continuou, que se Esopo houvesse feito essa observação, não
deixaria de compor uma fábula: Resolvendo Zeus pôr termo as suas dissensões contínuas, e
não o conseguindo, uniu-os pela extremidade. Por isso, sempre que alguém alcança um
deles, o outro lhe vem no rastro. Meu caso é parecido: após o incômodo da perna causada
pelos ferros, segue-se-lhe o prazer.
IV – Nesta altura, falou Cebete: Por Zeus, Sócrates, disse, foi bom que mo
lembrasses. Diversas pessoas já me têm falado a respeito dos poemas que escreveste,
aproveitando as fábulas de Esopo, e do hino em louvor de Apolo. Anteontem mesmo, o
poeta Eveno me interpelou sobre a razão de compores verso desde que te encontras aqui, o
que antes nunca fizeras. Se te importa deixar-me em condições de responder a Eveno
quando ele voltar a falar-me a esse respeito – e tenho certeza de que o fará – instrui-me
sobre o que deverei dizer-lhe.
Então dize-lhe a verdade, Cebete, replicou: que não me movia o desejo de fazer-lhe
concorrência nem aos seus poemas, quando compus os meus, o que, aliás, tentativa para
rastrear o significado de uns sonhos e cumprir, assim, minha obrigação, no sentido de saber
se era essa a modalidade de música que me recomendavam com insistência. É o seguinte:
Muitas e muitas vezes em minha vida pregressa, sob formas diferentes me apareceu um
sonho, porém dizendo sempre a mesma coisa: Sócrates, me falava, compõe música e a
executa. Até agora eu estava convencido de ser justamente o que eu fizera a vida toda o que
o sonho me insinuava e concitava a fazer, à maneira de como costumamos estimular os
corredores: desse mesmo modo, o sonho me exortava a prosseguir em minha prática
habitual, a compor música, por ser a Filosofia a música mais nobre e a ela eu dedicar-me.
Agora, porém, depois do julgamento e por haver o festival do deus adiado minha morte,
perguntei a mim mesmo se a música que com tanta insistência o sonho me mandava
compor não seria essa espécie popular, tendo concluído que o que importava não era
desobedecer ao sonho, porém fazer o que ele me ordenava. Seria mais seguro cumprir essa
obrigação antes de partir, e compor poemas em obediência ao sonho. Assim, comecei por
escrever um hino em louvor à divindade cuja festa então se celebrava. Depois da divindade,
considerando que quem quiser ser poeta de verdade terá de compor mitos e não palavras,
por saber-me incapaz de criar no domínio da mitologia, recorri às fabulas de Esopo que eu
sabia de cor e tinha mais à mão, havendo versificado as que me ocorreram primeiro.
V – Isso, Cebete, é o que deverás dizer a Eveno. Apresenta-lhe, também, saudações
de minha parte, acrescentando que, se ele for sábio, deverá seguir-me quanto antes. Parto,
ao que parece, hoje mesmo; assim os determinam os Atenienses.
Símias exclamou: Que conselho, Sócrates, mandas dar a Eveno! Tenho estado
bastantes vezes com o homem, e por tudo o que sei dele, não terá grande desejo de aceitarte
a indicação.
Como assim? Perguntou; Eveno não é filósofo?
Penso que é, retrucou Símias.
Nesse caso, terá de aceitá-la, tanto Eveno como quem quer que se aplique dignamente
a esse estudo. O que é preciso é não empregar violência contra si próprio. Dizem que isso
não é permitido.
Assim falando, sentou-se e apoiou no chão os pés, permanecendo nessa posição, daí
por diante, durante todo o tempo da conversa.
Nessa altura Cebete o interpelou: Por que disseste, Sócrates, que não é permitido a
ninguém empregar violência contra si próprio, se, ao mesmo tempo, afirmas que o filósofo
deseja ir após de quem morre?
Como, Cebete, nunca ouvistes nada a esse respeito, tu e Símias, quando convivestes
com Filolau?
Ouvi, Sócrates, porém muito pela rama.
Sobre isso eu também só posso falar de outiva; porém nada me impede de comunicarvos
o que sei. Talvez, mesmo, seja a quem se encontra no ponto de imigrar para o outro
mundo que compete investigar acerca dessa viagem e dizer como será preciso imaginá-la.
Que melhor coisa se poderá fazer para passar o tempo até sol baixar?
VI – Qual o motivo, então, Sócrates, de dizerem que a ninguém é permitido suicidarse?
De fato, sobre o que me perguntaste, ouvi Filolau afirmar, quando esteve entre nós, e
também outras pessoas, que não devemos fazer isso. Porém nunca ouvi de ninguém
maiores particularidades.
Então, o que importa é não desanimares, disse; é possível que ainda venhas a ouvilas.
Talvez te pareça estranho que entre todos os casos seja este o único simples e que não
comporte como os demais, decisões arbitrárias, segundo as circunstâncias, a saber: que é
melhor estar morto do que vivo. E havendo pessoas para quem a morte, de fato, é
preferível, não saberás dar a razão de ser vedado aos homens procurarem para si mesmos
semelhante benefício, mas precisarem esperar por benfeitor estranho.
Itto Zeus, disses Cebete em seu dialeto, esboçando um sorriso: Deus o saberá.
Aparentemente, continuou Sócrates, isso carece de lógica; mas o fato é que tem a sua
razão de ser. Aquilo dos mistérios, de que nós, homens, nos encontramos numa espécie de
cárcere que nos é vedado abrir para escapar, afigura-me de peso e anda fácil de entender.
Uma coisa, pelo menos, Cebete, me parece bem enunciada: que os deuses são nossos
guardiães, e nós, homens, propriedade deles. Aceitas esse ponto?
Perfeitamente, respondeu Cebete.
Tu também, continuou, na hipótese de algum dos teus escravos pôr termo à vida, sem
que lhes houvesse dado a entender que estavas de acordo em que se matasse, não te
aborrecerias com ele, e se fosse possível, não o punirias?
Sem dúvida, respondeu.
Por conseguinte, não acho absurdo ninguém poder matar-se sem que a divindade o
coloque nessa contingência, como é o nosso caso agora.
VII – Essa parte, observou Cebete, também me parece razoável. Porém o que
afirmaste antes, sobre a disposição do filósofo para morrer, é um verdadeiro contra-senso,
Sócrates, se estiver certo o que dissemos há pouco, que Deus cuida de nós e que somos
propriedades dele. Que os indivíduos mais sábios se insurjam contra semelhante tutela e
procurem evitá-la, quando a exercem, precisamente, os deuses, os melhores dirigentes, é o
que não chego a compreender. Pois ninguém ousará dizer que saberá cuidar melhor de si
mesmo, uma vez em liberdade. Um indivíduo insensato poderia raciocinar dessa maneira,
por achar bom fugir do amo, sem considerar que não se deve fugir do bem, mas ficar junto
dele o maior tempo possível. Foge por carecer de senso. O indivíduo inteligente, pelo
contrário, só deseja continuar junto de quem lhe seja superior. Por isso, Sócrates, o certo é,
precisamente, o oposto do que foi dito há pouco: aos sábios é que fica bem insurgir-se
contra a idéia da morte, e aos insensatos, exultar ante essa perspectiva.
Ao ouvi-lo assim falar, quis parecer-me que Sócrates se alegrava com a agudeza de
Cebete; depois, voltando-se para nosso lado, falou: Cebete anda sempre à cata de
argumentos, sem aceitar de pronto a opinião dos outros.
Ao que Símias observou: Porém quer parecer-me, Sócrates, que há bastante senso nas
palavras de Cebete. Não se compreende, de fato, que indivíduos verdadeiramente sábios
fujam de amos melhores do que eles e se alegrem com essa liberdade. A meu ver, o
argumento de Cebete vai dirigido contra ti, por aceitares à ligeira a idéia de deixar-nos, e
também aos amos cuja superioridade és o primeiro a proclamar.
Tens razão, observou. Pelo que vejo, sois de parecer que preciso defender-me dessa
acusação, como o fiz no tribunal.
Perfeitamente, respondeu Símias.
VIII – Pois que seja, disse. Vejamos se diante de vós outros minha defesa saíra mais
convincente do que a feita na frente dos juízes. O fato, Símias e Cebete, prosseguiu, é que
se eu não acreditasse, primeiro, que vou para junto de outros deuses, sábios e bons, e,
depois, para o lugar de homens falecidos muito melhores do que os daqui, cometeria uma
grande erro por não me insurgir contra a morte. Porém podes fiar que espero juntar-me a
homens de bem. Sobre esse ponto não me manifesto com muita segurança; mas no que
entende com minha transferência para junto de deuses que são excelentes amos: se há o que
eu defenda com convicção é precisamente isso. Esse motivo de não me revoltar a idéia da
morte. Pelo contrário, tenho esperança de que alguma coisa há para os mortos, e, de acordo
com antiga tradição, muito melhor para os bons do que para os maus.
Como assim, Sócrates, perguntou Símias; com semelhante convicção queres deixarnos
sem no-la dar a conhecer? Eu, pelo menos, acho que se trata de algo de grande
relevância para nós todos. Ao mesmo tempo, com isso farás a tu a defesa, se com o que
disseres conseguires convencer-nos.
É o que vou tentar, continuou; porém primeiro vejamos o que o nosso Critão há tanto
tempo quer dizer-me.
Trata-se apenas do seguinte, Sócrates, falou Critão: é que há muito vem insistido
comigo a pessoa encarregada de dar-te o veneno, para avisar-te de que deves conversar o
menos possível. Conversa muito animada esquenta, é o que ele afirma, e isso prejudica a
ação da droga. Do contrário, já tem acontecido precisar tomar duas ou três doses quem se
comporta desse jeito.
É Sócrates: Manda-o passear! disse. E que prepare dose dupla, e até tripla, se for
preciso.
Eu já sabia mais ou menos o que irias responder, observou Critão; mas o homem não
me dava sossego.
Deixa-o, disse. E agora, juízes, pretendo expor-vos as razões de estar convencido de
que o indivíduo que se dedicou a vida inteira à Filosofia, terá de mostrar-se confiante na
hora da morte, pela esperança de vir a participar, depois de morto, dos mais valiosos bens.
Como poderá ser dessa maneira, Símias e Cebete, é o que tentarei explicar-vos.
IX – Embora os homens não o percebam, é possível que todos os que se dedicam
verdadeiramente à Filosofia, a nada mais aspirem do que a morrer e estarem mortos. Sendo
isso um fato, seria absurdo, não fazendo outra coisa o filósofo toda a vida, ao chegar esse
momento, insurgir-se contra o que ele mesmo pedira com tal empenho e em pós do que
sempre se afanara.
Símias, então, rindo, Por Zeus, Sócrates, interrompeu-o; fizeste-me rir, em que pese à
minha falta de disposição para isso. O que penso é que, se os homens te ouvissem discorrer
dessa maneira, achariam certo o que se diz dos filósofos – e nesse ponto contariam com a
aprovação de nossa gente – que em verdade eles vivem a morrer, sabendo perfeitamente
que outra coisa não merecem.
E só diriam a verdade, Símias, como exceção do que se refere a estarem cientes desse
ponto, pois, de fato, não sabem de que modo o verdadeiro filósofo deseja a morte, nem
como pode vir a alcançá-la. Porém deixemos essa gente de lado e perguntemos a nós
mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa?
Sem dúvida, respondeu Símias.
Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em
apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertarse
do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa?
Não; é isso, precisamente, respondeu.
Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo
ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja
próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e
beber?
De forma alguma, Sócrates, replicou Símias.
E como relação aos prazeres do amor?
A mesma coisa.
E os demais prazeres, que entendem com os cuidados do corpo? És de parecer que
lhes atribua algum valor? A posse de roupas vistosas, ou de calçados e toda a sorte de
ornamentos do corpo, que tal achas? Eles os aprecia ou os despreza no que não for de
estrita necessidade?
Eu, pelo menos, respondeu, sou de parecer que o verdadeiro filósofo os despreza.
Sendo assim, continuou, não achas que, de modo geral, as preocupações dessa pessoa,
não visam ao corpo, porém tendem, na medida do possível, a afastar-se dele para
aproximar-se da alma?
É também o que eu penso.
Nisto, por conseguinte, antes de mais nada, é que o filósofo se diferencia dos demais
homens: no empenho de retirar quanto possível a alma na companhia do corpo.
Evidentemente.
Essa é a razão, Símias, de, na opinião da maioria dos homens, não merecer viver o
indivíduo a quem nada disso é agradável e que não se importa com tais práticas, por acharse
muito mais perto da condição de morto e por não dar a menor importância aos prazeres
alcançados por intermédio do corpo.
Tens razão.
X – E como referência à aquisição do conhecimento? O corpo constitui ou não
constitui obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa? O que digo é o seguinte:
a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma verdade? Ou será certo o que os poetas
não se cansam de afirmar, que nada vemos nem ouvimos com exatidão? Ora, se esses dois
sentidos corpóreos não são nem exatos nem de confiança, que diremos dos demais, em tudo
inferiores aos primeiros? Não pensas desse modo?
Perfeitamente, respondeu.
Então, perguntou, quando é que a alma atinge a verdade? É fora de dúvida que, desde
o momento em que tenta investigar algo na companhia do corpo, vê se lograda por ele.
Tens razão.
E não é no pensamento – se tiver de ser de algum modo – que algo da realidade se lhe
patenteia?
Perfeitamente.
Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem a vista nem o
ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma,
dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele,
e esforça-se por apreender a verdade.
Certo.
E não é nesse estado que a alma do filósofo despreza o corpo e dele foge, trabalhando
por concentrar-se em si própria?
Evidentemente.
E com relação ao seguinte, Símias: afirmaremos ou não que o justo em si mesmo seja
alguma coisa?
Afirmaremos, sem dúvida, por Zeus.
E também o belo em si e o bem?
Também.
E algum dia já percebeste com os olhos qualquer deles?
Nunca, respondeu.
Ou por intermédio de outro sentido corpóreo? Refiro-me a tudo: grandeza, saúde,
força e o mais que for, numa palavra: à essência de tudo o que existe, conforme a natureza
de cada coisa. É por intermédio do corpo que percebemos o que neles há de verdadeiro, ou
tudo se passará da seguinte maneira: quem de nós ficar em melhores condições de pensar
em si mesmo o mais exatamente possível o que se propõe examinar, não é esse que estará
mais perto do conhecimento de cada coisa? Ou não?
Perfeitamente.
E não alcançará semelhante objetivo da maneira mais pura quem se aproximar de
cada coisa só com o pensamento, sem arrastar para a reflexão a vista ou qualquer outro
sentido, nem associá-los a seu raciocínio, porém valendo-se do pensamento puro, esforçarse
por apreender a realidade de cada coisa em sua maior pureza, apartado, quanto possível,
da vista e do ouvido, e, por assim dizer, de todo o corpo, por ser o corpo fator de
perturbação para a alma e impedi-la de alcançar a verdade e o pensamento, sempre que a
ele se associa? Não será, Símias, esse indivíduo, se houver alguém em tais condições, que
alcançara o conhecimento do Ser?
Tens toda a razão, Sócrates, respondeu Símias.
XI – Por tudo isso, continuou, é natural nascer no espírito dos filósofos autênticos
certa convicção que os leva a discorrer entre eles mais ou menos nos seguintes termos: Há
de haver para nós outros algum atalho direto, quando o raciocínio nos acompanha na
pesquisa; porque enquanto tivermos corpo e nossa alma se encontrar atolada em sua
corrupção, jamais poderemos alcançar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-lo
de uma vez por todas, é a verdade. Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta,
pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes, que são outros
empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez, imaginações de toda a
espécie e um sem número de banalidades, a tal ponto ele nos satura, que, de fato, como se
diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o conhecimento do quer que seja. Mais,
ainda: guerras, batalhas, dissensões, suscita-as exclusivamente o corpo com seus apetites.
Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que nos vemos
forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados a servi-lo. Se carecermos de
vagar para nos dedicarmos à Filosofia, a causa é tudo isso que enumeramos. O pior é que,
mal conseguimos alguma trégua e nos dispomos a refletir sobre determinado ponto, na
mesma hora o corpo intervém para perturbar-nos de mil modos, causando tumulto e
inquietude em nossa investigação, até deixar-nos inteiramente incapazes de perceber a
verdade. Por outro lado, ensina-nos a experiência que, se quisermos alcançar o
conhecimento puro de alguma coisa, teremos de separar-nos do corpo e considerar apenas
com a alma como as coisas são em si mesmas. Só nessas condições, ao que parece, é que
alcançaremos o que desejamos e do que nos declaramos amorosos, a sabedoria, isto é,
depois de mortos, conforme nosso argumento o indica, nunca enquanto vivermos. Ora, se
realmente, na companhia do corpo não é possível obter o conhecimento puro do que quer
que seja, de duas uma terá de ser: ou jamais conseguiremos adquirir esse conhecimento, ou
só o faremos depois de mortos, pois só então a alma se recolherá em si mesma, separada do
corpo, nunca antes disso. Ao que parece, enquanto vivermos, a única maneira de ficarmos
mais perto do pensamento, é abstermo-nos o mais possível da companhia do corpo e de
qualquer comunicação com ele, salvo e estritamente necessário, sem nos deixarmos saturar
de sua natureza sem permitir que nos macule, até que a divindade nos venha libertar. Puros,
assim, e livres da insanidade do corpo, com toda a probalidade nos uniremos a seres iguais
a nós e reconheceremos por nós mesmos o que for estreme de impurezas. É nisso,
provavelmente, que consiste a verdade. Não é permitido ao impuro entrar em contato com o
puro. – Eis aí, meu caro Símias, quero crer, o que necessariamente pensam entre si e
conversam uns com os outros os verdadeiros amantes da sabedoria. Não é esse, também, o
teu modo de pensar?
Perfeitamente, Sócrates.
XII – Por conseguinte, companheiro, continuou Sócrates, se tudo isso estiver certo, há
muita esperança de que somente no ponto em que me encontro, e mais em tempo algum, é
que alguém poderá alcançar o que durante a vida constitui nosso único objetivo. Por isso, a
viagem que me foi agora imposta deve ser iniciada com uma boa esperança, o que se dará
também com quantos tiverem certeza de achar-se com a mente preparada e, de algum
modo, pura.
Isso mesmo, observou Símias.
E purificação não vem a ser, precisamente, o que dissemos antes: separar do corpo,
quanto possível, a alma, e habituá-la a concentrar-se e a recolher-se a si mesma, a afastar-se
de todas as partes do corpo e a viver, agora e no futuro, isolada quanto possível e por si
mesma, e como que libertada dos grilhões do corpo?
É muito certo, respondeu.
E o que denominamos morte, não será a liberação da alma e seu apartamento do
corpo?
Sem dúvida, tornou a falar.
E essa separação, como dissemos, os que mais se esforçam por alcançá-la e os únicos
a consegui-la não são os que se dedicam verdadeiramente à Filosofia, e não consiste toda a
atividade dos filósofos na libertação da alma e na sua separação do corpo?
Exato.
Sendo assim, como disse no começo, não seria ridículo preparar-se alguém a vida
inteira para viver o mais perto possível da morte, e revoltar-se no instante em que ela
chega?
Ridículo, como não?
Logo, Símias, continuou, os que praticam verdadeiramente a Filosofia, de fato se
preparam para morrer, sendo eles, de todos os homens, os que menos temor revelam à idéia
da morte. Basta considerarmos o seguinte: se de todo o jeito eles desprezam o corpo e
desejam, acima de tudo, ficar sós com a alma, não seria o cúmulo do absurdo mostrar medo
e revoltar-se no instante em que isso acontecesse, em vez de partirem contentes para onde
esperam alcançar o que a vida inteira tanto amara – sim, pois eram justamente isso: amantes
da sabedoria – e ficar livres para sempre da companhia dos que os molestavam? Como!
Amores humanos, ante a perda de amigos, esposas e filhos, têm levado tanta gente a baixar
voluntariamente, ao Hades, movidos apenas da esperança de lá reverem o objeto de seus
anelos e de com eles conviverem; no entanto, quem ama de verdade a sabedoria, e mais:
está firmemente convencido de que em parte alguma poder encontrá-la a não ser no Hades,
haverá de insurgir-se contra a morte, em vez de partir contente para lá? Sim, é o que
teremos de admitir, meu caro, se se tratar de um verdadeiro amante da sabedoria. Pois este
há de estar firmemente convencido de que a não ser lá, em parte alguma poderá encontrar a
verdade em toda a sua pureza. Se as coisas se passam realmente como acabo de dizer, não
seria dar prova de insensatez temer a morte semelhante indivíduo?
Sem dúvida, por Zeus, foi a sua resposta.
XIII – Por consequência, continuou, ao vires um homem revoltar-se no instante de
morrer, não será isso prova suficiente de que não trata de um amante da sabedoria, porém
amante do corpo? Um indivíduo nessas condições, também será, possivelmente, amante do
dinheiro ou da fama, se não o for de ambos ao mesmo tempo.
É exatamente como dizes, respondeu.
E a virtude denominada coragem, Símias, prosseguiu, não assenta maravilhosamente
bem nos indivíduos com essa disposição?
Sem dúvida, respondeu.
E a temperança, o que todo o mundo chama temperança: não deixar-se dominar pelos
apetites, porém desprezá-los e revelar moderação, não será qualidade apenas das pessoas
que em grau eminentíssimo desdenham do corpo e vivem para a Filosofia?
Necessariamente, foi a resposta.
Se considerares, prosseguiu, nos outros homens a coragem e a temperança, hás de
achá-las mais do que absurdas.
Como assim, Sócrates?
Ignoras porventura, lhe disse, que na opinião de toda a gente a morte se inclui entre
os denominados males?
Sei disso, respondeu.
E não é pelo medo de um mal ainda maior que enfrentam a morte esses indivíduos
corajosos, quando a enfrentam.
Certo.
Logo, é por medo e temor que os homens são corajosos, com exceção dos filósofos,
muito embora se nos afigure paradoxal ser alguém corajoso por temor e pusilanimidade.
Perfeitamente.
E com os moderados desse tipo, não se passará a mesma coisa, isto é, serem
moderados por algum desregramento? E conquanto asseveremos não ser isso possível, é o
que se dá, realmente, com a temperança balofa dessa gente. De medo, apenas, de se
privarem de certos prazeres por eles cobiçados, quando se abstêm de alguns é porque outros
o dominam. E embora chamem intemperança o ser vencido pelos prazeres, o que se dá com
todos é que o domínio sobre alguns prazeres se faz à custa de servirem a outros, o que vem
a ser muito parecido com o que há pouco declarei, de ser, de algum modo, a intemperança
que os deixa temperantes.
Parece que é assim mesmo.
Mas, meu bem aventurado Símias, essa não é a maneira de alcançar a virtude, trocar
uns prazeres por outros, tristezas, ou temores por temores de outras espécie, como trocamos
em miúdos moeda de maior valor. Só há uma moeda verdadeira, pela qual tudo isso deva
ser trocado: a sabedoria. E só por troca com ela, ou com ela mesma, é que em verdade se
compra ou se vende tudo isto: coragem, temperança e justiça, numa palavra, a verdadeira
virtude, a par da sabedoria, pouco importando que se lhe associem ou dela se afastem
prazeres ou temores e tudo o mais da mesma natureza. Separadas da sabedoria e
permutadas entre si, todas elas não são mais do que sombra de virtude, servis em toda a
linha e sem nada possuírem de verdadeiro nem são. A verdade em si consiste,
precisamente, na purificação de tudo isso, não passando a temperança, a justiça, a coragem
e a própria sabedoria de uma espécie de purificação. É muito provável que os instituidores
de nossos mistérios não fossem falhos de merecimento e que desde muitos nos quisessem
dar a entender por meio de sua linguagem obscura que a pessoa não iniciada nem
purificada, ao chegar ao Hades vai para um lamaçal, ao passo que o iniciado e puro, ao
chegar lá passa a morar com os deuses. Porque, como dizem os que tratam dos mistérios:
muitos são os portadores de tirso, porém pouquíssimos os verdadeiros inspirados. E no meu
modo de entender, são estes, apenas, os que se ocuparam com a filosofia, em sua verdadeira
acepção, no número dos quais procurei incluir-me, esforçando-me nesse sentido, por todos
os modos, a vida inteira e na medida do possível sem nada negligenciar. Se trabalhei como
seria preciso e tirei disso algum proveito, é o que com segurança ficaremos sabendo no
instante de lá chegarmos, se Deus quiser, e dentro de pouco tempo, segundo creio. Eis aí,
Símias e Cebete, minha defesa, a razão de apartar-me nem revoltar-me, por estar
convencido de que tanto lá como aqui encontrarei companheiros e mestres excelentes. O
vulgo não me dará crédito; porém se a minha defesa vos pareceu mais convincente do que
aos meus juízes atenienses, é tudo o que posso desejar.
XIV – Depois de haver Sócrates assim falado Cebete tomou a palavra e disse:
Sócrates, tudo o que à alma, dificilmente os homens poderão acreditar que, uma vez
separada do corpo, venha ela a subsistir em alguma parte, por destruir-se e desaparecer no
mesmo dia em que o homem fenece. No próprio instante em que ele sai do corpo e dele sai,
dispersa-se como sopro ou fumaça, evola-se, deixando, em conseqüência de existir em
qualquer parte. Porque, se ela se recolhesse algures a si mesma, livre dos males que há
pouco enumeraste, haveria grande e doce esperança de ser verdade, Sócrates, tudo o que
disseste. Mas o fato é que se faz mister de não pequeno poder de persuasão e de muitos
argumentos para demonstrar que a alma subsista depois da morte do homem e que conserva
alguma atividade e pensamento.
Tens razão, Cebete, respondeu Sócrates. Mas que podemos fazer? Não queres
examinar mais de espaço essa questão, para ver se as coisas, realmente, se passam desse
modo?
Eu, pelo menos, respondeu Cebete, ouvirei de muito bom grado o que disseres a esse
respeito.
Estou certo de que desta vez, continuou Sócrates, quem nos ouvir, mas que seja
algum comediógrafo, não poderá dizer que só digo baboseiras e nunca me ocupo com coisa
de interesse. Se estiveres de acordo, investigaremos esse ponto.
XV- Estudemo-lo, pois, sob o seguinte aspecto: se as almas dos mortos se encontram
ou não se encontram no Hades? Conforme antiga tradição, que ora me ocorre, as almas lá
existentes foram daqui mesmo e para cá deverão voltar, renascendo os mortos. A ser assim,
e se os vivos nascem dos mortos, não terão de estar lá mesmo nossas almas? Pois não
poderiam renascer se não existissem, vindo a ser essa, justamente a prova decisiva, no caso
de ser possível deixar manifesto que os vivos de outra parte não procedem senão dos
mortos. Se isso não for verdade, teremos de procurar outro argumento.
Isso mesmo, disse Cebete.
Para deixar a questão mais fácil de entender, observou, não te limites a considerá-la
com relação aos homens, porém estende-a ao conjunto dos animais e das plantas, numa
palavra, a tudo o que nasce, a fim de vermos se cada coisa não se origina exclusivamente
do seu contrário, onde quer que se verifique essa relação, tal como no caso do belo, que tem
como contrário o feio, no do justo e do injusto e em mil outro exemplos que se poderiam
enumerar. Investiguemos, então, se é forçoso que tudo o que tenha algum contrário de nada
mais possa originar-se a não ser desse mesmo contrário. Por exemplo: para ficar grande
alguma coisa, é preciso que antes fosse pequena, sem o que não poderia aumentar.
Certo.
E para diminuir, não é preciso ser maior, para depois vir a ficar pequena?
Exatamente, respondeu.
Assim, do mais forte nasce o mais fraco e do moroso, o rápido.
Sem dúvida.
E então? Se alguma coisa piora, é porque antes era melhor, como terá sido antes
injusta para poder tornar-se justa?
Como não?
E agora? Não é próprio dessa oposição universal haver dois processos de nascimento:
o que vai de um contrário para o outro, e o de sentido inverso: deste último para aquele?
Entre a coisa maior e a menor há crescimento e diminuição, razão por que dizemos que
uma delas cresce e a outra diminui.
É certo, respondeu.
Vale o mesmo para a combinação e a decomposição, o resfriamento e o aquecimento,
e para as demais oposições do mesmo tipo. E embora nem sempre tenhamos para todas elas
designação apropriada, é forçoso nesses casos ser idêntico o processo, de forma que cada
coisa cresce à custa de outra, sendo recíproca a geração entre elas.
Sem dúvida, observou.
XVI – E então? Prosseguiu: viver não comporta um contrário, tal como se dá com a
vigília e o sono?
Perfeitamente, respondeu.
Qual é?
Estar morto, foi a resposta.
Sendo assim, cada um desses estados provém do outro, visto serem contrários,
havendo entre ambos um processo recíproco de geração.
Como não?
Vou falar de um dos pares de contrários a que me referi há pouco, disse Sócrates, e de
suas respectivas gerações; tu te manifestarás a respeito do outro. Denomino o primeiro,
vigília e sono; da vigília nasce o sono, e vice-versa: do sono, a vigília, tendo um dos
processos o nome de acordar e o outro o de dormir. Isso te basta, perguntou, ou não?
Perfeitamente.
É tua agora a vez, prosseguiu, de falar a respeito da vida e da morte. Não disseste que
estar vivo é o contrário de estar morto.
Disse.
E que um é gerado do outro?
Também.
Que é, então, o que provém do vivo?
O morto, respondeu.
E do morto, voltou a falar, o que se origina?
Será forçoso convir que é o vivo.
Sendo assim, Cebete, do que está morto provêm os homens e tudo o que tem vida?
É evidente, respondeu.
Logo, continuou, nossas almas estão no Hades.
Parece que sim.
E desses dois processos correlativos, um não nos é manifesto? Pois o ato de morrer é
bem visível, não é isso mesmo?
Sem dúvida, respondeu.
Que faremos, então? Continuou; não atribuiremos a esse processo de geração o seu
contrário, ou admitiremos que nesse ponto a natureza é manca? Não será preciso aceitarmos
um processo gerador oposto ao de morrer?
Sem dúvida nenhuma, respondeu.
Qual?
Reviver.
Logo, continuou, se o reviver é um fato, terá de ser uma geração no sentido dos
mortos para os vivos: a revivescência.
Perfeitamente.
Desse modo, ficamos também de acordo que tanto os vivos provêm dos mortos como
os mortos dos vivos. Sendo assim, quer parecer-me que apresentamos um argumento
bastante forte para afirmar que as almas dos mortos terão necessariamente de estar em
alguma parte, de onde voltam a viver.
A meu parecer, Sócrates, replicou, é a conclusão forçosa de tudo o que admitimos até
aqui.
XVII – Observa também, Cebete, continuou, que não chegamos a esse acordo
aereamente, segundo me parece. Porque se um desses processos não fosse compensado pelo
seu contrário, girando, por assim dizer, em círculo, mas sempre se fizesse a geração em
linha reta, de um dos contrários para o seu oposto, sem nunca voltar desta para aquele, nem
andar em sentido inverso: fica sabendo que tudo acabaria numa forma única e ficaria num
só estado, cessando, por isso mesmo, a geração.
Como assim? Perguntou.
Não é difícil, continuou, compreender o sentido de minhas palavras. No caso, por
exemplo, de existir o sono, porém sem haver o correspondente despertar do que estiver
dormindo, bem sabes que acabaria por transformar em banalidade a fábula de Eudimião, a
qual não seria percebida em parte alguma, porque tudo o mais ficaria como ele, num sono
universal. E se todas as coisas se misturassem, sem virem a separar-se, dentro de pouco
tempo seria um fato aquilo de Anaxógaras: a confusão geral. A mesma coisa se daria,
amigo Cebete, se viesse a perecer quanto participa da vida, e, depois de morto, se
conservasse sempre no mesmo estado, sem nunca renascer; não seria inevitável vir tudo a
ficar morto e nada mais viver? Se o que é vivo provém de algo diferente da morte e acaba
por morrer: como evitar que tudo acabe por desaparecer na morte?
Não há meio, Sócrates, respondeu Cebete, segundo penso; quer parecer-me que te
assiste toda a razão.
A mim também, Cebete, continuou, se me afigura muito certo, não havendo
possibilidade de engano da nossa parte, pois ficamos de acordo nesse ponto. Sim, o reviver
é um fato, os vivos provêm dos mortos, as almas dos mortos existem, sendo melhor a sorte
das boas e pior a das más.
XVIII – É também, Sócrates, voltou Cebete a falar, o que se conclui daquele outro
argumento – se for verdadeiro – que costumas apresentar, sobre ser reminiscência o
conhecimento, conforme o qual nós devemos forçosamente ter aprendido num tempo
anterior o de que nos recordamos agora, o que seria impossível, se nossa alma não
preexistisse algures, antes de assumir a forma humana. Isso vem provar que a alma deve ser
algo imortal
Porém Cebete, interrompeu-o Símias, que provas há sobre isso? Aviva-me a
memória, pois não me lembro agora quais sejam.
Bastará uma, respondeu Cebete, eloquentíssima: interrogando os homens, se as
perguntas forem bem conduzidas, eles darão por si mesmos respostas acertadas, o de que
não seriam capazes se já não possuíssem o conhecimento e a razão reta. Depois disso, se os
pusermos diante de figuras geométricas ou coisas do mesmo gênero, ficará demonstrado a
saciedade que tudo realmente se passa desse modo.
Se isso não basta, Símias, interveio Sócrates, para convencer-te, vê se considerando a
questão por outro prisma, chegarás a concordar conosco. Duvidas que seja apenas recordar
o que denominamos aprender?
Não direi que duvide, respondeu Símias. O que eu quero é justamente isso sobre
discutimos: recordar-me. Com a exposição de Cebete cheguei quase a relembrar-me e
convencer-me. Não obstante, gostaria de saber como vais desenvolver o tema.
Eu? Deste modo, replicou. Num ponto estamos de acordo: que para recordar-se
alguém de alguma coisa, é preciso ter tido antes o conhecimento dessa coisa.
Perfeitamente, respondeu.
E não poderemos declarar-nos também de acordo a respeito de mais outro ponto, que
o conhecimento alcançado em certas condições tem o nome de reminiscência? Refiro-me
ao seguinte: quando alguém vê ou ouve alguma coisa, ou a percebe de outra maneira, e não
apenas adquire o conhecimento dessa coisa como lhe ocorre a idéia de outra que não é
objeto do mesmo conhecimento, porém de outro, não teremos o direito de dizer que essa
pessoa se recordou do que lhe veio ao pensamento?
Como assim?
É o seguinte: uma coisa é conhecimento do homem, e outra o da lira.
Sem dúvida.
E não sabes o que se passa com os amantes, quando vêem a lira, a roupa, ou qualquer
outro objeto de uso de seus amados? Reconhecem a lira e formam no espírito a imagem do
mancebo a quem a lira pertence. Reminiscência é isso: ver alguém freqüentemente a Símias
e recordar-se de Cebete. Há mil outros exemplos do mesmo tipo.
Milhares, por Zeus, respondeu Símias.
Não constitui isso, perguntou, uma espécie de reminiscência? Principalmente quando
se dá com relação a coisa de que poderíamos estar esquecidos, pela ação do tempo ou por
falta de atenção.
Perfeitamente, respondeu.
E então? Continuou: não é possível lembrar-se alguém de um homem, ao ver a
pintura de um cavalo ou de uma lira, ou então, ao ver o retrato de Símias, recordar-se de
Cebete?
Muito possível.
E diante do retrato de Símias, lembrar-se do próprio Símias?
Isso também, foi a resposta.
XIX – E não é certo que em todos esses casos a reminiscência tanto provém dos
semelhantes como dos dessemelhantes?
Provém, de fato.
E no caso de lembrar-se alguém de alguma coisa à vista de seu semelhante, não será
forçosos perceber essa pessoa se a semelhança é perfeita ou se apresenta alguma falha?
Forçosamente, respondeu.
Considera, então, se tudo não se passa deste modo. Afirmamos que há alguma coisa a
que damos o nome de igual; não imagino a hipótese de que um pedaço de pau ser igual a
outro, nem uma pedra a outra pedra, nem nada semelhante; refiro-me ao que se acha acima
de tudo isso; a igualdade em si. Diremos que existe ou que não existe?
Existe, por Zeus, exclamou Símias; à maravilha.
E que também saberemos o que seja?
Sem dúvida, respondeu.
E onde formos buscar esse conhecimento? Não foi naquilo a que nos referimos há
pouco, à vista de um pau ou de uma pedra e de outras coisas iguais, que nos surgiu a idéia
de igualdade, que difere delas? Ou não te parece diferir? Considera também o seguinte: por
vezes, a mesma pedra ou o mesmo lenho, sem se modificarem, não te afiguram ora iguais,
ora desiguais?
Sem dúvida.
E então? O igual já se te apresentou alguma vez como desigual, e a igualdade como
desigualdade?
Nunca, Sócrates.
Por conseguinte, continuou, não são a mesma coisa esses objeto iguais e a igualdade
em si.
De jeito nenhum, Sócrates.
Não obstante, disse, foi desses iguais, diferentes da igualdade, que concebeste e
adquiriste o conhecimento desta última.
Está muito certo o que afirmaste, disse.
Que pode ser semelhante àqueles ou dessemelhantes?
Perfeitamente.
Isso, aliás, continuou, é indiferente. Desde que, à vista de um objeto, pensas em
outro, seja ou não seja semelhante ao primeiro, necessariamente o que se dá nesse caso é
reminiscência.
Perfeitamente.
E então? Prosseguiu: que se passa conosco, com relação aos pedaços de pau iguais e a
tudo o mais a que nos referimos há pouco? Afiguram-se-nos iguais à igualdade em si, ou
lhes falta alguma coisa para serem como a igualdade? Ou não falta nada?
Falta muito, respondeu.
Estamos, por conseguinte, de acordo, que quando alguém vê um determinado objeto e
diz: O objeto que tenho neste momento diante dos olhos aspira a ser como outro objeto real,
porém fica muito aquém dele, sem conseguir alcançá-lo, visto lhe ser inferior: essa pessoa,
dizia, ao fazer semelhante observação, tinha necessariamente o conhecimento do objeto
com o qual ela disse que o outro se assemelhava, porém era inferior.
Forçosamente. E então? Não se passará a mesma coisa conosco, em relação às coisas
iguais e à igualdade em si mesma?
Sem dúvida nenhuma.
É preciso, portanto, que tenhamos conhecido a igualdade antes do tempo em que,
vendo pela primeira vez objetos iguais, observamos que todos eles se esforçavam por
alcançá-la porém lhe eram inferiores.
Certo.
Como também nos declaramos de acordo em que não poderíamos fazer semelhante
observação nem ficar em condições de fazê-la, a não ser por meio da vista ou do tato, ou de
qualquer outro sentido. Não estabeleço diferenças.
De fato, Sócrates, são equivalentes; pelo menos no que respeita ao tema em
discussão.
De qualquer forma, é por meio dos sentidos que observamos tenderem para a
igualdade em si todas as coisas percebidas como iguais, porém sem jamais alcançá-la. Ou
que diremos?
Isso mesmo.
Logo, antes de começarmos a ver, a ouvir, ou a empregar os demais sentidos, já
devemos ter adquirido em alguma parte o conhecimento do que seja a igualdade em si, para
ficarmos em condições de relacionar com ela as igualdades que os sentidos nos dão a
conhecer e afirmar que estas se esforçam por alcançá-la, porém lhe são inferiores.
É a consequência necessária, Sócrates, do que foi dito antes.
E não é certo que vemos e ouvimos e fazemos uso dos demais sentidos logo após o
nascimento?
Perfeitamente.
Será preciso, então, é o que afirmamos, já termos antes disso o conhecimento da
igualdade.
Certo.
Antes do nascimento, por conseguinte, ao que parece, é que necessariamente o
adquirimos.
Parece, mesmo.
XX – Logo, se o adquirimos antes do nascimento e nascemos com ele, é porque
conhecemos antes do nascimento e ao nascer tanto o igual, o maior e o menor, como as
demais noções da mesma natureza. Pois tanto é válido nosso argumento para a igualdade
como para o belo em si mesmo e o bem em si mesmo, a justiça, a piedade e tudo o mais,
como disse, a que pusemos a marca de O próprio que é, assim nas perguntas que
formulamos como nas respostas apresentadas. A esse modo, adquirimos necessariamente
antes de nascer o conhecimento de tudo isso.
Certo.
E se, depois de adquirido tal conhecimento não o esquecêssemos, desde o nascimento
o possuiríamos e o conservaríamos toda a vida. Pois conhecer, de fato, consiste apenas no
seguinte: conservar o conhecimento adquirido, sem vir nunca a perdê-lo. O que
denominamos esquecer, Símias, não será precisamente a perda do conhecimento?
Não será outra coisa, Sócrates, respondeu.
Se, em verdade, segundo penso, antes de nascer já tínhamos tal conhecimento e o
perdemos ao nascer, e depois, aplicando nossos sentidos a esses objetos, voltamos a
adquirir o conhecimento que já possuíramos num tempo anterior: o que denominamos
aprender não será a recuperação de um conhecimento muito nosso? E não estaremos
empregando a expressão correta, se dermos a esse processo o nome de reminiscência/?
Perfeitamente.
Pois já se nos revelou como possível, ao percebemos alguma coisa, pela vista ou pelo
ouvido, ou por qualquer outro sentido, pensar em outra de que nos havíamos esquecido,
mas que se associa com a primeira por parecer-se com ela ou por lhe ser dessemelhante.
Desse modo, como disse, uma das duas há de ser, por força: ou nascemos com tal
conhecimento e o conservamos durante toda a vida, ou então as pessoas das quais dizemos
que aprendem posteriormente, o que fazem é recordar, vindo a ser o conhecimento
reminiscência.
Tudo se passa realmente desse modo, Sócrates.
XXI – Então, que escolhes, Símias? Nascemos com o conhecimento ou nos
recordamos ulteriormente do que conhecemos ante?
Assim de pronto, Sócrates, não sei como decidir-me.
Como? Sobre isto podes perfeitamente decidir-te e dizer o que pensas: quem sabe,
está em condições de dar as razões do que sabe, ou não?
Necessariamente, Sócrates, respondeu.
E és de parecer que todo o mundo possa dar as razões das questões que acabamos de
tratar?
Tomara que o pudessem! Porém receio muito que amanhã a estas horas não haja aqui
uma só pessoa em condições de fazê-lo.
Decerto, Símias, continuou, não és de opinião que todos os homens entendam dessa
questões.
De forma alguma.
Nesse caso, recordam-se do que aprenderam antes?
Necessariamente.
E quando é que nossas almas adquirem esses conhecimento? Não há de ser a partir do
momento em que nascemos como homens.
Não, decerto.
Então é antes?
Sim.
Logo, Símias, as almas existem antes de assumirem a forma humana, separadas dos
corpos, e possuírem entendimento.
A menos, Sócrates, que adquiramos tal conhecimento ao nascer, pois ainda falta
considerar esse tempo.
Que seja, companheiro! Mas então, em que tempo perdemos esse conhecimento? Ao
nascermos não dispomos dele, como acabamos de admitir. Ou será que o perdemos no
momento exato em que o adquirimos? Poderás indicar outro tempo?
Não há jeito, Sócrates, sem o querer, disse uma tolice.
XXII – Nossa situação, Símias, não será a seguinte? Se existe, realmente, tudo isso
com que vivemos a encher a boca: o belo e o bom e todas as essências desse tipo, e se a elas
referimos tudo o que nos chega por intermédio dos sentidos, como a algo preexistente, que
encontramos em nós mesmos e com que o comparamos: será forçoso que , assim como
elas, exista nossa alma antes de nascermos, e que sem aquelas estas não existiriam?
Mais que exata, falou Símias, me parece, Sócrates, a mesma necessidade; é muito
segura a posição a que se acolhe o argumento, no que entende com a afinidade entre as
essências a que te referiste, e nossa alma, antes de nascermos. Não sei de nada tão claro
como dizer que todos esses conceitos existem na mais elevada acepção do termo: o belo, o
bem e tudo o mais que enumeraste há pouco. Essa demonstração me satisfaz plenamente.
E a Cebete? Perguntou; precisas também convencer Cebete.
A ele também satisfaz, respondeu Símias, segundo penso, muito embora seja o
homem mais difícil de aceitar a opinião dos outros. Mas creio que já esse encontra
convencido de que nossa alma existe antes de nascermos.
XXIII – Porém Sócrates, que ela continue a existir depois de nossa morte é o que não
me parece suficientemente demonstrado, pois ainda está de pé a opinião do vulgo a que
Cebete se referiu há pouco: Quem sabe se no instante preciso em que o homem morre, a
alma se dispersa, sendo esse, justamente, o seu fim? Que impede, de fato que ela nasça
algures e se constitua de outros elementos e exista antes de alcançar o corpo humano, mas
depois de entrar no corpo, quando tiver de separar-se dele, também acabe de uma vez e
venha a destruir-se?
Falaste bem, Símias, observou Cebete. Parece que só foi demonstrado metade do que
era de mister, a saber: que nossa alma existe antes de nascermos; ainda falta provar, por
conseguinte, que depois de morrermos ela não existirá menos do que antes do nascimento.
Só assim ficará completa a demonstração.
Foi completada agora mesmo, Símias e Cebete, observou Sócrates; bastará juntardes
o presente argumento ao que admitimos antes, de que tudo o que vive só nasce do que é
morto. Porque se as almas existem antes do nascimento e se, necessariamente, para
começarem a vida e existirem, não poderão provir de outra parte a não ser da morte do que
está morto, não será forçoso que continuem a existir depois da morte, para renascerem?
Como disse, essa parte já foi demonstrada.
XXIV – Porém verifico, Símias e Cebete, que ambos vós folgaríeis de examinar mais
a fundo essa questão, pois, como as crianças, temeis, de fato, que o vento arraste a alma e a
disperse no momento em que ela deixa o corpo, máxime se na hora em que morre alguém o
céu não estiver sereno e soprar vento forte.
E Cebete, desatando a rir, Faze de conta, Sócrates, observou, que estamos com medo,
e procura convencer-nos. Ou melhor: será preferível admitires, não que temos medo, mas
que talvez haja dentro de nós uma criança que se assusta com essas cosias. Trata, por
conseguinte, de convencê-la a não ter medo da morte como do bicho-papão.
Para tanto, lhes falou Sócrates, será preciso exorcizá-la diariamente, até passar o
medo.
E onde, Sócrates, perguntou, encontraremos um bom exorcizador, uma vez que nos
abandonas?
A Hélade é grande, Cebete, replicou, e nela há muitos homens de merecimento.
Grandes também sãos as gerações bárbaras, que precisareis esquadrinhar para encontrar um
mágico nessas condições, sem olhar despesas nem fadiga, pois em nada mais poderíeis
aplicar o vosso dinheiro. Mas convém promoverdes essa busca também entre vós outros,
pois talvez não seja fácil encontrar quem se desincumba disso melhor do que vós mesmos.
É o que faremos, falou Cebete. Porém se levares gosto nisso, voltemos para o ponto
em que ficamos antes.
Agrada-me a proposta, como não?
XXV – Agora o de que precisamos, falou Sócrates, é perguntar a nós mesmo mais ou
menos o seguinte: Com que coisas é natural semelhante processo de dispersão, com quais
devemos ter medo de que isso aconteça, e com quais não devemos? De seguida, teremos de
examinar a qual das classes pertence a alma, para daí concluirmos se precisamos alegrarnos
ou temer do que venha a acontecer com a nossa.
É muito certo, disse.
E não é verdade que as coisas, artificial ou naturalmente compostas é que devem
acabar por dispersar-se nos elementos originais? E o inverso: não será o que não for
composto, antes de tudo, a única coisa que não convém passar por esse processo de
dissociação?
Acho que é assim mesmo, observou Cebete.
E também não é certo que há muita probalidade de não serem compostas as coisas
que sempre se mantêm no mesmo estado e nunca se alteram, como serão compostas as que
ora se apresentam de uma forma, ora de outra, e mudam a cada instante?
É também o que eu penso.
Então, prosseguiu, retomemos o tema de nossa discussão anterior. Aquela idéia ou
essência a que em nossas perguntas e respostas atribuímos a verdadeira existência,
conserva-se sempre a mesma e de igual modo, ou ora é de uma forma, ora de outra? O igual
em si, o belo em sim, todas as coisas em si mesmas, o ser, admitem qualquer alteração? Ou
cada uma dessas realidades, uniformes e existentes por si mesmas, não se comportará
sempre da mesma forma, sem jamais admitir de nenhum jeito a menor alteração?
Forçosamente, Sócrates, falou Cebete, sempre permanecerá a mesma e do mesmo
jeito.
E com relação à multiplicidade das coisas belas: homens, cavalos, vestes e tudo o
mais da mesma natureza, que ou são iguais ou belas e recebem a própria designação
daquelas realidades: conservam-se sempre idênticas ou, diferentemente das essências, não
são jamais idênticas, nem com relação às outras nem, por assim dizer, consigo mesmas?
Isso, justamente, Sócrates, é o que se observa, respondeu Cebete, nunca se conservam
as mesmas.
E não é certo também que todas essas coisas se podem ver e tocar ou perceber por
intermédio de qualquer outro sentido, ao passo que as essências, que se conservam sempre
iguais a si mesmas, só podem ser apreendidas pelo raciocínio, por serem todas elas
invisíveis e estarem fora do alcance da visão?
O que dizes, observou, é a pura verdade.
XXVI – Achas, então, perguntou, que podemos admitir duas espécies de coisas: umas
visíveis e outras invisíveis?
Podemos, respondeu.
Sendo que as invisíveis são sempre idênticas a si mesmas, e as visíveis, o contrário
disso?
Admitamos também esse ponto, respondeu.
Então, prossigamos, uma parte de nós mesmos não é corpo, e a outra não é alma?
Sem dúvida, falou.
E com qual daquelas classes diremos que o corpo é mais conforme e tem mais
afinidade?
Para todo o mundo é evidente que é com a das coisas visíveis.
E com relação à alma? É visível, ou será invisível?
Pelo menos para o homem, não o será, Sócrates, respondeu.
Mas, quando falamos do que é ou não é visível, é sempre com vista à natureza
humana. Ou achas que seja com relação a outra?
Não; é com a natureza humana, mesmo.
E a alma? Que diremos dela: poderemos vê-la ou não?
Não podemos.
Logo, é invisível.
Certo.
Sendo assim, a alma é mais conforme à espécie invisível do que o corpo, e este mais à
visível.
De toda a necessidade, Sócrates.
XXVII – Mas também dissemos há alguns instantes, que quando a alma se serve do
corpo para considerar alguma coisa por intermédio da vista ou do ouvido, ou por qualquer
outro sentido – pois considerar seja o que for por meio dos sentidos é fazê-lo por
intermédio do corpo – é arrastada por ele para o que nunca se conserva no mesmo estado,
passando a divagar e a perturbar-se, e ficando tomada de vertigens, como se estivesse
embriagada, pelo fato de entrar em contato com tais coisas?
Sim, dissemos isso mesmo.
E o contrário disso: quando ela examina sozinha alguma coisa, volta-se para o que é
puro, sempiterno, e que sempre se comporta do mesmo modo, e por lhe ter afinidade, vive
com ele enquanto permanecer consigo mesma e lhe for permitido, deixando, assim, de
divagar e pondo-se como relação com o que é sempre igual e imutável, por esta em contato
com ele. A esse estado, justamente, é que damos o nome de pensamento.
Tudo isso, Sócrates, é verdadeiro e foi muito bem enunciado.
E agora, de acordo com o presente argumento e o anterior, com qual dessas duas
espécies a alma se mostra semelhante e revela maior afinidade?
No meu modo de pensar, Sócrates, respondeu, não há quem deixe de concordar, por
mais obtuso que seja, se te acompanhar o raciocínio, que em tudo e por tudo a alma tem
mais semelhança com o que sempre se conserva o mesmo do que com o que varia.
E o corpo?
Com a outra espécie.
XXVIII – Examina agora a questão da seguinte maneira: enquanto se mantêm juntos
o corpo e a alma, impõe a natureza a um dele obedecer e servir e ao outro comandar e
dominar. Sob esse aspecto, qual deles se assemelha ao divino e qual ao mortal? Não te
parece que o divino é naturalmente feito para comandar e dirigir, e o mortal para obedecer e
servir?
Acho que sim.
E com qual deles a alma se parece?
Evidentemente, Sócrates, a alma se assemelha ao divino, e o corpo ao mortal .
Considera agora, Cebete, continuou, se de tudo o que dissemos não se conclui que ao
que for divino, imortal, inteligível, de uma só forma, indissolúvel, sempre no mesmo estado
e semelhante a si próprio é com o que alma mais se parece; e o contrário: ao humano,
mortal e ininteligível, multiforme, dissolúvel e jamais igual a si mesmo, com isso é que o
corpo se parece? Poderemos, amigo Cebete, argumentar de outro modo e dizer que não é
dessa maneira?
Não é possível.
XXIX – E então? Se for assim, não ficará o corpo sujeito a dissolver-se depressa,
conservando-se a alma indissolúvel ou num estado que muito disso se aproxima?
Sem dúvida.
Observa ainda, continuou, como depois que o homem morre, sua porção visível, o
corpo, a que damos o nome de cadáver, colocado também num lugar visível, embora o
sujeito a dissolver-se, a desagregar-se, de imediato não revela nenhuma dessas alterações,
conservando-se intacto por tempo relativamente longo; e se, no momento da morte, o corpo
estiver em boas condições, sendo boa, igualmente, a estação do ano, então conserva-se
muito mais tempo. Quando o corpo é descarnado e embalsamado, tal como se faz no Egito,
ele permanece quase inteiro por tempo incalculável. Aliás, até mesmo no corpo em
decomposição, alguma de suas partes: ossos, tendões; e tudo mais do gênero, são, por assim
dizer, imortais. Não é isso mesmo?
Certo.
Ao passo que a alma, a porção invisível, que vai para um lugar semelhante a ela,
nobre, puro e invisível, o verdadeiro Hades, ou seja, o Invisível, para junto de um deus
sábio e bom, para onde também, se Deus quiser, dentro de pouco irá minha alma: essa alma
dizia, com semelhante origem e constituição. Ao separar-se do corpo, no mesmo instante se
dissiparia e viria a destruir, conforme crê a maioria dos homens: Nunca, meus caros Símias
e Cebete! Pelo contrário; o que se dá é o seguinte: se ela é pura no momento de sua
libertação e não arrastar consigo nada corpóreo, por isso mesmo que durante a vida nunca
mantivera comércio voluntário com o corpo, porém sempre evitara, recolhida em si mesma
e tendo sempre isso como preocupação exclusiva, que outra coisa não é senão filosofar, no
rigoroso sentido da expressão, e preparar-se para morrer facilmente... Pois tudo isso não
será um exercício para a morte?
Sem dúvida nenhuma.
Assim constituída, dirigi-se para o que lhe assemelha, para o invisível, divino, imortal
e inteligível, onde, ao chegar, vive feliz, liberta do erro, da ignorância, do medo, dos
amores selvagens e dos outros males da condição humana, passando tal como se diz dos
iniciados, a viver o resto do tempo na companhia dos deuses. Falaremos desse jeito, Cebete,
ou de outra forma?
XXX – Assim mesmo, por Zeus, respondeu Cebete.
No caso, porém, conforme penso, de estar manchada e impura ao separar-se do corpo,
por ter convivido sempre com ele, cuidado dele e o ter amado e estar fascinada por ele e por
seus apetites e deleites, a ponto de só aceitar como verdadeiro o que tivesse forma corpórea,
que se pode ver, tocar, beber, comer, ou servir para o amor; e se ela, que se habituou a
odiar, temer e evitar o que é obscuro e invisível para os olhos, porém inteligível e
apreensível com à filosofia: acreditas que uma alma nessas condições esteja recolhida em si
mesma e sem mistura no momento em que deixar o corpo?
De forma alguma, respondeu.
Porém segundo penso, de todo em todo saturada de elementos corpóreos que com ela
cresceram como resultado de sua familiaridade e contínua comunicação com o corpo, de
que nunca se separou e de que sempre cuidara.
Sem dúvida.
Então, meu caro, terás de admitir que tudo isso é espesso, terreno e visível. A alma,
com essa sobrecarga, torna-se pesada e é de novo arrastada para a região visível, de medo
do Invisível – o Hades, como e diz – e rola por entre os monumentos e túmulos, na
proximidade dos quais têm sido vistos fantasmas tenebrosos, semelhantes aos espectros
dessas almas que não se libertaram puras de corpo e que se tornaram visível.
É muito possível, Sócrates, que seja assim mesmo.
Sim, é muito possível, Cebete, e também que essas almas não sejam dos bons, porém
dos maus, que se vêem obrigadas a vagar por esse lugares, como castigo de sua conduta
durante a vida, que fora péssima. E assim ficam a vagar, até que o apetite do elemento
corporal a que sempre estão ligadas volte a prendê-las noutros corpos.
XXXI – Como é natural, voltam a ser aprisionadas em naturezas de costumes iguais
aos que elas praticaram em vida.
A que a naturezas te referes, Sócrates?
É o seguinte: as que eram dadas à glutonaria, ao orgulho ou à embriaguez desbragada,
entram naturalmente nos corpos de asnos e de animais congêneres. Não te parece?
Falas com muita propriedade.
As que cometeram injustiças, a tirania ou a rapina, passam para a geração dos lobos,
dos açores e dos abutres. Para onde mais podemos dizer que vão as almas dessa natureza?
Não há dúvida, respondeu Cebete; é para esses corpos que elas vão.
E não é evidente, continuou, que o mesmo se passa com os demais, por se orientarem
todas elas no sentido de suas próprias tendências?
É claro, observou; nem poderia ser de outra maneira.
Logo, disse, os mais felizes e que vão para os melhores lugares são os que praticam a
virtude cívica e social que dominamos temperança e justiça, por força apenas do hábito e da
disposição própria, sem a participação da filosofia e da inteligência.
Por que serão esses os mais felizes?
Por ser natural que passem para uma raça sociável e mansa, de abelhas, vespas ou
formigas, ou até para a mesma raça, a humana, a fim de gerarem homens moderados.
Sem dúvida.
XXXII – Para a raça dos deuses não é permitido passar os que não praticaram a
Filosofia nem partiram inteiramente puros, mas apenas os amigos da Sabedoria. É por isso,
meus caros Símias e Cebete, que os verdadeiros filósofos se acautelam contra os apetites do
corpo, resistem-lhes e não se deixam dominar por eles; não têm medo da pobreza nem da
ruína de sua própria casa, como a maioria dos homens, amigos das riquezas, nem temem a
falta de honrarias e a vida inglória, como se dá com os amantes do poder e das distinções.
Não é essa a razão de se absterem de tudo?
De fato, Sócrates; nada disso lhes ficaria bem, falou Cebete.
Não, por Zeus, retorquiu. Por isso mesmo, Cebete, todos os que cuidam da alma e não
vivem simplesmente para o culto do corpo, dizem adeus a tudo isso e não seguem o
caminho dos que não sabem para onde vão. Convencidos de que não devemos fazer nada
em contrário à Filosofia nem ao que ela prescreve para libertar-nos e purificar-nos, voltamse
para esse lado, seguindo na direção por ela aconselhada.
XXXIII – De que modo, Sócrates?
Vou dizer-te, respondeu. Estão perfeitamente cientes os amigos da Sabedoria, que
quando a Filosofia passa a dirigir-lhes a alma, esta se encontra como que ligada e
aglutinada ao corpo, por intermédio do qual é forçada a ver a realidade como através das
grades de um cárcere, em lugar de o fazer sozinha e por si mesma, porém atolada na mais
absoluta ignorância. O que há de terrível nesse liames, reconhece-o a Filosofia, é
consistirem nos prazeres e ser próprio prisioneiro quem mais coopera para manietar-se.
Como disse, os amigos da Sabedoria estão cientes de que, ao tomar conta de sua alma em
tal estado, a Filosofia lhe fala com doçura e procura libertá-la, mostrando-lhe quão cheio de
ilusões é o conhecimento adquirido por meio dos olhos, quão enganador o dos ouvidos e
dos mais sentidos, aconselhando-a a abandoná-los e a não fazer uso deles se não só o
necessário, e a recolher-se e concentrar-se em si mesma e só a acreditar em si própria e no
que ela em si mesma aprender da realidade em si, e o inverso: a não aceitar como
verdadeiro tudo o que ela considerar por meios que em cada caso se modificam, pois as
coisas desses gênero são sensíveis e visíveis, ao passo que é inteligível e invisível o que ela
vê por si mesma. Convencida de que não deve opor-se a semelhante libertação, a alma do
verdadeiro filósofo abstém dos prazeres, das paixões e dos temores, tanto quanto possível,
certa de que sempre que alguém se alegra em extremo, ou teme, ou deseja, ou sofre, o mal
daí resultante não é o que se poderia imaginar, como seria o caso, por exemplo, de adoecer
ou vir a arruinar-se por causa das paixões: o maior e o pior dos males é o que não se deixa
perceber.
Qual é, Sócrates? perguntou Cebete.
É que toda alma humana, nos casos de prazer ou de sofrimento intensos, é
forçosamente levada a crer que o objeto causador de semelhante emoção é o que há de mais
claro e verdadeiro, quando, de fato, não é assim. De regra, trata-se de coisas visíveis, não é
isso mesmo?
Perfeitamente.
E não é quando passa por tudo isso que a alma se encontra mais intimamente presa ao
corpo?
Como assim?
Porque os prazeres e os sofrimentos são como que dotados de um cravo com o qual
transfixam a alma e a prendem ao corpo, deixando-a corpórea e levando-o a acreditar que
tudo o que o corpo diz é verdadeiro. Ora, pelo fato de ser da mesma opinião que o corpo e
de se comprazer com ele, é obrigada, segundo penso, a adotar seus costumes e alimentos,
sem jamais poder chegar ao Hades em estado de pureza, pois é sempre saturada do corpo
que ela o deixa. Resultado: logo depois, volta a cair noutro corpo, onde cria raízes como se
tivesse sido semeada nele, ficando de todo alheia da companhia do divino, do que é puro e
de uma só forma.
É muito certo o que disseste, observou Cebete.
XXXIV – Essa é a razão, Cebete, de serem temperantes e corajosos os verdadeiros
amigos do saber, não pelo que imagina o povo. Ou achas que sim?
Eu? De forma alguma.
Não, de fato; a alma do filósofo não raciocina desse jeito nem pensa que a filosofia
deva libertá-la, para, depois de livre, entregar-se de novo aos prazeres e às dores e voltar a
acorrentar-se, deixando írrito seu esforço anterior e como que empenhada em fazer o
inverso do trabalho de Penélope em sua teia. Ao contrário: alcançando a calmaria das
paixões e guiando-se pela razão, sem nunca a abandonar, contempla o que é verdadeiro e
divino e que paira acima das opiniões, certa de que precisará viver assim a vida toda, para
depois da morte, unir-se ao que lhe for aparentado e da mesma natureza, liberta das
misérias humanas. Não é de admirar, Símias e Cebete, que uma alma alimentada desse jeito
e com semelhante ocupação não tenha medo de desmembrar-se quando se retirar do corpo,
e de ser dispersada pelos ventos, dissipando-se do todo, sem vir a ficar em parte alguma.
XXXV – A essas palavras de Sócrates, seguiu-se prolongado silêncio. Como se
poderia observar, o próprio Sócrates meditava no tema desenvolvido na conversação, o que,
aliás, acontecia com quase todos os presentes. Cebete e Símias falaram de socapa alguma
coisa, o que foi percebido por Sócrates, que lhes disse:
E então? Perguntou: quem sabe se sois de parecer que ainda falta dizer algo? Em
verdade, muitas dúvidas. E objeções poderiam ser levantadas por quem se dispusesse a
aprofundar o tema. Se tratais agora de outro assunto, não digo nada; porém se o nosso
mesmo é que vos atrapalha, expõem sem acanhamento o que vos parecer indicado para
melhor esclarecimento da questão, ou permiti que eu também tome parte no diálogo, no
caso de julgardes que com a minha cooperação podeis vencer mais facilmente as
dificuldades.
Símias, então, falou: Sendo assim, Sócrates, vou dizer-te a verdade. Já faz tempo que
estamos em dúvida e procuramos animar-nos reciprocamente a dirigir-te perguntas, pelo
desejo de ouvir-te falar, porém temos medo de incomodar-te por causa do presente
infortúnio.
Ouvindo-o expressar-se desse modo, respondeu Sócrates, esboçando um sorriso: Ora,
Símias! Dificilmente chegarei a convencer os outros homens que não considero nenhuma
desgraça minha situação neste momento, se nem a vós mesmos consigo persuadir, por
terdes receio de eu estar agora com ânimo diferente. Pelo que vejo, considerais-me inferior
aos cisnes, pois quando estes percebem que estão perto de morrer, por terem cantado a vida
toda, mais vezes e melhor põem se a cantar, contentes de partirem para junto do deus de
que são os servidores. Porém com seu medo característico da morte, os homens caluniam os
cisnes, com afirmarem que eles cantam por chorarem a morte, de tristeza, sem refletirem
que nenhum ave canta quando tem fome ou frio, ou quando presa de outra angústia, nem
mesmo o rouxinol, a andorinha ou a poupa, cujo canto, segundo dizem, serve de alimentar a
dor. Porém não creio que nenhum deles cante por estarem tristes, muito menos os cisnes.
Ao contrário: por pertencerem a Apolo, segundo penso, têm o Dom da profecia, e por
preverem as delícias do Hades, cantam e se alegram nesse dia muito mais do que antes. Eu,
de minha parte, também me considero servidor igual da divindade, como os cisnes, e a ela
consagrado, e por ser dotado pelo meu senhor de não menor Dom de profecia, não deixarei
a vida com menos coragem do que eles. Por isso, podeis falar à vontade e formular as
perguntas que entenderdes todo o tempo que o permitirem os onze cidadãos de Atenas.
Perfeito, falou Símias, pois então vou dizer-te quais são as minhas dúvidas, para
depois indicar este aqui os pontos de tua exposição com que ele não concorda. Sobre esses
assunto, Sócrates, creio estar de acordo contigo, que se nesta vida não for impossível saber
a essa respeito algo definitivo, é extremamente difícil. Mas também será prova de fraqueza
deixar de analisar por todos os modos o que foi dito, e não abandonar o assunto enquanto
não sentirmos cansaço. Neste passo vemo-nos ante o dilema: aprender e descobrir o de que
se trata, ou, no caso de não ser isso possível, adotar a melhor opinião e a mais difícil de
contestar, e nela instalando-nos à guisa de jangada, procurar fazer a travessia da vida, na
hipótese de não conseguir isso mesmo com maior facilidade e menos perigo numa
embarcação mais firme, ou seja, com alguma palavra divina. Assim, não ficarei acanhado
agora de interrogar-te, já que tu próprio mo aconselhas, nem precisarei censurar-me de
futuro por não te haver dito hoje o que pensava. O fato, Sócrates, é que quando reflito no
que disseste, ou seja comigo mesmo ou na companhia deste aqui, tenho a impressão de que
nem tudo ficou bem fundamentado.
XXXVI – Sócrates respondeu: Talvez, companheiro, lhe falou, estejas com a razão;
porém explica o que não te parece bem fundamentado.
É que seria possível alegar a mesma coisa, continuou, a respeito da harmonia e da lira
com suas cordas, a saber: que a harmonia é algo invisível, incorpóreo e sumamente belo
numa lira bem afinada, e que esta, por sua vez, é corpo, com também o são as cordas,
coisas materiais, compostas, terrenas e de natureza morta. Ora, no caso de alguém quebrar a
lira e cortar ou arrebentar as cordas, alguém poderia argumentar como o fizeste:
forçosamente aquela harmonia ainda vive, pois não foi destruída; pois não é possível
subsistir a lira depois de se partirem as cordas, e as próprias cordas, todas elas de natureza
morta, e desaparecer a harmonia, da mesma natureza e da família do divino e do imortal,
que assim viria a ser destruída até mesmo antes do que é perecível. Não, prosseguiria essa
pessoa; necessariamente a harmonia terá de continuar em qualquer parte, por ser forçoso
que a madeira apodreça primeiro, e as cordas, antes de acontecer àquela alguma coisa. A
esses respeito, Sócrates, creio que tu mesmo já consideraste que a noção da alma admitida
por nós é mais ou menos a seguinte: Da mesma foram que temos o corpo distendido e
coeso pelo calor e o frio, o seco e o úmido, e tudo o mais do mesmo gênero, viria a ser
nossa alma a mistura e a harmonia de todos esses elementos, quando combinados em justa
proporção. Ora, se nossa alma for uma espécie de harmonia, é evidente que, ao ficar
relaxado o corpo, ou distendido em excesso, por doenças e outras perturbações,
forçosamente a alma fenecerá logo, em que pese à sua natureza divina, tal como se dá com
as outras harmonias, tanto as resultantes de sons como das demais obras dos artista; ao
passo que os despojos do corpo perduram por muito tempo, até que o fogo os destrua ou
venham a apodrecer. Vê, portanto, o que devemos opor a esses argumentos, no caso de
alguém nos vir dizer que a alma, por ser a mistura dos elementos do corpo, é a primeira a
fenecer naquilo que chamamos morte.
XXXVII – Sócrates se conservou durante algum tempo com o olhar parado, como era
seu costume; depois falou, sorrindo: A objeção de Símias, declarou, é procedente. Se algum
de vós estiver em melhores condições do que eu, por que não responde a ele? O argumento
dele é muito feliz. Porém antes de formular qualquer resposta, sou de parecer que devemos
primeiro ouvir o que tem Cebete a opor à nossa tese, pois assim ganharemos tempo para
refletir no que será preciso dizer. E depois de ouvir a ambos, dar-lhes-emos nossa
aprovação, se nos parecerem bem afinados os argumentos; caso contrário; dizendo logo o
que te deixa atrapalhado.
Vou dizer, respondeu Cebete. A meu parecer, nosso argumento não saiu do lugar e
continua como alvo das mesmas objeções de antes. Que nossa alma já existisse antes de
assumir esta forma, é proposição que não me repugna aceitar, por engenhosa e – salvo
imodéstia de minha parte – suficientemente demonstrada. Porém que subsista algures
depois de estarmos mortos, com isso é que não posso concordar. Não aceito, também o
reparo de Símias, quando afirma que a alma não é mais forte nem mais durável do que o
corpo, pois sob ambos os aspectos ela se distingue imensamente dele. Por que então, lhe
diria o argumento, ainda te mostras incrédulo, se estás vendo que depois da morte do
homem sua porção mais fraca ainda subsiste? Não te parece que a porção mais durável terá
forçosamente de sobreviver igual tempo? Vê agora se o que digo contém alguma
substância. Para maior comodidade vou socorrer-me, como o fez Símias, de uma imagem.
Para mim, falar desse jeito é o mesmo que fazer as seguintes considerações a respeito de
um velho tecelão que acabasse de morrer: o homem não está morto: continua vivo em
alguma parte; e para prova dessa afirmação, apresentasse a roupa que ele então trazia no
corpo, tecida por ele mesmo, conservada e sem ter ainda perecido. E se alguém se
mostrasse incrédulo, poderia perguntar o que é por natureza mais durável, imaginaria ter
demonstrado que com maioria de razões o homem terá de estar bem, visto não haver
perecido o que por natureza é menos durável. Porém a meu ver, Símias, a realidade, é muito
diferente. Presta atenção ao seguinte: Não há quem não veja quanto é fraco semelhante
argumento. Havendo gasto muitas roupas por ele próprio tecidas, o nosso homem morreu,
de fato, depois de todas, e não foram poucas, porém antes da última, segundo penso; mas
nem por isso o homem é inferior ou mais fraco do que a roupa. Essa imagem, quero crer, se
aplica tanto à alma como ao corpo, e quem argumentasse desse modo com relação ao
corpo, falaria com muito mais propriedade, a saber: que a alma é mais durável e o corpo
mais fraco e transitório, pois fora acertado acrescentar que cada alma consome vários
corpos, principalmente quando vive muitos anos. Se o corpo se escoa e se deliquesce
enquanto o homem vive, a alma retece de contínuo o que for consumido. Forçoso será, por
conseguinte, que, no instante de morrer, ainda esteja a alma com a última vestimenta por
ela feia, só vindo a morrer antes da última. Desaparecida a alma, mostra, de pronto, o corpo
sua fraqueza natural e se desmancha pela putrefação. Por isso mesmo, com base nesses
argumentos não podemos confiar que nossa alma subsista algures depois da morte. E se
alguém concedesse ao expositor de tua proposição mais ainda do que fazes e lhe desse de
barato não penas que nossas almas existem antes do tempo do nascimento, sendo que nada
impede, até mesmo depois de nossa morte, existirem algumas e continuarem a existir, e
muitas vezes renascerem e tornarem a morrer, por serem de natureza bastante forte para
suportar esses nascimentos sucessivos: se lhe concedêssemos esse ponto, de todo o jeito ele
se recusaria a admitir que a alma não se esgota nesses nascimentos sucessivos, para acabar
numa dessas últimas mortes, por desaparecer de todo. Dessa morte última, poderia
acrescentar, e dessa decomposição do corpo que leva para a alma a destruição, ninguém
pode ter conhecimento, por não estar em nós experimentá-la. Se as coisas se passam mesmo
dessa forma, por força terá de ser irracional a confiança de qualquer pessoa diante da morte,
a menos que esse alguém pudesse demonstrar que a alma é absolutamente imortal e
imperecível. Sendo isso impossível, não há como evitar que o moribundo se arreceie de que
no instante em que sua alma se desaparecer do corpo, venha a desaparecer de todo.
XXXVIII – Ao ouvi-los falar dessa maneira, todos nós nos sentimos
desagradavelmente impressionados, conforme depois confessamos a nós mesmos;
firmemente convencidos como ficáramos, ante os argumentos anteriores, as palavras de
agora como que nos deixavam inquietos e nos levavam outra vez a duvidar, tanto com
relação ao que já fora dito como ao que ainda restava por dizer. Ou éramos maus juízes ou
o assunto não admitia prova.
Equécrates – Pelos deuses, Fedão! Compreendo o que se passou convosco, pois
agora mesmo, perguntei-me em que argumento poderemos confiar daqui por diante, se o
que Sócrates acabou de desenvolver, com ser tão convincente, perdeu de todo o crédito? É
maravilhosa a atração que sobre mim sempre exerceu, e ainda exerce, a doutrina de que
nossa alma é uma espécie de harmonia. O que acabaste de expor me fez lembrar que até ao
presente eu a aceitava. Mas agora necessito de novos argumentos para convencer-me de
que a alma não morre juntamente com o corpo. Dize logo, por Zeus, de que modo Sócrates
prosseguiu na sua argumentação? Porventura revelou desânimo, como disseste ter
acontecido com todos vós, ou, pelo contrário, defendeu a sua opinião com a serenidade
habitual? Foi completa ou falha nalgum ponto sua defesa? Conta-nos tudo com a maior
exatidão possível.
Fedão – Em verdade, Equécrates, por mais que antes eu tivesse admirado Sócrates,
nunca me senti tão arrebatado naquele instante. Não é de espantar que um homem do seu
estofo pudesse sair-se bem em semelhante conjuntura. Mas o que nele, primeiro de tudo,
me admirou ao extremo foi a maneira delicada, cordial e deferente com o que acolheu as
objeções dos moços; depois, a sagacidade com que observou o efeito de suas palavras sobre
nós e, por último, como soube curar-nos: de fugitivos e derrotados, fez-nos voltar e
concitou-nos a segui-lo, para considerarmos junto o argumento.
Equécrates – De que modo?
Fedão – Vou te dizer como foi. Aconteceu que eu me achava, justamente à sua
direita, num banquinho ao pé do catre, ficando ele num plano muito mais alto. Afagandome
a cabeça e abarcando com a mão os cabelos que me cobriam a nuca – pois sempre que
se lhe oferecia ocasião graceja a respeito de minha cabeleira – me disse: Decerto é amanhã,
Fedão, que vais pôr abaixo esta bela cabeleira?
Penso que sim, Sócrates, respondi.
Não, se me aceitares um conselho.
Que devo, então, fazer? Perguntei.
Hoje mesmo, disse, cortarei a minha, como farás com a tua, se nosso argumento vier
a morrer e nos revelarmos incapazes de lhe dar lume e vida. De minha parte, se eu estivesse
em teu lugar e o argumento me escorregasse por entre os dedos, faria um juramento à
feição dos Argivos, de não deixar crescer os cabelos enquanto não vencesse em luta franca
a proposição de Símias e Cibete.
Mas, como se costuma dizer, objetei-lhe, contra dois nem Hércules aguenta.
Então, chama-me em teu auxílio, enquanto é dia; serei o teu Iolau.
Bem, chamarei, lhe respondi; porém não na qualidade de Herácles: Iolau é que vai
chamar Herácles em seu auxílio.
Tanto faz, me disse.
XXXIX – Inicialmente, precatemo-nos contra certo perigo.
Qual será? Perguntei.
Para não ficarmos misólogos, disse, como outros ficam misantropos. O que de pior
pode acontecer a qualquer pessoa é tornar-se inimigo da palavra. A misologia e a
misantropia têm a mesma origem. O ódio aos homens nasce do excesso de confiança sem
razão de ser, quando consideramos alguém fiel, sincero e verdadeiro, e logo depois
descobrimos que se trata de pessoa corrupta e desleal, e depois outra mais nas mesmas
condições. Vindo isso a repetir-se várias vezes com o mesmo paciente, principalmente se se
tratar de amigos íntimos e companheiros de alto crédito, depois de decepções seguidas,
acaba essa pessoa por odiar os homens e acreditar que ninguém é sincero. Nunca observaste
que é assim mesmo que as coisas se passam.
Sem dúvida, respondeu.
E não é isso vergonhoso? Continuou. Pois é claro que esse indivíduo procura o
convívio com seus semelhantes sem conhecer devidamente a natureza humana, pois se
dispusesse de alguma experiência nas suas relações com eles, teria compreendido como é
realmente o mundo, isto é, que são poucos os indivíduos inteiramente bons ou maus de
todo, e que a maioria constitui o meio-termo.
Como assim? Perguntou.
É o mesmo que acontece, prosseguiu, com as pessoas excessivamente baixas ou
excessivamente altas. Julgas que pode haver nada mais raro do que encontrarmos um
homem muito grande ou muito pequeno, ou um cão, ou seja o que for? O mesmo se diga do
veloz e do lento, do feio e do belo, do branco e do preto. Ou não percebeste que em tudo
isso os extremos são raros e pouco numerosos, e os da mediania, extremamente freqüentes
e em grande número?
Perfeitamente, respondi.
E não te parece, continuou, que se se organizasse um concurso de maldade, os
primeiros se apresentariam em número muito reduzido?
É muito provável, respondi.
Sim, muito provável, continuou. Porém não é sob esses aspecto que os argumentos se
parecem com os homens. Neste passo não fiz senão seguir tua orientação. A semelhança
consiste no seguinte: quando se admite a exatidão de um argumento, sem ser-se versado na
arte da dialética, pode acontecer que logo depois ele nos pareça falso, às vezes com
fundamento, outras vezes sem nenhum, e depois mais outro e mais outra da mesma
natureza. Como sabes, é o que se verifica com os disputadores de razões contraditórias, que
acabam por considerar-se os maiores sábios, por serem os únicos a reconhecer que nada há
de são e firme, nem nas coisas, nem no raciocínio, encontrando-se tudo, em verdade, em
permanente agitação, tal como se dá com as águas do Euripo, sem permanecer nada, um só
instante, no mesmo estado.
É muito certo o que dizes, observei.
E se, de fato, existe raciocínio verdadeiro e estável, capaz de ser compreendido, não
seria de lastimar, Fedão, no caso de ouvir alguém esses argumentos que ora parecem
verdadeiros ora falsos, em vez de inculpar-se ou à sua própria incapacidade, acabasse por
irritar-se e comprazer-se em tirar de si a culpa para lançar no raciocínio, e passar, daí por
diante, o resto da vida a odiá-lo e a depreciá-lo, com o que só alcançaria privar-se da
verdade e do conhecimento das coisas?
Por Zeus, lhe disse; seria, de fato grande lástima.
XL – Assim, continuou, de início precisamos acautelar-nos contra semelhante perigo;
não permitamos o ingresso em nossa alma da idéia de que não há nada são em nosso
raciocínio; digamos, isso sim, que nós é que ainda não estamos suficientemente sãos, mas
que devemos esforçar-nos para alcançar esse desiderato, tu e os demais, por causa da vida
que ainda tendes pela frente; eu, por motivo, justamente, da morte. Receio muito que , neste
momento em que a morte é tudo, não me haja como filósofo ou amigo da sabedoria., como
se dá com os indivíduos muito ignorantes. Estes tais, quando debatem algum tema, não se
preocupam absolutamente de saber como são, de fato, as coisas a respeito de que tanto
discutem, senão em deixar convencidos os circunstantes de suas próprias asserções. Nisso
põem todo o empenho. Eu, também, num ponto apenas, agora, me diferencio deles: não me
esforço por demonstrar aos presentes a verdade do que afirmo, a não ser como acessório,
mas por convencer-me, tanto quanto possível, a mim mesmo. Meu cálculo, companheiro, é
o seguinte; observa quanto o argumento é interesseiro: Se for verdade o que eu disse, só
haverá vantagem em fortalecermos essa convicção; porém se nada mais houver depois da
morte, pelo menos não importunarei os presentes com minhas lamentações no pouquinho
de tempo que ainda me resta para viver. Aliás, esse estado de coisas não vai durar muito, o
que seria mau; acabará dentro de pouco. Preparado desse modo, Símias e Cebete,
continuou, é que aceitou a discussão. Quanto a vós outros, se me aceitardes um conselho,
concedei pouca atenção a Sócrates, porém muito mais a verdade; se vos parecer que há
verdade no que eu digo, concordai comigo; caso contrário, resisti quanto puderdes,
acautelando-vos para que no meu entusiasmo não venha a enganar-vos e a mim próprio e
me retire como as abelhas, deixando em todos vós o aguilhão.
XLI – Porém prossigamos, continuou. Inicialmente, lembrai-me do que dissestes, se
vos parecer que não me recordo muito bem de tudo, Ou muito me engano, Símias, ou tens
dúvidas de receio de que a alma, apesar de mais bela e divina do que o corpo, pereça antes
deste, por ser uma espécie de harmonia. Cebete terá admitido que a alma é mais durável do
que o corpo, mas que ninguém pode saber se depois de gastar sucessivamente muitos
corpos, não acabará também por desaparecer, quando abandonar o último corpo, vindo a ser
isso, precisamente, a morte: a destruição da alma, visto não parar nunca o corpo de morrer.
Não é isso mesmo, Símias e Cebete, o que precisamos examinar?
Ambos confirmaram a pergunta.
E os argumentos anteriores, prosseguiu, aceitai-os por junto, ou admitis alguns e
rejeitai outros?
Alguns, sim, responderam, outros não.
E que dizeis, então, continuou, daquilo do começo de que aprender é recordar, e que
se for assim, a nossa alma terá de existir em alguma parte, antes de vir a ficar presa ao
corpo?
Quanto a mim, falou Cebete, convenceste-me à maravilha com tua exposição, não
havendo outro argumento que até agora me tivesse despertado maior entusiasmo.
Comigo, falou Símias, dá-se a mesma coisa, sendo difícil de conceber que eu venha a
mudar de opinião.
Então, falou Sócrates: No entanto, forasteiro de Tebas, é o que terás de fazer, se
continuares a dizer que a harmonia é algo composto, e a alma, uma espécie de harmonia
resultante da tensão dos elementos constitutivos do corpo. Pois decerto não te permitirás
afirmar que a harmonia, sendo um composto, é anterior aos elementos de que é formada.
Ou afirmarás isso mesmo?
De forma alguma, Sócrates, respondeu.
E não percebes, continuou, que é justamente o que se dá ,quando declaras que a alma
existia antes de ingressar no corpo do homem e de lhe assumir a forma, porém é composta
de elementos que até então não existiam? Harmonia não é o que afirmas em tua
comparação; ao contrário: primeiro existem a lira, as cordas e os sons, sem nenhuma
harmonia. Esta é a última a formar-se, como é também a que desaparece mais cedo. De que
modo porás em consonância esta asserção com o que disseste antes?
Não há jeito, respondeu Símias.
No entanto, prosseguiu, se é preciso haver consonância, é quando se trata de
harmonia.
Sem dúvida, observou Símias.
Tuas proposições são desarmônicas, disse. Por conseguinte, qual delas escolhes: a de
que aprender é recordar ou a de que a alma é a harmonia?
Sobre todos os pontos, Sócrates, eu prefiro a primeira, porque a outra foi aceita sem
demonstração, por parecer-me verossímil e algum tanto conveniente, razão de admiti-la a
maioria dos homens. No entanto, estou certo de que as demonstrações nessas comparações
não passam de impostura, capazes de iludir-nos se não tomarmos as devidas precauções,
em geometria com em tudo mais. Mas o argumento relativo ao conhecimento e à
reminiscência se baseia num princípio digno de aceitação, pois foi asseverado que nossa
alma existe antes mesmo de ingressar no corpo, como o exige tua relação com a essência
daquilo que denominamos O que é. Ora, essa proposição, conforme estou convencido, foi
por mim adotada com argumentos muito sólidos. Daí, ver me forçado, ao que parece, a não
permitir que nem eu, nem ninguém afirme que a alma é harmonia.
XLII – E o seguinte, Símias, perguntou, como te parece: és de opinião que a
harmonia, ou qualquer outro composto, poderá proceder de maneira diferente da dos
elementos se que é feito?
De forma alguma.
Como também não poderá, segundo penso, fazer ou sofrer o que quer que seja que
não façam ou sofram aqueles elementos.
Concordou.
É que não compete à harmonia conduzir os elementos que a compõem, porém seguilos.
Declarou-se também de acordo.
Logo, de nenhum jeito a harmonia poderá mover-se ou soar, ou fazer seja o que for
em contrário dos elementos?
Não compreendo, disse.
Pois não é certo que se ela estiver mais harmonizada ou em grau maior, a admitirmos
que seja possível semelhante hipótese, tanto mais harmonizada será e em maior grau, e se
estiver menos e em grau menor, será menos harmonizada e em grau menor?
Perfeitamente.
E da alma, justificar-se-á dizer a mesma coisa, que revela diferença, embora mínima,
em ser mais alma e em grau maior do que outra, ou menos alma e em grau menor, nisso,
justamente, de ser alma?
Nunca dos nuncas, respondeu.
Passemos adiante, continuou, por Zeus! De uma alma não dizemos que é dotada de
razão e de virtude, e que é boa, e de outra, pelo contrário, que é destruída de senso, viciosa
e má? E não estão certos os que afirmam semelhante proposição?
Certíssimo, respondeu.
Sendo assim, os que admitem que a alma é harmonia, como explicarão a existência
dessas qualidades na alma, a saber, a virtude e o vício? Dirão, porventura, que se trata de
uma harmonia ou desarmonia de outra espécie? Que uma delas, a boa, foi harmonizada e
que, por ser harmonia, possui em si mesma essa modalidade de harmonia, enquanto a outra,
por não estar harmonizada, carece absolutamente de harmonia?
Não sei o que responda, falou Símias; porém quero crer que o adepto dessa doutrina
se expressaria mais ou menos nesses termos.
No entanto, num ponto já ficamos de acordo, continuou: que nenhuma alma é mais
alma ou menos alma do que outra, o que eqüivale a aceitar que nenhuma harmonia poderá
ser mais harmonia ou maior – ou o inverso – do que outra, não é verdade?
Perfeitamente.
Ora, se a harmonia não admite graus, não se concebe, também, que possa ficar mais
ou menos harmonizada. Não é isso mesmo?
Certo.
Mas a harmonia que não for nem mais harmonizada nem menos, poderá participar em
grau diferente da harmonia, ou sempre o fará na mesma proporção?
Na mesma.
Sendo assim, a alma, uma vez que não será isso mesmo, alma, nem mais nem menos,
do que outra, também não poderá ser mais ou menos harmonizada.
Exato.
Donde vem que não participará em grau maior nem da harmonia nem da desarmonia.
Não, de fato.
Nessas condições, ainda, como poderia uma alma participar em grau maior ou menor
do que outra, da virtude ou do vício, se o vício for desarmonia e a virtude, harmonia?
Não é possível.
Logo, Símias, se bem considerarmos, nunca a alma poderá participar do vício, se ela
for, de fato, harmonia, pois a harmonia, evidentemente, sendo sempre de maneira perfeita o
que é, a saber, harmonia, não participará da desarmonia.
Não, de fato.
Como não poderá a alma, por ser totalmente alma, participar do vício.
Como o poderia, de acordo com o que dissemos antes?
Como decorrência, portanto, de nosso argumento anterior, as almas de todos os seres
vivos são igualmente boas, se forem, por natureza, igualmente almas.
É também o que eu penso, Sócrates, respondeu.
E parecer-te-ia também certa a explicação, continuou, e que nosso argumento viria a
parar nisso, se fosse verdadeira a hipótese de que a alma é harmonia?
De forma alguma, respondeu.
XLII – E agora, falou, de tudo o que há no homem, não dirás ser a alma, justamente,
que domina, máxime quando dotada de prudência?
É o que diria, sem dúvida.
De que modo: condescendendo com os apetites do corpo ou, de preferência, opondolhes
resistência? O que digo é o seguinte: se o corpo sente calor ou sede, ela o puxa para
trás, para não beber, e se tem fome, para não comer, e numa infinidade de situações como
essa vemos a alma opor-se às paixões do corpo. Ou não?
Perfeitamente.
Por outro lado, não admitimos antes que, no caso de ser harmonia, nunca poderia
ficar a alma em dissonância com as tensões, os relaxamentos e as vibrações de seus
elementos componentes, e que, pelo contrário, ela sempre os seguiria, sem nunca dirigi-los?
Admitimos isso, por que não?
E agora? O que verificamos não é que ela faz precisamente o contrário, dirigindo
todos os elementos de que a imaginamos composta, opondo-se-lhes em quase tudo durante
a vida inteira e dominando-os de mil modos, às vezes por meio de castigos violentos e
dolorosos, do âmbito da ginástica e da medicina, às vezes por meios suasórios, com
ameaças ou admoestações, em franco diálogo com os apetites, as cóleras e os temores? É
como imagina Homero isso mesmo na Odisséia quando diz que Odisseu.
Bate, indignado, no peito e a si próprio desta arte se exprime:
Sê, coração, paciente, pois vida mais baixa e mesquinha já suportaste.
Pensas, então, que, ao compor essa passagem, ele considerava a alma uma espécie de
harmonia, capaz de ser dirigida pelas disposições do corpo, ou o contrário, própria para
dirigi-lo e dominá-lo, por ser algo, justamente, muito mais divino do que uma simples
harmonia?
Por Zeus, Sócrates, é também o que eu penso.
Por conseguinte, meu caro, de jeito nenhum ficará bem para nós afirmar que a alma é
uma espécie de harmonia. Pois desse modo, ao que parece, não nos poríamos nem de
acordo com Homero, o divino poeta, nem mesmo conosco.
É muito certo, disse.
XLIV – Muito bem, falou Sócrates; tudo indica que Harmonia, a divindade tebana, já
se nos tornou propícia. E agora, Cebete, continuou, de que jeito aplacaremos Cadmo, e com
que argumentos?
Tenho certeza de que tu mesmo os encontrarás falou Cebete. Tua argumentação a
respeito da harmonia foi notável; ultrapassou de muito minha expectativa. Quando Símias
te opôs suas dificuldades, eu tinha quase certeza que não seria possível refutar a teoria por
ele apresentada. Daí minha grande surpresa, por ver que ela não resistiu ao primeiro assalto
da tua. Nada me admiraria, por conseguinte, se acontecesse a mesma coisa com o
argumento de Cadmo.
Não fales demais, caro amigo, interpelou-o Sócrates, para que algum mau-olhado não
venha desarticular nosso próximo discurso. Porém deixemos isso a cargo da divindade; o
que nos compete é congregar esforços, como aconselha Homero, para ver o que disseste
tem algum valor. Resume-se no seguinte o que procuras: Exiges provas de que nossa alma é
imperecível e imortal, para que o filósofo que esteja no ponto de morrer se encoraje e
acredite que depois da morte se sentirá muito melhor no outro mundo do que se vivesse de
maneira diferente até o fim, e não se mostre corajoso por modo estulto e irracional. A
demonstração de que a alma é algo forte e semelhante à divindade, e que existia antes de
nos tornamos homens, não impede, segundo disseste, que tudo isso não prova que ela seja
mortal, mas tão-somente que é relativamente durável e que antes poderá ter vivido algures
um tempo indefinido e aprendido e praticado muita coisa. Mas nem por isso será imortal.
Seu ingresso no corpo poderá ser o começo de sua própria destruição, uma espécie de
doença. Assim, cansada de carregar o fardo desta vida, acabará por desaparecer no que
denominamos morte Conforme dizes, é indiferente ingressar ela no corpo uma só vez ou
muitas, no que respeite ao medo que todos nós manifestamos. Aliás, justifica-se esse medo,
a menos que se trate de pessoa insensata, por não estarmos em condições de demonstrar que
a alma é imortal. Esse é, mais ou menos, Cebete, o sentido de tuas palavras. De caso
pensado, insisto no mesmo argumentos, para que não nos escape nenhuma particularidade e
possas, caso queiras, acrescentar ou tirar alguma coisa.
Ao que Cebete respondeu: Por enquanto, nada tenho a acrescentar ou a retirar; foi
isso mesmo que eu disse.
XLV – Durante algum tempo Sócrates se conservou calado, como se refletisse a sós
consigo. Depois continuou: O problema com que te ocupas, Cebete, é de suma importância;
precisaremos investigar a fundo a natureza do nascimento e da morte. Se ter parecer, vou
contar-te o que se passou comigo nesse particular. Depois, se achares o que eu disser de
alguma utilidade para reforçar a tua tese, podes utilizá-los como bem entenderes.
Não desejo outra coisa, falou Cebete.
Então, ouve o que passo a relatar-te. O fato, Cebete, é quando eu era moço sentia-me
tomado do desejo irresistível de adquirir esse conhecimento a que dão o nome de História
Natural. Afigurava-se-me, realmente, maravilhoso conhecer a causa de tudo, o porquê do
nascimento e da morte de cada coisa, e a razão de existirem. Vezes sem conta me punha a
refletir em todos os sentidos, inicialmente a respeito de questões como a seguinte: Será
quando o calor e o frio passam por uma espécie de fermentação, conforme alguns afirmam,
que se formam os animais? É por meio do sangue que pensamos? Ou do ar? Ou do fogo?
Ou nada disso estará certo, vindo a ser o cérebro que dá origem às sensações da vista, do
ouvido e do olfato, das quais surgiria a memória e a opinião, e, da memória e da opinião,
uma vez, tornadas calmas, nasceria o conhecimento? De seguida, ocupei-me com a
corrupção das coisas e com as modificações do céu e da terra, para chegar à conclusão de
que nada de proveitoso se tirava de minha inaptidão para considerações dessa natureza.
Vou dar-te uma prova eloquente disso mesmo. Para as coisas que, segundo meu próprio
parecer e de outras pessoas, eu conhecia bem, a tal ponto me deixaram cego semelhantes
especulações, que cheguei a desaprender até mesmo o que antes eu presumia conhecer,
entre outras, por exemplo, por que o homem cresce. Até então, eu imaginava ser evidente
para toda gente que o homem cre3sce porque come e bebe; pois quando, pela alimentação,
a carne se junta à carne e o osso ao osso, e, sempre de acordo com o mesmo processo, as
demais partes do corpo são acrescidas de elementos afins, a massa que antes era pequena se
torna volumosa, do que resulta ficar grande o homem pequeno. Era assim que eu pensava.
Não te parece razoável?
Sem dúvida, falou Cebete.
Reflete também no seguinte: Sempre considerei suficiente, quando alguém parecia
alto ao lado de outra pessoa de pequena estatura, dizer que a ultrapassava de uma cabeça, o
mesmo acontecendo com um cavalo em confronto com o outro. Mais claramente, ainda: o
número dez se me afigurava maior do que o número oito por ajuntar-se dois a este último,
como o cúbito duplo seria maior do que o simples por ultrapassá-lo de metade.
E agora, perguntou Cebete, como te parece?
Como estou longe, por Zeus, continuou, de imaginar que conheço a causa de tudo
isso! Pois nunca chego a compreender, no caso de acrescentar uma unidade a outra, se é a
unidade a que esta última foi acrescentada que se tornou duas, ou se foi a acrescentada,
juntamente com a primeira, que ficaram duas, pelo fato de uma ter sido acrescentada à
outra. Não podia entender que, estando separadas, cada uma era uma unidade, não duas, e
que o fato de ficarem juntas foi a causa de se tornarem duas, a saber, por terem sido postas
lado a lado. Do mesmo modo, não conseguia convencer-me de ser essa a causa de tornar-se
duas a unidade, a saber: a divisão. Seria precisamente o oposto do que antes nos ensejara
duas unidades: naquela ocasião, foi isso conseguido por se aproximarem as duas e ficarem
lado a lado; agora, porém, a causa foi a separação e o afastamento delas duas. Assim,
também, não acredito saber como se gera a unidade, nem, para dizer tudo, como nasce ou
morre ou existe seja o que for, a aceitarmos o princípio desse método. Prefiro arriscar-me
noutra direção; esse caminho não me serve.
XLVI – Ao ouvir, porém, certa vez alguém ler num livro de Anaxágora – segundo
dizia – que a mente é organizadora e causa de tudo, fiquei satisfeitíssimo com semelhante
causa, por parecer-me de algum modo, muito certo que a mente fosse a causa de tudo,
tendo imaginado que, a ser assim mesmo, como coordenadora do Universo, a mente
disporia cada coisa particular pela melhor maneira possível. Se alguém quisesse explicar a
causa de como alguma coisa nasce ou morre ou existe, teria apenas de descobrir qual é a
melhor maneira para ela de existir, sofrer ou produzir seja o que for. Segundo esse critério,
só o que importa ao homem considerar, tanto em relação a si mesmo como a tudo o mais, é
o modo melhor e mais perfeito. Desse jeito, ficaria necessariamente conhecendo o pior, por
ambos serem objeto do mesmo conhecimento. Depois dessas reflexões, alegrei-me ao
pensar que havia encontrado em Anaxágoras um professor da causa das coisas como havia
muito eu desejava, que começaria por dizer-me se a Terra é chata ou redonda, e depois me
explicaria a causa e a necessidade dessa forma, recorrendo sempre ao princípio do melhor,
com demonstrar que para a Terra era melhor mesmo ser assim. No caso de dizer que a
Terra se encontra no centro, explicaria porque motivo é melhor para ela ficar no centro. Se
ele me demonstrasse esse ponto, decidir-me-ia, de uma vez por todas, a não procurar outra
espécie de causa. O mesmo faria com relação ao Sol, à Lua, e aos outros astros, no que diz
respeito à sua velocidade relativa, o ponto de conversão e demais acidente a que estão
sujeitos, bem como a razão de ser melhor para cada um deles fazer o que fazem ou sofrer o
que sofrem. Um momento sequer não podia admitir que, depois de afirmar que tudo está
ordenado pela mente, indicasse outra causa que não a de ser melhor para tudo proceder
como procedem. Ao atribuir uma causa particular a cada coisa e ao conjunto, estava certo
de que no mesmo ponto demonstraria o que para cada um era melhor e em que consistia
para todos o bem comum. Por nada do mundo abriria mão dessa esperança. Por isso,
havendo tomado do livro com sofreguidão, li-o de um fôlego, para poder ficar conhecendo,
o mais depressa possível, tanto o melhor com o pior.
XLVII – Porém, não demorei, companheiro, a cair do alto dessa maravilhosa
expectativa, ao prosseguir na leitura e verificar que o nosso homem não recorria à mente
para nada, nem a qualquer outra causa para a explicação da ordem natural das coisas, senão
só o ar, ao éter, à água, e uma infinidade mais de causas extravagantes. Quis parecer-me
que com ele acontecia como com quem começasse por declarar que tudo o que Sócrates faz
é determinado pela inteligência, para depois, ao tentar apresentar a causa de cada um dos
meus atos, afirmar, de início, que a razão de encontrar-me sentado agora neste lugar é ter o
corpo composto de ossos e músculos, por serem os ossos duros e separados uns dos outros
pelas articulações, e os músculos de tal modo constituídos que podem contrair-se ou
relaxar-se, e por cobrirem os ossos, juntamente com a carne e a pele que os envolvem.
Sendo móveis os ossos em suas articulações, pela contração ou relaxamento dos músculos
fico em condições de dobrar neste momento os membros, razão de estar agora sentado aqui
com as pernas flectidas. A mesma coisa se daria, se a respeito de nossa conversação
indicasse como causa a voz, o ar, os sons, e mil outras particularidades do mesmo tipo,
porém se esquecesse de mencionar as verdadeiras causas, a saber: pelo fato de haverem
acordado os Atenienses em condenar-me, pareceu-me, também, melhor ficar sentado aqui,
e mais justo submeter-se neste local à pena cominada. Sim, é isso, pelo cão! Pois de muito,
quero crer, este músculos e estes ossos estariam em Mégara ou entre o Beócios, movidos
pela idéia do melhor, se não me parecesse muito mais justo e belo, em vez de evadir-me e
fugir, submeter-me à pena que a cidade me impusera. É o cúmulo do absurdo dar o nome
de causa a semelhantes coisas. Se alguém dissesse que sem ossos e músculos e tudo o mais
que tenho no corpo eu não seria capaz de pôr em prática nenhuma resolução, só falaria
verdade. Porém afirmar que é por causa disso que eu faço o que eu faço, e que, assim
procedendo, me valho da inteligência, porém não em virtude da escolha do melhor, é levar
ao extremo a imprecisão da linguagem e revelar-se incapaz de compreender que uma coisa
é a verdadeira causa, e outra, muito diferente, aquilo que sem a causa jamais poderá ser
causa. A meu parecer, é justamente isso o que faz a maioria dos homens, como que a tatear
nas trevas, empregando um termo impróprio e o designando como causa. Daí, envolver um
deles a Terra num turbilhão e deixá-la imóvel debaixo do céu, enquanto outro a concebe à
maneira de uma gamela larga, que tem como suporte o ar. Quanto à potência que
determinou a atual disposição das coisas pela melhor maneira, nem a procuram nem
concebem que seja dotada de algum poder superior, por se julgarem capazes de encontrar
algum Atlante mais forte e mais imortal do que ela, para manter coeso o conjunto das
coisas. Mas que o bem, de fato, e a necessidade abarquem e liguem todas as coisas, é o que
não admitem de nenhum modo. De minha parte, para ficar sabendo como atua semelhante
causa, de muito bom grado me faria discípulo de quem quer que fosse. Mas, uma vez que
não a conheço nem me acho em condições de descobri-la por mim próprio nem de aprender
com outros o que ela seja: queres que te faça uma descrição completa, Cebete, de como
empreendi o segundo roteiro de navegação para a investigação da causa?
Não há o que eu mais deseje, respondeu.
XLVIII – De seguida, continuou, já cansado de considerar as coisas, houve que era
preciso precatar-me para não acontecer comigo o que se dá com as pessoas que observam e
contemplam o Sol quando há eclipse: por vezes perdem a vista, se não olham apenas para a
imagem dele na água ou nalgum meio semelhante. Pensei nessa possibilidade e receei ficar
com alma inteiramente cega, se fixasse os olhos nas coisas e procurasse alcançá-las por
meio de um dos sentidos. Pareceu-me aconselhável acolher-me ao pensamento, para nele
contemplar a verdadeira natureza das coisas. É muito provável que minha comparação
claudique um pouco, pois estou longe de admitir que quem considera as coisas por meio do
pensamento só contemple suas imagens, o que não se dá com que as vê na realidade. De
qualquer modo, meu caminho foi esse. Em cada caso particular, parto sempre do princípio
que se me afigura mais forte, considerando verdadeiro o que com ele concorda, ou se trate
de causas ou do que for, e como falso o que não afina com ele. Vou expor-te com maior
clareza minha maneira de pensar, pois quer parecer-me que não a apreendeste muito bem.
Não muito, por Zeus, respondeu Cebete.
XLIX – No entanto, prosseguiu, o que eu digo não é novo, mas o que sempre afirmei,
tanto noutras ocasiões como em nossa argumentação recente. Vou tentar mostrar-te a
natureza da causa por mim estudada, voltando a tratar daquilo mesmo de que tenho falado
toda a vida, para, de saída, admitir que existe o belo em si, e o bem, e o grande, e tudo o
mais da mesma espécie. Se me aceitares esse ponto e concordares que existem, tenho
esperança de mostrar-te a causa e provar a imortalidade da alma.
Admite que já concedi tudo, falou Cebete, para não atrasares ainda mais tua
exposição.
Então, considera o que se segue, continuou, para ver se estás de acordo comigo. O
que me parece é que se existe algo belo além do belo em si, só poderá ser belo por
participar do belo em si. O mesmo afirmo de tudo o mais. Admites essa espécie de causa?
Admito, respondeu.
Então, já não compreendo, continuou, as outras causas, de pura erudição, nem
consigo explicá-las. E se, para justificar a beleza de alguma coisa, alguém me falar de sua
cor brilhante, ou da forma, ou do que quer que seja, deixo tudo o mais de lado, que só
contribui para atrapalhar-me, e me atenho única e simplesmente, talvez mesmo com uma
boa dose de ingenuidade, ao meu ponto de vista, a saber, que nada mais a deixa bela senão
tão só a presença ou comunicação daquela beleza em sim, qualquer que seja o meio ou
caminho de se lhe acrescentar. De tudo o mais não faço grande cabedal; o que digo é que é
pela beleza em si que as coisas belas são belas. Na minha opinião, essa é a maneira mais
certa de responder, tanto a mim mesmo como aos outros. Firmando-me nessa posição,
tenho certeza de não vir a cair e de que tanto eu como qualquer pessoa em idênticas
circunstâncias poderá responder com segurança que é pela beleza que as coisas belas são
belas. Não te parece?
Sem dúvida.
Como é por meio da grandeza que o grande é grande e o maior é maior, e pelo da
pequenez que o pequeno é pequeno.
Certo.
Logo, também não concordarias com que dissesse que um homem é maior do que
outro uma cabeça, nem que é menor é também uma cabeça menor do que o primeiro, porém
persistirias na defesa de tua proposição, de que na tua maneira de pensar tudo o que é
grande só pode ser grande por causa da grandeza, nada mais, sendo esta, a grandeza, que
deixa grandes as coisas, como o pequeno só será pequeno por causa da pequenez, vindo a
ser isto mesmo, a pequenez, que deixa pequeno o pequeno, de medo, quero crer, no caso de
afirmares que um homem é maior ou menor do que o outro uma cabeça, que pudesse
alguém objetar-te, primeiro, que é pela mesma coisa que o maior é maior e o menor é
menor; depois, que, sendo pequena a cabeça, é por meio dela que o maior é maior,
verdadeiro disparate: vir a ser alguém grande por causa do que é pequeno. Não te arreceias
disso?
Sem dúvida, respondeu rindo Cebete.
Como também recearias dizer, continuou, que dez e dois mais do que oito, sendo
essa a razão de ultrapassá-lo, não pela quantidade e por causa da quantidade, como o cúbito
maior é uma metade maior do que o simples, não por causa da grandeza. O perigo é o
mesmo.
Perfeitamente, respondeu.
E então? No caso de uma unidade ser acrescentada a outra, não terás medo de dizer
que essa adição foi a causa de formar-se o dois, ou, na hipótese de ser a unidade cortada ao
meio, que foi a divisão? E não protestarias em altas vozes que não sabes como uma coisa
possa transformar-se noutra, a não ser pela participação da essência própria da natureza que
ela própria participa e que, no caso concreto da geração do dois, não saberás informar outra
causa se não for a participação da dualidade? Dessa dualidade é que terá de participar o que
tiver de ficar dois, como participará da unidade, tudo o que vier a ser um. Quanto às
divisões e acrescentamentos e demais sutilezas do mesmo gênero, mandarás todas elas
passear, deixando o cuidado da resposta a quem for mais sábio do que tu. Quanto a ti, de
medo, como se diz, da própria sombra e de tua inexperiência, e firmado naquele
pressuposto seguríssimo, responderias daquele jeito. E no caso de investir o adversário
contra tua própria tese, não lhe darias atenção nem responderias a ele sem primeiro
verificares se as consequências de seu postulado são dissonantes ou harmônicas. E na
hipótese de fundamentar tua proposição, fá-lo-ias da mesma forma, com admitir um novo
princípio, que se te afigurasse mais valioso, até conseguires resultado satisfatório. Ao
contrário dos disputadores, não confundireis com suas consequências o princípio em
discussão, caso quisesses alcançar alguma realidade. Com esta, ao que parece, é que
nenhum deles se preocupa no mínimo. Com todo o seu saber, o que fazem é baralhar tudo,
muitos anchos de si mesmos. Tu, porém, se te incluis entre os filósofos, farás o que te disse.
Falaste a pura verdade, disseram a um só tempo, Símias e Cebete.
Equécrates – Por Zeus, Fedão, nem lhe seria possível expressar-se de outro modo,
pois me parece de clareza meridiana semelhante explanação, até mesmo para quem for
dotado de parco entendimento.
Fedão – Perfeitamente, Equécrates; todos os circunstantes foram desse mesmo
parecer.
Equécrates – Que é também o de todos nós que não participamos do colóquio e te
ouvimos neste momento.
L – E depois disso, o que disseram?
Fedão – Segundo creio, depois de lhe concederem esse ponto e de admitirem a
existência real das idéias e que é da sua participação que as diferentes coisas recebem
determinação particular, perguntou Sócrates o seguinte: Se é assim que falas, continuou,
quando dizes que Símias é maior do que Sócrates porém menor do que Fedão, não equivale
isso a dizer que em Símias se encontram ambas: grandeza e pequenez?
Sem dúvida.
No entanto, admites que a expressão: Símias ultrapassa Sócrates, não deve ser tomada
no sentido literal; não é por sua própria natureza, por ser Símias, que ele o ultrapassa, mas
por sua grandeza ocasional, como não ultrapassa Sócrates por este ser Sócrates, mas pela
pequenez deste, no que entende com a grandeza do outro.
Certo.
Como também ele não será ultrapassado por Fedão, por este ser Fedão, mas em
virtude da grandeza de Fedão em comparação com a pequenez de Símias.
Isso mesmo.
Desse modo, aplica-se a Símias, a um só tempo, o apelido de grande e de pequeno,
por estar ele a meio caminho dos dois, excedendo com sua grandeza a pequenez de um
deles e reconhecendo no outro a grandeza que vence sua pequenez. Depois, acrescentou
sorrindo: Minha linguagem parece de escrivão; mas o que eu disse está certo.
Concordou.
Falei desse jeito por desejar que compartilhes de minha maneira de pensar. O que me
parece, é que tanto a grandeza em si mesma não deseja ser grande e pequena ao mesmo
tempo, como a própria grandeza presente em nós não aceita jamais aceita a pequenez nem
consente em ser ultrapassada. De duas uma terá de ser: ou ela foge e sai do caminho quando
dela aproxima seu contrário, a pequenez, ou, com sua chegada, deixa de existir. O que de
nenhum modo deseja, havendo admitido e recebido a pequenez, sem deixar de ser o que
era, continuou sendo pequeno, ao passo que a grandeza, com ser grande, jamais consente
em ser pequena. O mesmo vale para a pequenez em nós, que nunca se decide a tornar-se
grande ou a ser isso mesmo, o que se também se dá com todos os contrários, enquanto cada
um é o que é, recusam-se a tornar-se e ser ao mesmo tempo o seu contrário, retirando-se ou
desaparecendo quando essa conjuntura se apresenta.
É exatamente assim que eu penso, observou Cebete.
LI – Nesse instante um dos presentes falou, não saberei dizer com segurança quem
tivesse sido: Pelos deuses! Em nossa prática de há pouco não foi dito justamente o oposto
do que é afirmado agora, que do maior nasce o menor, e vice-versa, do menor o maior, e
que essa é, precisamente, a maneira de nascerem os contrários, de seus respectivos
contrários? No entanto, quer parecer-me que afirmaste não ser isso possível.
Sócrates, que se inclinara para melhor ouvi-lo, então falou: A observação é corajosa,
porém não apanhaste bem a diferença entre o que foi dito antes e a presente afirmativa. O
que então dissemos é que a coisa contrário nasce da que lhe é contrária, porém agora que o
contrário jamais admite ser seu próprio contrário, nem em nós nem na natureza. Naquela
ocasião, meu caro, falávamos de coisa que têm contrários; agora, porém tratamos dos
próprios contrários inerentes as coisas, cuja presença empresta a todas a respectiva
designação. Ora, o que afirmamos é que esses contrários, justamente, não admitem
transição de um para outro.
Ao dizer isso, voltou-se para Cebete e lhe falou: Porventura, Cebete, lhe disse,
deixou-te atrapalhado a objeção deste aqui?
Não é o meu caso, respondeu Cebete, conquanto não possa dizer que tudo para mim
esteja claro.
Mas o fato, prosseguiu, é que já assentamos que nunca o contrário pode ser o
contrário de si mesmo.
Sem a mínima restrição, foi a sua resposta.
LII – Então, considera também o seguinte, continuou, para ver se estás de acordo
comigo. Não há alguma coisa a que damos o nome de quente, e outra que denominamos
frio?
Sem dúvida.
E serão, porventura, o mesmo que a neve e o fogo?
Não, por Zeus; nunca afirmei semelhante coisa.
Logo, o quente não é a mesma coisa que o fogo, nem o frio o mesmo que a neve.
Exato.
Mas, estou certo de que também admires que nunca poderá a neve, como neve,
conforme dissemos há pouco, depois de receber o calor, continuar a ser o que era: neve com
calor. Com a aproximação do calor, ou ela se retira ou vem a fenecer.
Perfeitamente.
Tal qual como o fogo: com a chegada do frio, retira-se ou perece; de jeito nenhum,
depois de receber o frio, se atreveria a ser o que antes era: fogo, a um tempo, e frio.
Falaste com muito acerto, observou.
Pode acontecer, continuou, nalguns exemplos desse tipo, que não somente a idéia em
si mesma tenha o direito de conservar eternamente o mesmo nome, como também algo
diferente que, sem ser daquela idéia, apresenta-se, enquanto existe, com sua forma. É
possível que com o seguinte exemplo eu deixe mais claro meu pensamento. O número
ímpar terá de conservar sempre esse nome com o que designamos. Ou não?
Perfeitamente.
Mas, é só com ele que isso acontece – é o que pergunto – ou com mais alguma coisa
que, sem ser, de fato, o ímpar em si mesmo, ao lado do seu próprio nome terá forçosamente
de ser sempre denominado dessa maneira, por ser de tal natureza, que nunca pode dispensar
o ímpar? Com isso, quero referir-me ao que se passa com o conceito da tríade e muitos
outros da mesma espécie. Considera apenas o número três. Não te parece que ele precisará
sempre ser designado, a um só tempo, pelo seu próprio nome e pelo do ímpar, apesar de
não ser o nome ímpar a mesma coisa que três? Seja como for, de tal modo é constituída a
natureza do três, do cinco e de toda uma metade dos números, que apesar de cada um deles
não ser a mesma coisa que o ímpar, sempre terão de ser ímpares. O mesmo se passa com o
dois, o quatro e toda a outra metade dos números, que, sem serem o par, sempre terão de ser
partes. Admites isso ou não?
Como não admitir? Foi a sua resposta.
Presta agora atenção, disse, ao que me disponho a demonstrar. Trata-se do seguinte: é
fora de dúvida que não são apenas os contrários que se excluem reciprocamente, mas todas
as coisas que, sem serem contrárias entre si, não admitem a idéia contrária da que lhes é
própria, à aproximação da qual ou cedem o lugar ou vêm a perecer. Pois já não dissemos
que o número três primeiro deixará de existir ou sofrerá seja o que for, antes de vir a ficar
par, por ser, de fato, o que é, precisamente três?
É muito certo, falou Cebete.
No entanto, continuou, os números dois e três não são contrários entre si.
Nunca.
Logo, não são apenas as idéias contrárias que não admitem a aproximação recíproca;
há outras, também, que não aceitam essa aproximação dos contrários.
É muito certo o que afirmas, respondeu.
LIII – E não acharias bom, continuou, determinarmos, na medida do possível, quais
essas idéias?
Perfeitamente.
Não serão, Cebete, prosseguiu, as que forçam as coisas de que elas se apoderam a
conservar tanto a sua própria forma como a que sempre lhes é contrária?
Que queres dizer com isso?
O que declaramos neste momento. Como muito bem sabes, todas as coisas de que se
apossa a idéia do número três, tanto terão, por força, de ser três como ímpares.
É muito certo.
Ora bem; o que dizemos é que a idéia contrária à forma eu a constitui nunca pode
entrar nela.
Nunca, de fato.
O que a constitui é a idéia do ímpar, não é isso mesmo?
Certo.
Como o seu contrário é a idéia do par.
Sem dúvida.
Sendo assim, no três jamais entrará a idéia de par.
Nunca.
Pelo simples fato de o três não participar do par.
Isso mesmo.
Visto ser ímpar.
Exatamente.
Pois era isso, precisamente, que eu queria determinar: as coisas que, sem serem
contrárias entre si, não admitem o seu contrário. Será o caso do três quem, sem ser o
contrário do par, de forma alguma o aceita, pois ele lhe opõe sempre o seu contrário, como
faz o dois com o ímpar, o fogo com o frio e um infinito mais de exemplos. Dize-me agora
se não concluirias que não é apenas o contrário que não recebe o seu contrário, porém tudo
o que leva a idéia do contrário da coisa que o recebe, não admite nesta o contrário daquilo
que ele leva. Recapitulemos tudo o que dissemos até aqui, pois não há mal em ouvir a
mesma coisa várias vezes: O número cinco não admite a idéia de par, nem o dez, o dobro
daquele, a de ímpar. Por sua vez, o duplo é o contrário de outra coisa, porém não admite a
idéia do ímpar, como também não a admitem os números sesquiálteros, o meio e outras
frações do mesmo tipo, nem a idéia de todo, de terço e de tudo o mais da mesma natureza,
se é que me acompanhas e estás de acordo comigo.
Não somente estou de inteiro acordo, disse, como te acompanho.
LIV – Então, repete tudo isso do começo, continuou, porém não me responda com
minhas próprias palavras, mas de outra forma, tomando-me como modelo. O que digo é
que, além da resposta certa que eu apresentei no começo, encontrou outra de não menor
confiança no que ficou dito depois. De fato, se me perguntasses: Que precisas haver no
corpo para que ele fique quente? Não te daria a resposta, certa, sem dúvida, porém ingênua,
que é o calor, porém outra muito mais aprimorada, com base em nossa exposição anterior:
fogo. Como também se me perguntasses o que precisa haver no corpo, para que ele adoeça,
não responderia que é a doença, porém alguma febre. E no caso de perguntares o que
precisa haver num número para ser ímpar, não me referira a imparidade, mas à unidade, e
assim sucessivamente. Agora vê se apanhaste bem meu pensamento.
À maravilha, respondeu.
Então, me digas, continuou, que precisa haver no corpo para que ele viva?
Alma, respondeu.
E sempre terá de ser assim?
Por que não? Foi sua resposta.
Logo, tudo o de que a alma se apodera, a isso ela dá vida?
É o que ela faz, de fato, respondeu.
E porventura haverá alguma coisa contrária à vida? Ou não há?
Sem dúvida, respondeu.
Que é?
A morte.
De onde vem, que a alma nunca poderá aceitar o contrário daquilo que ela sempre
traz consigo; é o que se conclui de tudo o que dissemos até agora.
Conclusão certíssima, respondeu Cebete.
LV – E então? O que não admite a idéia do par, que nome lhe demos agora mesmo?
Ímpar, respondeu.
E o que não recebe o justo, ou não recebe o harmônico?
Desarmônico, disse, ou injusto.
Muito bem. E o que não recebe a morte, como denominaremos?
Imortal, foi a sua resposta.
Ora, a alma não recebe a morte.
Não.
A alma é, pois, imortal?
Imortal.
Muito bem. Podemos afirmar, por conseguinte, que isso ficou demonstrado? Ou
como te parece?
Ficou demonstrado à saciedade, Sócrates.
E agora, Cebete, continuou: se o ímpar fosse indestrutível por força das coisas, não
teria também de ser indestrutível o três?
Como não?
E se o não-quente também fosse por necessidade indestrutível, sempre que alguém
aproximasse da neve o fogo, não se retiraria a neve intacta e sem derreter-se? Não
pereceria, é claro, e por mais que ficasse exposta ao calor, não o receberia.
É muito certo, respondeu.
Como também, segundo penso, se o não-frio fosse indestrutível por natureza, e
alguém aproximasse do fogo o frio, jamais o fogo se apagaria ou viria a fenecer, porém
afastar-se-ia incólume.
Necessariamente, respondeu.
E não será também preciso falarmos nesses mesmo termos no que entende com o
mortal? Se o imortal também for imperecível, a alma, sempre que a morte se aproximar
dela, não poderá morrer; pois de acordo com o que dissemos antes, ela não admitirá a morte
nem virá a morrer, da mesma forma que o três, conforme vimos, nunca poderá ser par, e
com ele o ímpar, nem o fogo ficará frio nem o calor que há no fogo. Porém o que impede –
poderia alguém objetar – que o ímpar, muito embora não fique par à aproximação do par, e
sobre isso, já nos declaramos de acordo, venha, de fato, a perecer, por transformar-se em
par? A quem tal objetasse, não poderíamos responder que não perece, pois o ímpar não é
indestrutível. Porém se isso houvesse sido aceito antes por nós, fora fácil retorquir que à
aproximação do para o ímpar e o três se retiram. Da mesma maneira responderíamos com
respeito ao calor, ao fogo e a tudo o mais. Ou não?
Sem dúvida.
Sendo assim, agora, com relação ao imortal, uma vez admitido por nós dois que
também é imperecível, a alma, terá de ser por força imperecível. Caso contrário,
precisaríamos lançar mão de outro argumento.
Não por causa disso, retorquiu; dificilmente poderia haver que não admitisse a
destruição, se o imortal, com ser eterno, fosse passível de acabar.
LVI – Quanto a Deus, falou Sócrates, ao que suponho, e à idéia da vida e a tudo o
mais que possa haver de imortal, todos estão de acordo em que nunca podem parecer.
Sim, por Zeus, todos os homens, respondeu, e, com maioria de razões, os próprios
deuses.
Era, uma vez que o imortal é imperecível, a alma, sendo imortal, não terá de ser, da
mesma forma, imperecível?
Forçosamente.
Logo, como parece , ao aproximar-se dos homens a morte, o que neles for mortal terá
de perecer, enquanto sua porção imortal cede o lugar à morte e continua sã e incorruptível.
Claro.
É certíssimo, por conseguinte, Cebete, continuou, ser a alma imortal e imperecível, e
existirem realmente nossas almas no Hades.
Enquanto a mim, Sócrates, falou Cebete, nada tenho a objetar contra teus
argumentos, nem o que alegar para não admiti-los. Porém no caso de Símias ou qualquer
outro querer dizer alguma coisa, fará bem em não se conservar calado, pois não sei que
melhor oportunidade do que esta poderá encontrar quem se disponha a falar ou a ouvir seja
o que for a respeito destas questões.
Eu também, falou Símias, não vejo razão para não aceitar o que foi dito. Dada,
porém, a grandeza da matéria e por não confiar muito na fraqueza de matéria e por não
confiar muito na fraqueza humana, sou forçado a declarar que ainda alimento algumas
dúvidas com respeito ao que foi explanado.
Não é só isso, Símias, falou Sócrates como muito bem te exprimiste, até mesmo
nossas proposições iniciais, por dignas de confiança que pareçam, precisam ser
consideradas mais a fundo, e, uma vez suficientemente analisadas, estou certo de que
acompanhareis a argumentação, na medida da capacidade de compreensão do homem, até
que, tudo esclarecido, nada mais tenhais a investigar.
É muito certo o que dizes, respondeu.
LVII – Porém devemos senhores, considerar também o seguinte: se a alma for
imortal, exigirá cuidados de nossa parte não apenas nesta porção do tempo que
denominamos vida, senão o tempo todo em universal, parecendo que se expõe a um grande
perigo quem não atender esse aspecto da questão. Pois se a morte fosse o fim de tudo, que
imensa vantagem não seria para os desonestos, com a morte livrarem-se do corpo e da
ruindade muito própria juntamente com a alma? Agora, porém, que se nos revelou imortal,
não resta à alma outra possibilidade, se não for tornar-se, quanto possível, melhor e mais
sensata. Ao chegar ao Hades, nada mais leva consigo a não ser a instrução e a educação,
justamente, ao que se diz, o que mais favorece ou prejudica o morto desde o início de sua
viagem para lá. O que contam é o seguinte: ou morrer alguém, o demônio que em vida lhe
tocou por sorte se encarrega de levá-lo a um lugar em que se reúnem os mortos para serem
julgados e de onde são conduzidos para o Hades com guias incumbidos de indicar-lhes o
caminho. Depois de terem o destino merecido e de lá permanecerem o tempo indispensável,
outro guia os traz de volta, após numerosos e longos períodos de tempo. Esse caminho não
é o que diz Télefo, de Ésquilo, ao afirmar que o caminho do Hades é simples; a meu ver
nem é simples nem único. Se fosse o caso, seria dispensável guia, pois ninguém se perde
onde a estrada é uma só. O que parece é que ele é cheio de voltas e bifurcações. Digo isso
com base nos ritos sagrados e cerimônias aqui em uso. De qualquer forma, a alma prudente
e moderada acompanha seu guia, perfeitamente consciente do que se passa com ela; mas,
como disse há pouco, a que se agarra avidamente ao corpo esvoaça durante muito tempo
em torno dele e do mundo visível, e depois de grande relutância e de sofrimentos sem
conta, é por fim arrastada dali, à força e com dificuldade pelo demônio incumbido de
conduzi-la. Uma vez alcançado o lugar em que se encontram, outras almas, a que se acha
impura pela prática do mal, de homicídios injustos ou de crimes semelhantes, irmãos
daqueles e iguais aos que soem praticar almas irmãs, de umas alma como essa todas se
afastam, evitam-na, não havendo guia nem companheiro de jornada que com ela se
associe. Tomada de grande perplexidade, vagueia por todos os lugares até escoar-se certo
tempo, depois do que a arrasta a Necessidade para a moradia que lhe foi determinada. A
que atravessou a vida com pureza e moderação e alcançou deuses por guias e
companheiros de jornada, obtém moradia apropriada.
LVIII – A Terra apresenta um sem-número de lugares maravilhosos, não sendo nem
de tão extensa nem da forma como a imaginam as que se comprazem em discorrer a seu
respeito, conforme alguém mo demonstrou.
Nessa altura falou Símias: Que queres dizer com isso, Sócrates? Sobre a Terra eu
também já ouvi dizerem muita coisa; porém não o de que te mostras convencido. De muito
bom grado te ouviria falar a esse respeito.
Para fazer essa descrição, Símias, não me parece necessária a arte de Glauco. Mas o
que se me afigura mais difícil do que a arte de Glauco é provar a sua veracidade. É
possível, até, que me falte capacidade para tanto; porém mesmo que a tivesse, o pouquinho
de vida que me resta, Símias, não chegaria para tão longa exposição. Contudo não vejo
impedimento em expor-te a idéia que faço da forma da Terra e de suas diferentes regiões.
Será o suficiente, falou Símias.
Para começar, principiou, fiquei convencido de que, se a Terra é de forma esférica e
está colocada no meio do céu, para não cair não precisará nem de ar nem de qualquer outra
necessidade da mesma natureza: por que para sustentar-se é suficiente a perfeita
uniformidade do céu e seu equilíbrio natural. Pois uma coisa em equilíbrio natural. Pois
uma coisa em equilíbrio no meio de qualquer elemento homogêneo, não se inclinará, no
mínimo, para nenhum lado, mas se conservará sempre fixa e no mesmo estado. Foi esse o
primeiro ponto, arrematou, que passei a admitir.
E com razão, observou Símias.
Ao depois, continuou, que também se trata de algo imensamente grande e que nós
outros, moradores da região que vai do Fásis às Colunas da Hércules, ocupamos uma
porção insignificante da terra, em torno do mar à feição de formigas e rãs na beira de um
charco. É que por toda a Terra há muitas concavidades, de forma e tamanho variáveis, para
as quais converge água, vapor e ar. Porém a própria terra se acha pura no céu puro, onde
estão os astros, denominado éter por quantos costumam discorrer sobre essas questões, cuja
borra, precisamente, é tudo aquilo que não pára de depositar-se nas cavidades da terra.
Quanto a nós, por não percebemos que moramos nessas concavidades, imaginamos viver
em cima da Terra como se daria com quem morasse no meio do mar fundo e pensasse estar
na superfície, e vendo através da água o Sol e os outros astros, tomaria o mar pelo céu. Por
indolência e fraqueza muito próprias, nunca subiu até o espelho da água, nem viu nunca,
depois de emergir do mar e de levantar a cabeça fora da água na direção desses lugares,
quanto são mais puros e mais lindos do que o outro, o que também não poderia ter ouvido
de nenhuma testemunha ocular. É exatamente o que se dá conosco. Habitantes de uma
dessa concavidades da Terra, imaginamos morar em cima dela, e damos ao ar o nome de
céu, como se o ar fosse o próprio céu em que se movimentam os astros. É igualzinha nossa
situação: por indolência e fraqueza, não somos capazes de atingir o limite extremo do ar.
Pois no caso de chegar alguém ao cimo ou de adquirir asas e de voar, emergiria e passaria a
ver como os peixes aqui de baixo quando põem a cabeça fora da água e vêem o que se
passa entre nós: de igual modo veria o que há por lá, e no caso de agüentar sua natureza
por algum tempo semelhante vista, reconheceria ser aquele o verdadeiro céu, a verdadeira
luz e a verdadeira terra. Sim, porque esta nossa terra, as pedras e toda a região que nos
circunda estão estragadas e corroídas, tal como corroído está pela salsugem tudo o que há
no mar. Nada cresce no mar digno de menção, nem há nada perfeito, por assim dizer;
apenas cavernas, areia, lama a perder de vista e lodo por onde quer que haja terra, nada, em
suma, que suporte cotejo com as coisas belas de nosso mundo. Mas aquelas, por sua vez,
em confronto com as nossas, de muito as ultrapassam. Se fosse oportuno, contar-vos-ia um
belo mito, Símias, digno de ser ouvido, de como é constituída essa terra situada embaixo do
céu.
Mas nem há dúvida, Sócrates, falou Símias; escutaremos teu mito com o maior
prazer.
LIX – O que dizem, companheiro, para começar, é que essa terra fosse vista de cima
por alguém, pareceria um desses balões de couro de doze peças de cores diferentes, de que
são simples amostras as cores conhecidas entre nós que os pintores empregam. Toda aquela
terra é assim, porém de cores muito mais pura e brilhantes; uma parte é de cor é púrpura e
admiravelmente bela; outra é dourada; outra, ainda, com ser branca, é mais alva do que o
giz e a neve, o mesmo acontecendo com todas as cores de que é feita, em muito maior
número e mais belas do que quantas possamos já ter visto. Pois até mesmo as concavidades
da terra, estando cheias de ar e de água, mostram uma cor de brilho especial, resultante da
mistura de todas as cores, de forma que a Terra apresenta colorido de uniforme variedade.
Nessa terra assim constituída, tudo cresce nas mesmas proporções: árvores, flores ou frutos.
Comas montanhas dá-se o mesmo; as pedras, relativamente, são mais macias e translúcidas
e de cores muito lindas, das quais são parcela insignificante nossas pedrazinhas tão
apreciadas: sardônicas, jaspe e esmeraldas, e todas as outras da mesma natureza. As de lá
são todas desse jeito e ainda mais belas. A causa disso, vamos encontrá-la no fato de serem
puras aquelas pedras e não ficarem estragadas nem corroídas, como as nossas, pela
putrefação e pala salsugem que convergem para os lugares cá de baixo e que deformam e
deixam doente não somente as pedras e o solo, como também os animais e as plantas. Tudo
isso enfeita aquela terra, também ouro e prata e o que mais houver do mesmo gênero, de
tanta refulgência tudo em tão grande cópia espalhado pela vastidão da terra ,que sua vista é
verdadeiramente edificante. Existem nela animais em profusão, e também em parte nas
margens do ar, como nós moramos nas do mar, em parte nas ilhas cercadas de ar, perto dos
continentes. Numa palavra: o ar para eles é com a água e o mar para nossas necessidades,
assim como para eles o éter é o que para nós é o ar. As estações entre eles são de tal modo
temperadas, que ninguém cai doente, vivendo todos muito mais tempo do que os homens cá
de baixo. Quanto à vista, o ouvido o pensamento e demais atributos desse gênero, eles nos
ultrapassam na mesma proporção em que o ar vence em pureza a água e o éter o próprio ar.
Há também entre eles templos e bosques sagrados, nos quais viver efetivamente as
divindades, bem como vozes, profecias e aparições dos deuses, que é como se comunicam
com eles, de rosto a rosto. Ademais, vêem o sol, a lua e as estrelas com são na realidade,
andando a par com tudo isso o restante de sua bem-aventurança.
LX – Assim é a natureza da terra em seu conjunto e das coisas que a circundam. Nas
entranhas da terra, por todo o seu contorno notam-se numerosas concavidades, algumas
mais profundas e patentes do que esta em que moramos, outras também profundas, porém
com entrada mais angusta do que a nossa, havendo, ainda, umas tantas de menor fundura,
porém mais largas do que esta. Todas essas regiões se comunicam entre si em muitos
lugares por passagens subterrâneas, de largura variável, além de possuírem outras vias de
acesso. Muita água corre de uma para outra, como nos grandes vasos, havendo, outrossim,
embaixo da terra rios perenes de grandeza descomunal, de água quente e fria, e também
muito fogo e grandes rios de fogo, bem como correntes de lama líquida, ora mais limpa, ora
mais suja, tal como antes de lava os rios de lama da Sicília, e depois a própria lava. Essas
diferentes regiões se enchem de semelhante matéria, de acordo com a direção ocasional da
corrente. Essas águas se movimentam para cima e para baixo, como um pêndulo colocado
no interior da terra. Semelhante oscilação deve provir do seguinte: Entre as aberturas da
terra, uma há particularmente grande, que a atravessa em toda a sua extensão e a que se
refere Homero nos seguintes termos:
Essa voragem profunda que em baixo da terra se encontra, e que por ele mesmo e
muitos outros poetas é denominada Tártaro. É para essa abertura que confluem todos os
rios, como é dela, também, que todos partem, adquirindo cada um as propriedades do
terreno por onde passam. A razão de saírem de todos os rios dessa abertura e de voltarem
para ela, é carecerem suas águas de fundo e de base; daí oscilarem e flutuarem para cima e
para baixo. Concorrem para o mesmo efeito o ar e o vento que as envolvem, por
acompanhá-las tanto quando se precipitam para as regiões do outro lado da terra como
quando se dirigem para o lado de cá. E assim como o sopro de quem respira se encontra em
constante movimento, na inspiração e na expiração, do mesmo modo o sopro predominante
naquelas regiões, juntamente com as águas, quando entram e quando saem, produz ventos
de irresistível violência. Ao se dirigirem as águas para os lugares que denominamos de
baixo, afluem para os leitos das correntes desse lado e os enchem, como nos sistemas de
irrigação; quando, inversamente, os abandonam e retornam para cá, voltam a encher os
deste lado. Uma vez cheios, correm pelos canais e pela terra, seguindo as vias naturais do
solo e passam a formar lagos, mares, rios e fontes. De lá, voltando a mergulhar na terra,
depois de uma parte das águas circular por maios número de regiões e mais extensas,
enquanto outras fazem trajeto pequeno em menos lugares, lançam-se outra vez no Tártaro,
algumas muito mais abaixo do nível em que corriam, outras um pouco menos, conquanto
desemboquem todas muito abaixo do ponto de partida. Alguns rios irrompem do lado
oposto da saída, outros do mesmo lado; sim, casos há de descreverem um círculo completo:
enrolando-se uma ou mais vezes em torno da terra, à feição de serpentes, descem o mais
possível para de novo se lançarem no Tártaro. Os rios de ambos os lados podem baixar até
o centro, porém não ultrapassá-lo, pois de cada lado a margem desses rios é de aclive
acentuado.
LXI – Há muitas outras caudais do mais variado aspecto, porém nessa multidão de
rios há quatro, particularmente, dos quais o maior e mais afastado do centro, denominado
Oceano, circunda a Terra inteira. De fronte deste e em sentido contrário deflui o Aqueronte,
que além de atravessar muitas regiões desertas, corre por baixo da terra, até alcançar a
Lagoa Aquerúsia, para onde vão as almas da maioria dos mortos, as quais, depois de ali
permanecerem o tempo marcado pelo destino, umas mais outras menos, são reenviadas para
renascerem em animais. O terceiro rio irrompe dentre os dois primeiros, para lançar-se,
perto de sua origem, num lugar amplo e cheio de fogo, onde forma um lago maior do que o
nosso mar, de água e lama ferventes. Daí, torvo de tanta lama, descreve um círculo e depois
de contornar a terra e atravessar outros lugares, atinge o limite extremo da Lagoa
Aquerúsia, sem que suas águas se misturem com as desta. Por fim, depois de muitas voltas
sempre dentro da terra lança-se na porção mais baixa do Tártaro. Esse é que tem o nome de
Piriflegetonte, cujas lavas jogam partículas incandescentes em diversos pontos da superfície
da terra. Defronte dele, por sua vez, desemboca o quarto rio, a princípio numa região
selvática e pavorosa, e, ao que se diz, toda ela de colorido azul escuro, denominada Estígia,
sendo chamada Estige a lagoa em que ele vem lançar-se. Depois de nela cair e adquirirem
suas águas propriedades terríveis, afunda pela terra, traçando voltas sem conta em sentido
contrário às do Piriflegetonte, com o qual vai defrontar-se no lado oposto da lagoa
Aquerúsia. Suas águas, também, não se misturam com as outras, vindo ele a desaguar no
Tártaro defronte do Piriflegetonte. O nome desse rio, no dizer dos poetas, é Cócito.
LXII – Sendo essa a disposição natural dos rios, quando os mortos chegam ao local
determinado para cada um o seu demônio particular, antes de mais nada são julgados, tanto
os que levaram vida bela e santa como os que viveram mal. Os classificados como de
procedimento mediano, dirigem-se para o Aqueronte e sobem para as barcas que lhes são
destinadas e que os transportam para a lagoa. Aí passam a residir e se purificam, e no caso
de haverem cometido alguma falta, cumprem a pena imposta e são absolvidos ou
recompensados, de acordo com o mérito de cada um. Os reconhecidamente incuráveis, por
causa da enormidade de seus crimes, roubos de templos, repetidos e graves, homicídios
iníquos e contra a lei, e muitos outros do mesmo tipo que se cometem por aí: esses lança-os
no Tártaro a sorte merecida, de onde não sairão nunca mais. Os autores de faltas sanáveis,
embora graves – seria o caso dos que, num momento de cólera, usaram de violência contra
o pai ou a mãe, mas que se arrependeram o resto da vida, ou os que se tornaram homicidas
por idênticos motivos – todos terão fatalmente de ser lançados o Tártaro. Porém m ano
depois de ali caírem, as ondas jogam os assassinos para o Cócito, e os culpados de violência
contra o pai e a mãe para o Piriflegetonte. Arrastados, assim, pela correnteza, quando
atingem a Lagoa Aquerúsia, alguns chamam a vozes os que eles mesmos mataram, outros
as vítimas de suas violências; e ao acorrerem todos a seus brados, imploram permissão de
passar para a lagoa e de serem recebidos. Se conseguem com eles que os atendam,
ingressam na lagoa, terminando logo ali seus sofrimentos; caso contrário, são mais uma vez
levados para o Tártaro e deste, novamente, para os rios, prolongando-se, dessa forma, o
castigo até conseguirem o perdão de suas vítimas. Essa pena lhes é imposta pelos juízes.
Por último, os que são reconhecidos como de vida eminentemente santa, ficam dispensados
de permanecer nessas moradas subterrâneas e, como egressos da prisão atingem, as regiões
puras e passam a residir na terra. Entre esses, os que já se purificaram suficientemente por
meio da filosofia, vivem daí por diante sem corpo e vão para moradias ainda mais belas do
que as outras. Desisto de descrevê-las, à uma, por não ser fácil tarefa, à outras, por não
dispor agora de tempo para tanto. Do que vos expusemos, Símias, precisamos tudo fazer
para em vida adquirir virtude e sabedoria, pois bela é a recompensa e infinitamente grande
a esperança.
LXIII – Afirmar, de modo positivo, que tudo seja como acabei de expor, não é
próprio de homem sensato; mas que deve ser assim mesmo ou quase assim no que diz
respeito a nossas almas e suas moradas, sendo a alma imortal como se nos revelou, é
proposição que me parece digna de fé e muito própria para recompensar-nos do risco em
que incorremos por aceitá-la como tal. É um belo risco, eis o que precisamos dizer a nós
mesmos à guisa da formula de encantamento. Essa é a razão de me ter alongado neste mito.
Confiado nele; é que pode tranqüilizar-se com relação a sua alma o homem que passou a
vida sem dar o menor apreço aos prazeres do corpo e aos cuidados especiais que este
requer, por considerá-los estranhos a si mesmo e capazes de produzir, justamente, o efeito
oposto. Todo entregue aos deleites da instrução, com os quais adornava a alma, não como
se o fizesse com algo estranho a ela, porém como jóias da mais feliz indicação: temperança,
justiça, coragem, nobreza e verdade, espera o momento de partir para o Hades quando o
destino o convocar. Vós também, Símias e Cebete, acrescentou, e todos os outros, tereis de
fazer mais tarde essa viagem, cada um no seu tempo. A mim, porém, para falar como herói
trágico, agora mesmo chama-me o destino. Mas esta quase na hora de tomar o banho. Acho
melhor fazer isso antes de beber o veneno, para não dar às mulheres o trabalho de lavar o
cadáver.
LXIV – Depois de dizer essas palavras, falou Critão: Está bem, Sócrates; porém que
determinações me deixas ou a estes aqui, a respeito de teus filhos, ou o que mais poderemos
fazer por amor de ti, que nos fora grato executar?
O que sempre vos digo, Critão, foi a sua resposta; nada tenho a acrescentar: se
cuidardes de vós mesmos, tudo o que fizerdes será tanto por amor de mim e dos meus como
de todos, ainda mesmo que nada me tivésseis prometido neste momento. Porém no caso de
vos descuidardes de vós mesmos e de não orientardes a vida como que no rastro do que
vos disse agora e no passado, por mais numerosos e solenes que fossem vossos juramentos
neste instante, não avançareis um único passo.
Quanto a isso, respondeu, esforçar-nos-emos para viver dessa maneira. Mas, como
devemos sepultar-te?
Como quiserdes, disse; basta que segureis de verdade e que eu não vos escape.
Depois, sorriu de mansinho e disse, olhando para o nosso lado: Não consigo,
senhores, convencer Critão de que eu sou o Sócrates que neste momento conversa com ele
e comenta seus argumentos; toma-me por quem ele irá ver morto dentro de pouco. Por isso
pergunta como deverá sepultar-me. Quanto ao que vos tenho dito tantas vezes, que depois
de beber o veneno não ficarei convosco mais irei compartilhar da dita dos bemaventurados,
ele acha que eu só falo assim para tranqüilizar-vos e a mim também. Servime,
pois, de fiador junto de Critão, porém que seja essa fiança o oposto da que ele prestou
perante os juízes. Empenhou, então, a palavra em como eu ficaria; por vossa vez, afirmailhe,
que não ficarei depois de morto, porém sairei daqui e partirei, para que ele se mostre
mais paciente e não se aflija tanto por minha causa, quando vir queimarem ou enterrarem
meu corpo, no pressuposto de que eu esteja sofrendo enormemente, nem diga nos meus
funerais que expõe Sócrates, ou o carrega, ou o sepulta. Fica sabendo, continuou, meu
admirável Critão, que a imprecisão da linguagem, além de ser um defeito em si mesma,
produz mal às almas. Importa criares coragem e dizer que é meu corpo que vais enterrar;
depois sepulta-o como te aprouver e como te parecer mais de acordo com as leis.
LXV – Tendo acabado de falar, levantou-se e foi para outro compartimento, a fim de
banhar-se. Critão o acompanhou; a nós mandou que esperássemos. Ali ficamos, então, a
conversar e comentar tudo o que ele dissera e a discorrer sobre o nosso grande infortúnio.
Sentíamos, em verdade, como quem houvesse perdido o pai e tivesse de ficar órfão para o
resto da vida. Depois de tomar banho, trouxeram-lhe os filhos – dois ainda eram pequenos;
o outro, mais crescido. – Chegaram também as mulheres de casa, com as quais ele
conversou na frente de Critão, e depois de lhes haver feito certas recomendações, pediu que
retirassem dali as mulheres e os meninos e veio para o nosso lado. O sol já estava quase a
desaparecer, pois Sócrates havia ficado lá dentro bastante tempo. Ao vir do banho, sentouse,
porém não conversou muito. Achegou-se-lhe o comissário dos Onze, que lhe disse:
Sócrates, falou, de ti não terei de queixar-me como dos outros, que se zangam comigo
e rompem em palavras e pragas, quando os convido a tomar o veneno por determinação
superior. No teu caso, pelo contrário, durante todo este tempo e em várias outras
oportunidades, pude reconhecer em ti o homem mais nobre, mais delicado e melhor de
quantos para aqui têm vindo. Hoje, especialmente, tenho certeza de que não te zangarás
comigo, pois sabes muito bem que é dos outros a culpa. E agora, já que ficaste ciente do
que vim anunciar-te. Adeus; suporta o inevitável da melhor maneira possível.
E desatando a chorar, deu as costas e retirou-se. Sócrates olhou para ele disse: Adeus,
também para ti; faremos isso mesmo.
Depois, voltando-se para o nosso lado: Que homem delicado! Disse. Durante todo
este tempo , vinha sempre ver-me e várias vezes conversou comigo. Excelente criatura.
Agora mesmo, quanta generosidade revela com esse choro por minha causa! Porém vamos,
Critão; obedeçamos-lhe; tragam logo o veneno, se estiver pronto; senão, cuide de preparálo
o encarregado disso.
Critão observou: O que eu acho, Sócrates, lhe disse, é que o sol ainda está por cima
das montanhas; não baixou de todo. Sei também que muitos tomaram o veneno bem depois
da intimação e de comerem e beberem à farta; sim, alguns mesmo depois de relações
amorosas com que lhe apetecesse. Não te apresses; temos tempo.
E Sócrates: É natural, Critão, assim falou, que esses tais procedessem conforme
disseste, por imaginarem que disse lhes adviria alguma vantagem. Mas é também natural
não proceder eu dessa maneira, pois não vejo o que posso vir a lucrar em beber o veneno
um pouco mais tarde, se não for tornar-me ridículo a meus próprios olhos, por agarrar-me
dessa maneira à vida e tentar economizar o que já não existe. Vamos, continuou: obedeceme
e só faças o que eu digo.
LXVI – Ouvindo-o, Critão fez sinal ao menino que se encontrava mais perto. Este
saiu e voltou pouco depois em companhia do encarregado de lhe dar o veneno, que já o
trazia espremido na taça. Ao ver o homem, Sócrates perguntou-lhe. E agora, meu caro: já
que entendes destas coisas, que precisarei fazer?
Nada mais, respondeu, do que andar depois de beber, até sentires peso nas pernas, e
em seguidas deitar-te. Assim o veneno atuará.
Depois dessas palavras, estendeu a Sócrates a taça, que a tomou das mãos dele com
toda a tranquilidade, sem o menor tremor nem alteração da cor ou das feições. Mirando por
baixo o homem, com aquele seu olhar de touro, perguntou-lhe: Que me dizes? E se eu
fizesse uma libação com um pouquinho disto aqui? É permitido ou não?
Só preparamos, Sócrates, respondeu, a quantidade que nos parece suficiente.
Compreendo, retrucou. Mas pelo menos é permitido, e até um dever, pedir aos deuses
que façam feliz a passagem deste mundo para o outro. É o que peço. Prouvera que me
atendam!
Depois de assim falar, levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar
um nada, bebeu até à última gota. Até esse momento, quase todos tínhamos conseguido
reter as lágrimas; porém quando o vimos beber e que havia bebido tudo, ninguém mais
aguentou. Eu também não me contive: chorei à lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o
meu infortúnio; sim, não era por desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por
ver de que espécie de amigo me veria privado. Critão levantou-se antes de mim, por não
poder reter as lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se
a urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com exceção
do próprio Sócrates.
Que é isso, gente incompreensível? Perguntou. Mandei sair as mulheres, para evitar
esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de bom agouro.
Acalmai-vos! Sede homens!
Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de chorar. E
ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como
recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas.
Depois, apertando com mais força os pés, perguntou se sentia alguma coisa. Respondeu que
não. De seguida, sem deixar de comprimir-lhe a perna, do artelho para cima, mostrou-nos
que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no
momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase
todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e
foram suas últimas palavras: Critão, exclamou, devemos um galo a Asclépio. Não te
esqueças de saldar essa dívida!
Assim farei, respondeu Critão, vê se queres dizer mais alguma coisa.
A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção.
O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Critão fechou-lhe os olhos e
a boca.
Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo, que entre
todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo.

Versão eletrônica do diálogo platônico “Fedão”
Tradução: Carlos Alberto Nunes
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/