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sábado, 4 de abril de 2015

Filosofia e Mito: Continuidade ou ruptura?



Mito e filosofia 
Continuidade ou ruptura?
Por Delmo Mattos da Silva
Universidade Salgado de Oliveira, Brasil


Pela interpretação tradicional da História da Filosofia, somos persuadidos a crer que a Filosofia emerge entre os Gregos por uma ruptura com o Mito. Não havendo, por assim dizer, uma continuidade dessa forma de se entender a realidade com o afloramento de uma nova atitude frente à realidade puramente racional inaugurada pelos Gregos.

Entretanto, existem inúmeras controvérsias quanto a essa interpretação, o que nos leva a crer, por vários motivos, que há evidencias que nos levariam a aceitar uma continuidade significativa do discurso Mítico no interior da Filosofia nascente, e abandonar a difundida tese do "Milagre Grego". (O "Milagre grego" em nada se aproxima do Mito, são visões totalmente divergentes da realidade, de modo que o acontecimento da filosofia deixa transparecer o testemunho de uma mutação no pensamento.)

Não é fácil, contudo, traçar com precisão uma "fronteira temporal", parafraseando Jaeger, que pudesse nos evidenciar o momento exato de que não mais estaríamos a falar do Mito, mas sim do pensamento racional. Este, porém, seria o sinal para aceitarmos uma provável "conexão orgânica" (continuidade) entre esses dois modos de conhecer a realidade. Contudo, não nos é fácil aceitar de antemão tal evidência, pois sabemos que existem diferenças fundamentais entre Mito (Mythos) e Filosofia (logos). Características que levaram, de fato, os intérpretes da História da Filosofia a sustentarem a tese da descontinuidade entre Mito e Filosofia. 


Sabemos que a constituição Mitológica, como forma de se entender a realidade, estava enraizada no interior da sociedade grega tão profundamente, que seria até óbvio que houvesse uma persistência e confluência na fase inicial da Filosofia. Atentemos neste momento, em definir o que era o Mito e qual a sua função na sociedade grega. 

O Mito, enquanto uma narrativa, corresponde à primeira forma de se pensar o real, ou de representá-lo. Neste caso encontramos uma explicação ou um relato de um acontecimento que teve um lugar no tempo primordial de modo que institui um começo ou uma origem para tal acontecimento. 

Na verdade, o Mito narra como, graças aos feitos de personagens sobrenaturais, uma realidade veio a existir efetivamente, seja a realidade na sua totalidade — o Cosmos, ou apenas um fragmento dessa realidade. Assim dentro da sociedade grega o Mito destina-se a satisfazer uma curiosidade, que não é científica, de fazer reviver uma realidade original, e, sobretudo, responde a uma profunda necessidade religiosa às aspirações morais, restrições e imperativos de ordem puramente social. O pensamento Mítico guarda em si diferenças que não são acompanhadas pela tradição racional do pensamento — por esse motivo uma leitura filosófica renuncia de bom grado a explicação do Mito. Porém, há um ponto de convergência bastante interessante: o fato de que o Mito se comporta, apesar de suas peculiaridades, como uma explicação simbólica sobre a origem. Esse ponto é fundamental para os intérpretes que procuram um ponto de conexão entre o pensamento Mítico e o racional: A questão da origem. A questão da origem nos remete ao fundamento de algo, daquilo que brota e emerge esse algo. Na verdade, tanto o Mito quanto a Filosofia asseguram para si uma explicação sobre a origem do Universo. Guardada as devidas proporções tanto o Mito quanto a Filosofia possuíam a mesma preocupação sendo que explicada de maneiras diferenciadas.

Procurando distanciar-se dessa concepção, o historiador inglês John Burnet, afirma ser impossível constar algum tipo de continuidade entre o Mito e a Filosofia. Contra essa continuidade, como já havíamos demonstrado acima, Burnet afirma que certas características predominantes no Mito são totalmente contrárias às da Filosofia no seu estágio inicial. Burnet, nesse sentido, assume a interpretação tradicional da História da Filosofia, mais precisamente a interpretação do Filosofo Alemão Hegel. Em sua obra História da Filosofia Hegel enfatiza a distinção entre "Filosofia oriental" e "Filosofia Grega", segundo o qual primeira é representada por ser religião contrastando com a segunda, que Hegel descreve como uma ruptura frente à religião. A interpretação de Hegel sobre o nascimento da Filosofia possibilitou a margem para que, posteriormente, os historiadores da filosofia admitissem que o nascimento da Filosofia significasse uma descontinuidade ou uma ruptura total com a religião e com os Mitos (a tese do "Milagre Grego"). Como exemplo dessa posição vejamos o que Burnet entende sobre esse ponto:

"Os primeiros gregos que tentaram compreender a natureza não eram como homens que entram num caminho que nunca fora percorrido. Já existia uma visão do mundo possivelmente consistente, ainda que apenas pressuposta e implícita no rito e no mito e não distintamente concebida como tal. Os primeiros pensadores fizeram algo muito maior do que um simples começo. Despojando-se da visão selvagem das coisas, renovaram a juventude delas e, com elas, a juventude do mundo, em um tempo em que o mundo parecia abatido pela senilidade". (BUNET, J. O Despertar da Filosofia Grega. São Paulo: Siciliano, p. 34.)

Embora as afirmações de Burnet nos induzam a aceitar tal descontinuidade entre Mito e Filosofia, não nos deixemos envolver tão facilmente pela sua posição. Se realmente há uma ruptura radical como ele propõe o que dizer das autenticas exemplificações contidas nas teorias de Platão e, até mesmo Aristóteles? Contrapondo-se a Burnet o Helenista Cornford contesta a idéia de que o nascimento da Filosofia tem por característica principal uma ruptura direta e total com o Mito. A preocupação fundamental de Cornford foi "estabelecer, entre a reflexão filosófica e o pensamento religioso, que tinha precedido, o fio da continuidade histórica" (VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, pp. 168-86.). Tal pretensão de Cornford foi muito difundida a ponto de se tornar um paradigma para os historiadores da filosofia. A interpretação de Cornford admitira uma transformação no modo de encarar o início da Filosofia. Na base de sua interpretação está a idéia de que o pensamento dos primeiros filósofos não representa, pois, o processo inicial da reflexão grega, mas, ao contrário, o pensamento Grego só pôde atingi-lo com base em uma reflexão anterior. Essa representação anterior é representada, de um lado, pelo Mito, ou melhor, pelas Teogonias que são as primeiras explicações da natureza em seu conjunto, porém, situadas inteiramente no plano do Mito. Na visão de Cornford, as Teogonias Míticas gregas adiantaram-se à Filosofia na tentativa de esclarecer as relações percebidas entre os fatos naturais. Entretanto, Cornford vai até mais longe na sua interpretação, admitindo a presença da estrutura dos Mitos continua presente nos filósofos posteriores, contrariando, por assim dizer, a interpretação de Burnet e da tradição dos historiadores da filosofia. Todavia, os próprios representantes da concepção tradicional sobre o início da Filosofia reconhecem que a meditação filosófica tivera um antecedente nas representações religiosas, que apresentavam, em forma Mítica os mesmo problemas que mais tarde a Filosofia em forma racional levantou. De acordo com R. Mondolfo é justamente a de que a característica essencial de toda Teogonia — e não apenas da grega — é que "seu caráter mítico está determinado pelo fato de se extraem do mundo humano, das experiências da vida e das relações sociais, da geração e da luta, os elementos fundamentais para as suas explicações e interpretações do devir cósmico, e é por isso que representam as relações entre os seres e as forças, os fenômenos e os momentos do imenso processo universal como relações entre personalidades concebidas antroporficamente" (MONDOLFO, R. El pensamento antiquo. Buenos aires, Losada,1952. p. 9-103). Seguindo essa interpretação, podemos traçar um paralelo entre os dois modos de representação: ao recolher a herança de reflexão das Teogonias, a Filosofia incipiente herdou também um concepção da natureza dependente de uma consideração anterior ao mundo humano. Dessa forma Mondolfo explica que "em suas concepções de gênese e da constituição do cosmo, tanto as Teogonias poéticas quanto às cosmogonias filosóficas gregas partem de concepções e representações referentes às relações entre homens e suas gerações" (Idem. Em los orígenes de la filosofia e de la cultura. Buenos Aires, Imán, 1942.). A tese fundamental de Mondolfo são que a primeira reflexão sobre a natureza tanto em sua forma Mítica como em sua forma filosófica, se entrelaça como uma reflexão sobre o mundo humano, que a precede em que se apóia. A frase usada por Vernant para sintetizar tanto o pensamento de Burnet como de Cornford sobre a dependência da Filosofia em relação à mitologia é que "os filósofos não precisaram inventar um sistema de explicação do mundo: acharam-no já pronto". Ora, se por sua argumentação a favor do relacionamento da Filosofia com as formas anteriores de reflexão, expressa de modo poético, Mondolfo torna-se participante, ao lado de Burnet da tese da continuidade. Para estes, os filósofos deram respostas às mesmas perguntas feitas pelos Mitos e seguiram, nas respostas, a mesma estrutura que os Mitos propunham, isto é, a Filosofia continuaria trazendo as mesmas concepções Míticas mais, simplesmente de forma secularizada. Assim o Mito recebe da Filosofia a conceituação lógica, enquanto a Filosofia recebe do Mito os conteúdos que precisam ser pensados, de sorte que "devemos considerar a história da filosofia grega como processo de progressiva racionalização do mundo presente no mito". (BRAVO, B. Philologie, Historie, Philosophie de l'historie, Varsóvia, 1968)

Seguindo as mesmas concepções de Burnet e Cornford, Jaeger considera que a Filosofia nasce passando pelo interior da epopéia homérica e dos poemas de Hesíodo, de tal modo que o começo da filosofia científica não coincide com o princípio do pensamento racional nem com o fim do pensamento Mítico. No entanto, mesmo que estejamos certos dessa continuidade, diz Jaeger, não podemos mais nos contentar com a idéia de que a Filosofia diz o mesmo que o Mito, só de outra forma. O problema do surgimento da continuidade ou não entre Mito e Filosofia volta a se colocar de uma maneira diferente. Assim Vernant diz:

"Já não se trata apenas de encontrar na filosofia o antigo, mas de destacar o verdadeiramente novo: aquilo que faz, precisamente, com que a filosofia deixe de ser mito para ser filosofia. Cumpre, por conseguinte, definir a mutação mental de que a primeira filosofia grega dá testemunho, precisar sua natureza, sua amplitude, seus limites, suas condições históricas". (VILHENA,V.M. Panorama do Pensamento Filosófico, Vol. 2, Lisboa: Cosmos, 1958, p. 34)

Para os intérpretes da descontinuidade, a originalidade da Filosofia em relação ao Mito é conseqüência direta da "laicização do pensamento". Estudando as transformações sociais e políticas ocorridas na Grécia, no período arcaico, Pierre Schuhl acentua a função libertadora que tivera, para o espírito, instituições com a moeda, o calendário, a escrita alfabética; e afirma que práticas como a navegação, de longo curso, e a expansão do comércio deveria causar uma nova orientação do pensamento. Sobre esse ponto comenta Nietzsche:

"Nada há de mais absurdo do que atribuir aos Gregos, uma cultura autóctone, pelo contrario, assinalaram a cultura viva de todos os outros povos e, se chegaram tão longe, foi porque souberam continuar a arremessar a lança onde um outro povo a tinha deixado" (SCHUHL, Pierre Máxime. Essai sur la formation de la pensée grecque. Paris: Press Universitaires de France,1949, p. 123.)

Na verdade, a primeira sabedoria grega, característica dos homens que os Gregos celebraram sempre como seus primeiros e mais autênticos sábios, e que marca o momento de ruptura com a explicação mítica do real, não possui por objeto o universo da Physis, mas o mundo dos homens: que elementos os compõem, que forças o divide contra si mesmos, como harmonizá-las, unificá-las, para que a partir de seus conflitos surja a ordem humana. Ao nascer, a Filosofia se enraíza profundamente nesse novo pensamento político, traduzindo suas preocupações fundamentais e tirando dele parte de seu vocabulário. Diante disso, podemos inferir que, a grande "viragem" do pensamento deu-se, portanto, quando os primeiros sábios começaram a refletir sobre a vida humana tal como se apresenta na pólis. Assim os primeiros filósofos aproveitaram o espaço assim aberto para a reflexão e voltaram-se para a natureza. (Por detrás do "milagre grego" havia embutido um espírito de contestação ao que era divino e decadente. Não existia mais lugar para agentes divinos atuando no mundo natural. A perspectiva do "milagre grego" é acima de tudo uma revolução do pensamento, que brota do espírito especulativo que somente os gregos puderam por em prática.)

Diante do impasse entre as diversas interpretações, isto é, de querer sustentar a tese de que a Filosofia seria um "Milagre Grego" ou a tese da continuidade entre Mito e Filosofia seria mais prudente de nossa parte determinar o próprio ato de filosofar. Para a partir daí, se verificar o que a Filosofia traz de novo em relação ao Mito e o que o pensamento Mítico deixa a desejar para a Filosofia. Na verdade, não há uma conclusão plausível para esta questão: se falarmos de uma total ruptura da Filosofia com o Mito, o que dizer então da tese de Burnet? A tese de Cornford não é tão absurda assim, há elementos evidentes de uma certa continuidade na linha de pensamento entre o Mito e a Filosofia. A grande questão é que o discurso mítico diz diferentemente o que a Filosofia viria a dizer depois. Não há como negar esta evidência, pois tanto o Mito como a Filosofia tratam da mesma preocupação. O que dizer então da tese de Hegel, ou seja, da ruptura radical como o discurso Mítico também, por esse aspecto em nada podemos discordar. Há evidencias textuais que colaboram para essa interpretação. Talvez a solução dessa problemática ainda não foi resolvida de modo suficiente pelos historiadores da Filosofia de modo que ainda há muito que se discutir sobre esse tema. Por outro lado, deve haver uma solução plausível, mas que deixa muito a desejar sob o meu ponto de vista. O interessante nesse meio termo é definir o que exatamente mudou quando o pensamento se deparou com essa nova atitude do pensamento. Por esse lado, não dúvidas o quando a Filosofia se distanciou da explicação Mitológica a ponto de se manter distante o bastante com o surgimento de novos problemas que o Mito ainda não tematizava. Aí entra, uma outra questão: será que sem o discurso Mítico a Filosofia poderia ter surgido? Seria o discurso Mítico o suporte que daria asas ao pensamento racional? Sobre esse ponto não me resta a menor dúvida. O discurso Mítico é a base sem a qual não haveria Filosofia e, aí, retornaríamos a velha questão da continuidade. De certa forma, se o discurso Mítico é a base de sustentação da Filosofia isso não quer dizer que no seu interior a Filosofia carregue consigo as mesmas características do pensamento Mítico. Há sim uma mudança de enfoque oriunda de uma nova mentalidade adquirida pelos Gregos. Esse novo enfoque adquire um estatuto de credibilidade não alcançado pelo discurso Mítico. A originalidade da Filosofia se deve ao fato de que esta se detém no real, ou seja, naquilo que o pensamento apreende sem intervenção alguma. Por isso, pode se falar de um "Milagre Grego", isto é, uma "mutação mental" capaz de penetrar progressivamente numa esfera de relação com aquilo que o real nos oferece. Sob a ótica do racional sem a intervenção do misterioso o deslocamento do olhar do pensador se volta para as raízes acolhidas no plano físico, do factual. Por isso deixa-se de se ater ao que é divino e fantasioso, pois este ponto de vista não esclarece de fato o que podemos contestar, para se voltar sobre o solo especulativo a fim de que, tais evidências sejam colocadas em dúvida. O caráter estritamente especulativo da Filosofia nascente reforça a idéia de que com os gregos inicia-se a gênese do pensamento científico. A Filosofia é grega e a "Filosofia grega" é um "exercício do conhecimento". Não importa se o seu aparecimento seja um começo absoluto — sem passado e sem família — a sua originalidade é de ser uma experiência do pensamento diferente do Mito. Mesmo que haja convergência de idéias ou características, a Filosofia grega será sempre uma experiência do pensar diferente de tudo o que já foi visto. A experiência radical do pensamento só poderia vir de um solo tão firme que o que se ergueria depois, jamais poderia ser demolido tão facilmente.


Delmo Mattos da Silva
fonte: criticanarede

Bibliografia

•BRAVO, B. Philologie, Historie, Philosophie de l'historie, Varsóvia, 1968.
•COLLI, Giorgio. O nascimento da Filosofia. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.
•CORNFORD, F.M. Principium Sapientiae — As origens do pensamento filosófico grego, Lisboa: F.C.G., 1981.
•BURNET, J. O despertar da Filosofia Grega. São Paulo: Siciliano, 1994.
•HEGEL, G.W.F. Leçons sur L'historie de la Philosophie. Paris: J. vrin, 1971.
•JEAGER, Werner. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
•MONDOLFO, Rodolfo. Problemi del pensiero ântico. Bolonha: Capelli, 1936.
•——. El pensamiento antigo, Buenos Aires: Losada, 1952.
•——. Em los orígenes de la filosofia e de la cultura, Buenos Aires: Imán.
•——. El pensamento antiquo. Buenos aires: Losada, 1952.
•NIETZSCHE, F. A Filosofia na época clássica dos gregos. Rio de janeiro: Elfos, 1995.
•SCHUHL, Pierre Máxime. Essai sur la formation de la pensée grecque. Paris: Press Universitaires de France, 1949.
•VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973.
•——. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Duas cidades, 1977.
•——. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972
•VILHENA,V.M. Panorama do Pensamento Filosófico, Vol. 2, Lisboa: Cosmos, 1958.


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